“Essa história de que Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil… ele não descobriu. Ele invadiu.”
Dita por um líder dos índios kadiwéu em uma reunião com alguns fazendeiros, a frase parece escancarar ainda mais as injustiças que o povo indígena sofreu desde que viu suas terras tomadas pelos brancos em 1500. Triste é constatar tão de perto que tribos como a dos kadiwéu, conhecidos por seu passado guerreiro, ainda precisam lutar para conquistar um pouco de justiça social.
Foi esse sentimento que A Nação que não Esperou por Deus, documentário de Lúcia Murat e Rodrigo Hinrichsen, me provocou. O filme é o resultado do reencontro de Lúcia com os kadiwéu no interior do Mato Grosso do Sul, 17 anos após as filmagens de Brava Gente Brasileira, na qual os índios atuaram. Com o apoio de imagens de arquivo, podemos ver as mudanças que a luz elétrica causou na vida dos 2 mil kadiwéu.
Em uma entrevista recente, Lúcia comentou a reaproximação com a aldeia: “Em 2010 precisei ir a Campo Grande, capital do estado, e resolvi passar lá na comunidade deles. Fiquei chocada com as mudanças levadas pela chegada da luz elétrica, da televisão, pelo crescimento da atuação das religiões evangélicas na região e pelas disputas de terra com os pecuaristas. O interessante é a complexidade da situação deles, a gente tende a idealizar o indígena, mas não consegue ver o processo de mudança nesse conflito deles com outra sociedade.”
Com um misto entre entrevistas e um olhar antropológico, o documentário desconstrói a imagem romântica do índio isolado para mostrar um hibridismo cultural, um limiar entre a preservação dos costumes kadiwéu e a adaptação da vida entre os brancos. Um dos momentos sintomáticos, representado brilhantemente no filme com uma transição a corte seco, mostra que os kadiwéu, que, no passado, foram conhecidos dominadores de cavalos, agora dominam também as motos.
Da mesma forma que Eduardo Coutinho volta a Galileia, em Pernambuco, 17 anos depois das filmagens interrompidas em Cabra Marcado para Morrer, Murat revisita também a vida de alguns kadiwéu que atuaram no longa. É assim que vemos como Ademir Matchua , de simples cavaleiro, se tornou cacique; ou como Adeilson Silva, que mostrava grande identificação com a comunidade quando criança, foi trabalhar no posto de gasolina da cidade.
Dinâmico, o filme vai transitando sutilmente entre tópicos (rituais, religião, festas, sobrevivência…) para refletir o estranhamento sentido por Lúcia: agora os índios ouvem música sertaneja e assistem à tv enquanto conversam no idioma kadiwéu. É através da língua, aliás, que vemos de forma mais contundente a preservação da cultura da tribo. Todos os kadiwéu entrevistados (inclusive os que escolheram viver na cidade) dominam a língua. Os cultos evangélicos – religião que se disseminou por toda a aldeia – são realizados em kadiwéu, e até a bíblia foi traduzida.
O ponto mais marcante no documentário é a questão das terras, principalmente na forma como a sociedade branca intefere. A mão inevitável do capitalismo não deixa de causar um choque quando observamos, por exemplo, os homens da aldeia discutindo sobre lucro enquanto as mulheres observam de fora. O fato de os kadiwéu precisarem de dinheiro, aliás, é incompreendido por uma fazendeira durante a reunião entre eles. “Cada fazenda faz um acordo com a família que vai pra lá. O acordo que ficar bom pra essa família. Pra essa família poder ajudar ali, poder viver e ajudar a fazenda se tornar produtiva cada vez mais”, ela propõe. O encontro havia sido marcado porque os kadiwéu estavam sendo processados na Justiça após ocuparem as fazendas. É aí que aparece de forma mais contundente a angústia dos kadiwéu em tentar preservar seu passado e sua autonomia enquanto se adaptam à sociedade capitalista.
Durante as filmagens do documentário, a Comissão Nacional da Verdade descobriu um relatório que mostrava como os kadiwéu haviam perdido essas terras no passado. “Agora eu tenho a história dos meus antepassados. Como esses pecuaristas entraram pra cá. No duro, que nem a senhora está falando. Chegaram pra cá corrido da água. Quem cedeu pra eles ficar foi o Serviço de Proteção aos Índios (SPI). Foi em troca de gado”, resume Daniel Matchua.
Desde o fim das filmagens, o acordo com os pecuaristas foi desfeito. Três kadiwéu foram assassinados por disputas políticas na aldeia (entre eles Ademir Matchua), devido a discordâncias sobre a retomada das terras. O processo na Justiça contra os índios segue. Eles continuam lutando por suas terras. Por sua independência.