Texto e entrevista Priscila Pasko
Foram muitas mudanças. Aliás, elas ainda estão acontecendo para Natalia Borges Polesso. Desde o início de outubro deste ano, a escritora tem seguido uma rotina que não lhe concede tempo para avaliar com calma o momento pelo qual está passando. Ela retornou depois de nove meses de um doutorado-sanduíche, de Teoria em Literatura, na Sorbonne, em Paris IV, que cursa aqui na Pucrs.
Durante sua volta a Caxias do Sul, cidade onde mora, Natalia também precisou lidar com recomeços, rupturas e, como se não bastasse, com o lançamento do seu terceiro livro Amora (Não Editora, 256 págs, 2015), que teve sessão de autógrafos em Porto Alegre, na semana passada. “Nem sei como está sendo porque ando noutro ritmo. Talvez seja este o outro ritmo. Provavelmente eu não tenha me dado conta ainda”, diz.
Amora apresenta 33 contos que tratam sobre descobertas, angústias e silêncios de mulheres que vivem sua homossexualidade em diversas situações e fases da vida. O livro é dividido em duas partes. Em Grandes e sumarentas, há ironia, lirismo, deboche e humor. Para a escritora foi um exercício escrever contos mais extensos, com mais ações e teoria narrativa. Na obra encontramos uma jovem que tem receio de apresentar a namorada aos colegas de trabalho (Minha prima está na cidade), a vizinha “estranha“ que não é aceita no bairro (Flor, flores, ferro retorcido), a vida compartilhada na terceira idade (Marília acorda ou ainda Tias), um amor doce e pleno da juventude (Amora).
Já em Pequenas e ácidas, como o próprio nome diz, os textos são sucintos, assim como os títulos. Molotov, por exemplo, o conto que abre a segunda parte de Amora, é jogado no colo do leitor de cara. Além disso, a escrita é carregada na prosa poética e num tom quase confessional, muito semelhante àquele presente na obra de estreia de Natalia, Recortes para álbum de fotografia sem gente (Modelo de Nuvem, 132 págs., 2013), obra vencedora do Prêmio Açorianos de Literatura 2013, na categoria Contos.
É claro e explícito o carinho que a escritora tem por Recortes, produzido antes de Natalia participar efetivamente das aulas de escrita criativa, na Pucrs. “Eu acho um livro bem cru e é bonito por isso. Eu não queria perder este jeito de escrever, algo que está quase se perdendo. A gente tem uma literatura contemporânea com pouca poesia, eu acho.” Tanto Recortes para álbum de fotografia sem gente e Amora foram contemplados pelo Edital de financiamento FINANCIARTE, da Secretaria Municipal da Cultura de Caxias do Sul. No início deste ano, Natalia decidiu não apenas avistar de longe a poesia, mas molhar os seus pés nela, com o livro Coração à corda (Patuá, 86 págs., 2015). “Eu não sei se sou uma poeta de fato. Tem gente que faz coisas muito, muito boas, como Marília Garcia e Angélica Freitas. Parece que estou me rastejando ainda.” Os poemas estavam em uma pilha quando Natalia decidiu enviar a Eduardo Lacerda, editor da Patuá, que logo respondeu querendo publicá-los. “Me convidaram para outra coletânea de poesia agora. Não estou muito certa deste terreno, não estou pisando com muita confiança”, revela. Os escritores têm um medo maior de se arriscar na poesia, é algo que inibe?”, pergunto. “Nunca tinha pensado nisso, mas acho que sim. Poesia é o suprassumo da palavra. Mas, ao mesmo tempo, tu nunca sabe o que vai tocar o outro, não está nas tuas mãos isso”.
Conversei com Natalia no segundo dia da Feira do Livro de Porto Alegre. Ela falou sobre Amora, o (falta) protagonismo lésbico na literatura, a força que o conservadorismo está ganhando não só no Brasil, mas no mundo, entre outros assuntos que surgiram entre um gole de café e outro.
Nonada – Como foi a tua experiência durante o estágio em Paris?
Natalia – Para mim foi inigualável em vários âmbitos. Em minha vida acadêmica, afetiva, social… foi muito além do acadêmico. Meu orientador, Leonardo Tonus, na época, era o curador dos escritores no Salão do Livro, quando o Brasil estava sendo o país homenageado. Então eu acabei participando de coisas muito legais, com muitos escritores, vi muita gente falando, conheci a Paloma Vidal, que fez a orelha do livro [Amora]. Para minha carreira artística foi muito bom transitar por lá.
Uma coisa que me impressionou muito foi que, apesar do pessimismo de as pessoas dizerem que tem mais escritor do que leitor, há um interesse muito grande pelos escritores brasileiros no exterior para tradução, pelo menos lá. Paris é uma referência mundial para a literatura, mesmo que simbólica. Talvez seja mais simbólica até. Mas eu ganhei uma caixa com 12 livros de teatro contemporâneo brasileiro traduzido para o francês. Não é algo que se faz a troco de nada.
Nonada – Quando mudamos de lugar alguma coisa muda dentro da gente. Isso alterou, de alguma maneira, tua forma de escrever?
Natalia – Acho que muda bastante, mas não sei dizer sobre a maneira de fazer. Eu encaminhei o Amora para minha produtora cultural [Flor Nieto] enviar para um edital de financiamento, em 2014, e eu retrabalhei o livro em Paris. É claro que tua perspectiva de mundo muda. Tu tá vivendo novas coisas. Eu nunca tinha morado fora. Nunca tinha me encontrado sozinha num país diferente com uma língua estranha, mas que eu já estudava, claro. Eu descobri que sou muito mais sociável do que eu achava que era. Mas essas coisas de mexer no modo como se escreve, penso que são coisas que ainda vão reverberar. Estão muito cruas, eu recém cheguei.
Nonada – Todo livro nasce de uma vontade, claro. Qual era a tua ao escrever Amora?
Natalia – Quando eu lancei o Recortes, eu pensei que era um livro gay, as pessoas não. Mas tem alguns elementos, eu me sentia isso nele. Depois me perguntei: “por que as pessoas não acharam que era, se eu acho? E se eu quiser que seja?” Aí escrevi todo o Amora pensando num conjunto de contos que tivessem a ver com minha vida, com as pessoas que eu conheço, que fosse um livro de relações homossexuais. É isso. Alguns contos, os do Pequenas e ácidas, eu já tinha guardado, no blog, que faz horas que não atualizo, mas os mais longos, as primeiras narrativas, eu fiz todas para o Amora.
Nonada – Passou pela tua cabeça falar sobre homossexualidade entre homens?
Natalia – Até passou, mas não me interessava agora. Porque, pode ser ignorância minha, eu acho que falta um pouco desse protagonismo lésbico. Sei lá, às vezes parece que fica uma coisa meio apagada. Fiquei com essa vontade depois que escrevi algumas histórias e pensei “não, vou fazer só as amoras”.
Nonada – Acredita que falta esta abordagem na literatura?
Natalia – Acho que sim, o que tu acha? Ou a questão é: talvez não esteja aparecendo, não esteja aparecendo na mídia, nas prateleiras. Existe, claro que existe. Mas cadê? Quero ver mais. Daí achei que seria um bom argumento, quero ver isso.
Nonada – Como está sendo a recepção? Como foi em Caxias, em Porto Alegre?
Natalia – Não posso dizer isso ainda. As poucas pessoas que vieram me falar alguma coisa, disseram coisas legais de identificação. Mesmo lá na França, quando eu terminava um conto e pedia para alguém ler, e as meninas héteros diziam “nossa, me identifiquei”. Ah, tá, era isso que eu queria. Que as pessoas se identificassem mais pelo afeto, pelo amor, do que pelo gênero da pessoa que está se relacionando.
Nonada – Te incomoda Amora ser classificado como um livro-que-fala-sobre-relacionamento homoafetivo? Pois os contos tratam de descobertas, amores, desilusões, como qualquer outro casal…
Natalia – Acho que este é o ponto. Penso que pode ser dito que é um livro que tem protagonismo de mulheres lésbicas, mas não é um livro para o público gay. É um livro para qualquer pessoa. É tipo quando tu vai comprar um brinquedo na loja e a pessoa pergunta se quer embalagem rosa ou azul. Ou pergunta ”é brinquedo para menina ou para menino?” É como aquele meme que rola aí na internet: “usa as genitais para brincar?” Não. “Então serve para os dois”. A pessoa vai ler o livro, não transar com ele. Eu acho (risos).
Nonada – Assim como costumam se referir ao “beijo gay” nas novelas?
Natalia – Sim. Esses dias estava falando com um amigo, o Carlinhos Santos, que é um jornalista lá de Caxias, e no fim do e-mail eu mandei um “beijo gay” (risos).
Nonada – A discussão na França sobre as relações homoafetivas é muito distinto daqui?
Natalia – Cara, acho que o mundo está vivendo um momento muito conservador. Eles fazem manifestações mesmo. A direita vai lá se manifestar em prol da família. E as gurias vão lá e organizam uns beijaços. Mas acho que essa guinada da direita é meio mundial, as coisas estão se parecendo um pouco.
“Por ele todas as coisa foram feitas. E por nós e para nossa salvação ele desceu dos céus. E encarnou pelo Espírito Santo, no seio da Virgem Maria. No seio da virgem Maria, aleluia. Aqui é aonde eu quero chegar e é aqui que eu paro. Porque depois do seio foi só desgraça. Depois do seio se fez homem, depois foi crucificado, morto e sepultado. (…) E todos concordavam com a cabeça e erguiam as mãos para o alto (…)” Do conto “Deus me livre”
Nonada – Tu teve a intenção de tocar em alguns discussões em particular em Amora?
Natalia – Alguns pontos, sim. Da igreja quis cuidar muito para não criar uma igreja que não fosse muito real, então eu misturei vários elementos para não ficar assim “são os evangélicos, são os católicos”. Então criei uma simbologia mista para não ofender ninguém, porque há evangélicos e cristãos que são pró ou que não tem nada contra [relações homoafetivas] e não se metem no teu direito de viver. Mas sim, quis tocar nestes pontos.
Estamos ao lado de pessoas que querem se meter no nosso direito, que estão legislando inclusive, daí é foda. Ter o direito civil de casar, de ter plano de saúde, pensão… Tu precisa ter uma vida social integrada, tu não pode ficar excluído. E quem está legislando tá querendo tirar isso. Tirar, não. Não dar.
Nonada – Chega a usar isso em contos como o da Tia Marga?
Natalia – Em vários contos eu coloco elementos da realidade. Ou nomes reais das pessoas que moraram naquele lugar, que estiveram ali ou que foram vizinhos. Mas não que a história tenha acontecido daquela maneira, obviamente, porque é ficção. Mas fiz questão de colocar alguns elementos justamente para criar certo estranhamento para as pessoas do meu entorno. Eu me baseei muito na minha experiência e na de amigos para que realmente fosse uma vivência. Em torno disso trabalhei as histórias.
“(…) A verdade é que eu tinha casado sim, por oito anos, com a tereza, agora estava há dois anos sozinha.. Meu pai achava que não era casamento de verdade, que era uma fase – dos 18 aos 40, baita fase. Minha mãe fingia que não sabia, que não ouvia, que não enxergava nada e sempre, sempre me perguntava quando eu ia casar (…)” De “Tia Marga”
Nonada – Interessante que tu imprime, em alguns contos, o olhar da criança. Como é trabalhar com este ponto de vista diante do preconceito dos adultos, do estranhamento?
Natalia – Gosto muito de escrever do ponto de vista infantil. Ele te permite coisas que outros pontos de vista não vão. Esta ironia quase de dizer, ou essa crueza de verdade que se torna uma ironia depois, no olho do leitor. “Ah, se essa senhora está mesmo doente não deveria sair, se ela tem machorra, deveria ir para casa”. Uma situação dessas nunca iria acontecer com um adulto. Gosto de criar estas situações com crianças, eu acho traz surpresas mesmo para mim. Às vezes leio este conto e penso, que menina engraçada.
Nonada – Em Recortes, há uma bandeja de amora no conto Clichê, há também a citação de um molho de amoras. E agora um livro chamado Amora. É uma tentativa de relação barata minha?
Natalia – (risos) Acho que é uma boa curiosidade. Estava conversando com um amiga que fez um trabalho sobre uma escritora, e ela estava procurando símbolos na obra dela para criar um fio condutor de narrativas. Ela foi entrevistar a escritora [e apontou algumas observações]. E a autora “ah é, tem?”
O Barthes fala isso no Grau zero da escrita, que o teu estilo é algo que tu não controla, mas que, na verdade, deveria controlar. É que ele vem de um lugar que tu não entende às vezes. Eu não planejei essas coisas, nem nesse livro. Mas são coisas recorrentes. Tem outras coisas que depois eu vou lendo e me dou conta que me repito e é engraçado. São temas e, para além dos temas, são maneiras de se escrever que se repetem. Não é uma coisa planejada, é meio automática, sai. Mas acho que isso é legal.
Nonada – O livro tem muito humor, mas algumas personagens de Amora sofrem grandes conflitos internos, elas existem, mas não sabem que sentido isso tem. Em Dramaturga hermética e Interior selvagem as mulheres entram em conflito com a palavra, se sentem sufocadas por elas ou não as controlam… Para ti, existe um ruído entre sentir e dizer a palavra?
Natalia – Tu fez uma descrição minha. Isso de dizer coisas engraçadas. Sou a pessoa que perco o amigo mas não perco a piada, sou sarcástica. Isso está ligado com algo existencial de fazer um escape com os personagens. Sou ruim com as palavras, quando vou escrever fico confusa com elas, tenho dificuldade, me perco.
“(…) Eu expliquei para minha mãe que, se a vizinha estava mesmo com machorra, seja lá que doença fosse aquela, alguém precisa ir lá e desejar boas melhoras. E foi o que eu fiz. Minha mãe me abraçou bem forte e disse que eu era uma ótima menina e que por isso eu não devia brincar perto da oficina (…)” De “Flor, flores, ferro retorcido”
Nonada – Se sente bagunçada?
Natalia – Se sentir bagunçada é inevitável. Eu pareço muito despachada, mas não, é tudo uma grande farsa. Por isso faço tanta piada.
Nonada – Outra semelhança nos contos, essa maior. As mulheres tomam muitos medicamentos. Foi proposital ou nem percebeu?
Natalia – Eu percebi depois de ler os contos. Não sei porque. Eu achava que não tomava tanto remédio. Mas fui doente, tenho um problema cardíaco, preciso tomar remédio para pressão, odeio tomar remédio.
Nonada – A leitura e a escrita servem como remédio, ou nem isso basta?
Natalia – Não sei, porque às vezes é tão exaustivo escrever, que não sei se serve como remédio. Depende muito. Pode servir como catarse, mas também como exaustão que não chega a um alivio.
Nonada – A família se faz muito presente, direta ou indiretamente nos contos…
Natalia – Não que seja o primeiro espaço que vai reverberar para quem se assume gay, mas é da onde tu veio. Minha família, nossa, foram muito tranquilos. Minha mãe quase falou “ah, porque tu não me falou antes?” Mas acho que era uma maneira legal de eu pensar em um contraponto. De onde vem o estranhamento ou não, que tipo de silêncio acontece ou o que eu preciso disfarçar.
Nonada – Quando tu vai publicar a escritora incompreendida? [tirinhas que a escritora publica no Facebook]. Quando ela surgiu?
Natalia – (risos) Quando alguém tiver interesse, publico. Isso começou numa aula da Pucrs, do Biaggio [D’Angelo], durante a oficina de criação e que um dos gêneros abordado era quadrinhos. Mas eu não sei desenhar, não sei mexer em programas do computador. Então abri o Paint, dividi em quatro e fiz o desenho. Comecei a criar, o pessoal achou engraçado e sugeriu que eu fizesse uma página Facebook. Gosto dela, a Escritora Incompreendida é meio ranzinza, irônica. Por que, engraçado, parece que hoje tu não tem o direito de reclamar, tu tem que estar sempre de cabeça erguida. Ela pode reclamar. E a gente tem amigos escritores que se acham incompreendidos. Então fica um pouco desta incompreensão geral.
O Eduardo [Lacerda] curte a escritora. Um dia perguntei a ele, e aí, alguém comprou meu livro? E ele, “não”. Sério? Várias pessoas me pediram o link! “Isso sempre acontece”, disse ele, que sugeriu que eu fizesse uma tirinha sobre isso.
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