Cinderela para espectadores pós-Frozen

Nova versão de "Cinderela" busca modernizar aspectos ultrapassados de obras anteriores. (Crédito: Walt Disney Pictures/divulgação)
Nova versão de “Cinderela” busca modernizar aspectos ultrapassados de obras anteriores. (Crédito: Walt Disney Pictures/divulgação)

Cinderela (Cinderella, EUA, 2015)

Direção: Kenneth Branagh

Roteiro: Chris Weitz, baseado no clássico da Disney de 1950.

Com: Lily James, Cate Blanchett, Richard Madden, Helena Bonham Carter, Sophie McShera, Holliday Grainger, Stellan Skarsgård, Derek Jacobi, Nonso Anozie, Eloise Webb, Ben Chaplin e Hayley Atwell.

Lançado numa época de revisionismo dos contos clássicos voltados para crianças, Cinderela soa um tanto tradicional depois de filmes como Encantada, Valente ou Frozen. Mas o fato é que, mesmo datado para os padrões atuais, o clássico da Disney de 1950 já atualizava aspectos da “versão original” – na verdade, a versão publicada mais antiga, publicada por Charles Perrault em 1697 e que influencia fortemente ambos os filmes*. Essa modernização também alcança essa nova abordagem de modo a torná-la mais aceitável para o público do século XXI – e assim, embora careça do mesmo espírito mágico da contraparte animada, surge com encanto suficente para ser uma das adaptações live action do estúdio mais satisfatórias.

(Crédito: Walt Disney Pictures/divulgação)
(Crédito: Walt Disney Pictures/divulgação)

Não é nada difícil ver Cinderela como uma história sexista e que conta com uma protagonista absurdamente passiva – mas é claro, que, sendo produto do século XVII, trazer a garota se casando com alguém de seu desejo seja o máximo de empoderamento feminino que a época permitia. Além disso, tanto na versão de Perrault quanto na dos irmãos Grimm o pai da garota não está morto, o que a torna também vítima de negligência (e ela teme a reação do pai caso se queixe dos maus tratos da madrasta, mais uma coisa que as versões seguintes atualizaram matando o sujeito). Claro que essas questões nunca foram o foco da história, cuja moral centrava-se nas virtudes da esperança e da gentileza, mas é evidente que uma adaptação mais “literal” poderia ser mal recebida pelo público contemporâneo (ou não – vide o sucesso do absurdamente conservador Cinquenta Tons de Cinza…), ao passo que uma ruptura mais extrema descaracterizaria a história.

Nesse sentido, a atualização mais evidente do novo filme é que o Príncipe (Madden, de Game of Thrones) deixou de ser apenas a “recompensa” de Cinderela por sua bondade para se tornar um personagem de fato. Não apenas o casal se conhece antes do famoso baile como este representa um embaraço para o rapaz, pressionado a se casar por motivos políticos. Além disso, a relação carinhosa e gentil que o Príncipe mantém com o pai doente (Jacobi) remete à dinâmica que a protagonista tinha com os pais falecidos e convence o espectador de que Cinderela merece o Príncipe tanto quanto este é digno da garota. Também contribui para o sucesso do casal principal, claro, o carisma de seus intérpretes: enquanto Madden logo estabelece o bom coração do Príncipe, Lily James surge como uma versão um tanto menos fragilizada da heroína, chegando a questionar e até mesmo enfrentar a madrasta em certos momentos (embora ela voltar para casa depois de uma tentativa de fuga seja inexplicável).

Mesmo assim, é Cate Blanchett quem, mais uma vez, rouba todas as cenas em que aparece como Lady Tremaine: consciente de estar vivendo uma das antagonistas mais icônicas da Disney, a atriz investe num crescendo de maldade cada vez menos sutil, resultando numa composição caricatural (mas orgânica ao projeto) daquele tipo de vilã que adoramos odiar – e é ótimo que o roteiro pare quando parece prestes a definir um motivo para seu desprezo pela enteada, já que, afinal, isso nunca foi importante para a história. Por outro lado, é imperdoável que Branagh conduza a cena em que Tremaine e as filhas rasgam o vestido de Cinderela de forma tão apática, já que é sem dúvida alguma a sequência mais traumática da versão de 50.

(Crédito: Walt Disney Pictures/divulgação)
(Crédito: Walt Disney Pictures/divulgação)

Investindo em tons intensos desde o início, Cinderela jamais (felizmente) parece querer soar muito realista – e mesmo quando a fotografia emprega uma dessaturação em momentos mais tristes, como a morte da mãe da protagonista, as cores fortes retornam em questão de segundos (ainda assim, a escuridão nas cenas noturnas por vezes torna difícil divisar o que está acontecendo). Seguindo esse padrão, os figurinos de Sandy Powell (parceira habitual de Scorsese) também apostam nas cores para indicar a personalidade dos personagens – merecendo destaque, claro, as roupas usadas por Lady Tremaine, cujo corte elegante e cores de tons escuros estabelecem a vilã como uma ameaça a ser respeitada; e os vestidos espalhafatosos e excessivos das irmãs Drisella e Anastasia, que indicam de cara seu materialismo (e gosto questionável). Além disso, é um toque divertido manter os humanos transformados pela Fada Madrinha a partir de animais com características originais, como o imenso nariz do “ganso” e os casacos verdes dos “lagartos”. Finalmente, a trilha de Patrick Doyle acerta em buscar um tom próprio ao invés de buscar copiar a música da versão animada, ainda que, claro, as homenagens estejam espalhadas aqui e ali.

Pouco mais que uma versão live action do filme de 50, mas sem as canções (os simpáticos ratinhos marcam presença aqui, mas sem falarem), Cinderela é mais um passo da Disney na direção de trazer atores recriando seus maiores clássicos. Qual é o propósito disso (além do dinheiro) é uma boa pergunta, mas ao menos manter-se fiel ao que eles têm de melhor rendeu aqui um resultado superior à tentativa de reimaginá-los (estou olhando para você, Alice no País das Maravilhas (2010)).

* Já no recente Caminhos da Floresta, os trechos envolvendo Cinderela são mais claramente influenciados pelo texto dos irmãos Grimm, pois não incluem o sapatinho de cristal nem a fada madrinha.

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