Por Edgar Aristimunho*
Erguida como pauta nos últimos dias, a questão de saber por que o cinema nacional não tem público expressivo em terras gaúchas ganhou contornos de embate acirrados entre realizadores (produtores e cineastas) e espectadores (aí incluídos os críticos de cinema), e o ponto a esclarecer é se o público gaúcho não vai assistir a esses filmes porque são feitos no Brasil ou porque a qualidade da obra é questionável. Similar debate se trava, por vezes, com as adaptações literárias para o cinema. Como medir o exato alcance de um filme levando-se em conta a obra literária da qual parte? Difícil, se levarmos em conta que cada leitor cria o seu próprio “filme literário”. Esse me parece ser um dos grandes problemas do cinema brasileiro atualmente: a falta de bons roteiros. Apesar de possuir um argumento original, Xingu, filme de Cao Hamburger e centro do debate acima, deixa a desejar na construção de sua história. Nem sempre foi assim: o cinema brasileiro é repleto de belas adaptações literárias.
Mas qual é, afinal, a qualidade determinante para que um texto literário de qualidades inquestionáveis seja transposto de forma eficiente para a linguagem do cinema? O certo é que por tudo que se lê e se ouve por aí, não há um regra definitiva, apenas bons exemplos a serem seguidos. A propósito disso, são de número considerável as adaptações literárias feitas pelo cinema brasileiro ao longo das décadas que alcançaram o público e crítica, e não vai aí nenhum menção expressa à riqueza da obra de Jorge Amado, autor que teve seus livros transpostos para o cinema de forma gloriosa (Dona Flor e seus dois maridos, de 1976) como também de forma deplorável (Gabriela, cravo e canela, de 1983). Basta que o leitor/espectador se volte para os filmes produzidos aqui, buscando em nosso acervo de obras literárias adaptadas para o cinema para comprovar que esse trânsito entre literatura e cinema já produziu bons frutos. Comprovam isso as adaptações cinematográficas de obras como Macunaíma, de Mário de Andrade, na clássica versão de Joaquim Pedro de Andrade, de textos como São Bernardo, de Graciliano Ramos, na linguagem crua e seca de Leon Hirzman, e até mesmo adaptações de obras consideradas difíceis, como Guimarães Rosa, que em nosso cinema tiveram belos resultados, caso de A hora e a vez de Augusto Matraga, dirigido por Roberto Santos. Recentemente, porém, o cinema brasileiro tem dado maior valor às produções baseadas em roteiro originais (o ciclo nordestino atual), sendo raros os casos de filmes como Lavoura Arcaica, Carandiru, O invasor e o aclamado Tropa de elite, textos de origens literárias bastante diversas mas de eficiência narrativa incontestável.
Nesse ponto, importante destacar um outro fator que costuma inibir as adaptações literárias para o cinema: os desafios intrínsecos da própria obra. A tal ponto que nos dias de hoje ninguém teria a coragem de propor uma adaptação de um livro do porte de Catatau, clássico anárquico-linguístico-metafísico de Paulo Leminski. Obra insuperável, com paralelos estilísticos apenas em obras do quilate de Grande sertão: veredas, o livro de Leminski mostra como as particularidades do ritmo de um texto literário jamais se enquadram de forma automática nos 24 quadros por segundo do cinema. A obra mesmo de Guimarães Rosa, algumas vezes trazida ao cinema, apenas alcançou alguma aceitação do público quando transposta para um formato mais “leve”, na tevê e com atores consagrados, caso da minissérie produzida anos atrás. Tal o desafio de obras nacionais que o importante diretor Fernando Meirelles (Cidade de Deus) chegou a declarar que desistiria de adaptar Grande sertão: veredas. A dúvida que pode ser posta é se ele desistiu do projeto pela pouca aceitação do público brasileiro a temas que envolvam jagunços e o sertão brasileiro (considerados hoje demodè), ou se realmente o desafio de uma transposição de uma obra como essa é praticamente insuperável, intransponível, insano mesmo.
Isso tudo, aliás, é confirmado quando alcançamos o plano da literatura mundial e observamos o perfil de algumas adaptações literárias – e existem muitas. Vem de imediato a adaptação de O iluminado, que no cinema alcançou a perfeição na direção de um gênio (Stanley Kubrick) e na interpretação de outro ícone do cinema (Jack Nicholson). Porém, obras como Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust e Ulysses, de James Joyce, assim como qualquer livro de Virginia Woolf dificilmente teria um sucesso convincente junto ao público e à crítica se fosse feito, em cada caso, a transposição pura e simples para a linguagem (por vezes acachapante) da tela grande desses textos literários, únicos e fundamentais para a literatura mundial. Tanto que um dos filmes mais importantes sobre a citada escritora inglesa foi justamente aquele que abordou não a sua obra, mas sua vida, sendo que neste caso, por paradoxo, estamos diante de uma dupla adaptação: o filme As horas estaria ao mesmo tempo baseado na livro de Michael Cunningham e no clássico Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf.
A eficiência de uma adaptação literária inicia, portanto, pela qualidade do texto literário escolhido. Essa é uma máxima que pode ser comprovada pela simples inversão de raciocínio, ou seja, de que bons roteiros originais constituem, no limite, belas peças literárias. Outro fator a determinar a qualidade da transposição literária é a química que se forma a partir do trabalho de direção consciente e conjunção de recursos técnicos do cinema (som, fotografia, etc) com a atuação impecável (e por vezes original) de atores, eles próprios dando vinda às personagens. Jamais haverá, contudo, garantia de que a transposição seja tranqüila, aceita e unânime.
* É escritor e revisor, com pós-graduação lato senso em Letras pela UniRitter. Tem publicado pela editoria Dom Quixote o livro de contos O Homem perplexo (2008) e participou da antologia Ponto de Partilha”. Escreve no blog O Íncubo (http://oincubo.blogspot.com)