O sagrado e o profano de Maria Madalena

veredas-banner-300x300px (1)Maria Madalena tem fome pelo saber, enxerga anjos e demônios, cresce isolada em uma torre, ela transforma água em vinho. Esta mulher sabe ler, é violada pelo pai, se prostitui em troca de conhecimento, assiste à ressurreição de Jesus Cristo. Maria Madalena é profana mas também é sagrada.

Parte desta dicotomia que envolve uma figura bíblica feminina foi levada ao palco, em Porto Alegre, na peça A dama dos evangelhos. Através do Teatro de Objetos a atriz e dramaturga Elisa Lucas se multiplica, mostrando diferentes facetas de Maria Madalena. Manipulando elementos como tecidos e papéis, explora princípios simbólicos relacionados à sua figura. Estão presentes na peça a dramaturgia, o Teatro de Objetos (direção de Paulo Martins Fontes/CIA Gente Falante de Teatro de Bonecos) e a Contação de Histórias. A direção cênica ficou por conta de Deborah Finocchiaro (Companhia de Solos & Bem Acompanhados).

No começo eu tive fome. Dizem que primeiro o senhor fez o céu e a terra. Eu não acredito, nunca acreditei. Pensava que se o Senhor tivesse criado realmente a vida, teria começado pela fome. Porque quando alguém tem fome de alguma coisa é que se sente vivo de verdade. (Trecho de A dama dos evangelhos)

O texto desvenda também o arquétipo da mulher profana (Foto: Vilmar carvalho)
O texto vai do mito sagrado ao arquétipo da mulher profana (Foto: Vilmar carvalho)

O interesse da atriz teve início em 2006, em Sevilha, na Espanha, onde Elisa apresentou o projeto La pasión de Magdalena. Mas foi em 2011 que a pesquisa realmente começou. Na época, a atriz recebeu auxílio do Processos de Criação Dramatúrgica em Residência – IBERESCENA -, permitindo que ela desenvolvesse o projeto de criação dramatúrgica. Essa foi a primeira etapa da tese Lo profano y lo sagrado en el proceso de creación dramatúrgica del actor a partir del personaje de María Magdalena. Interrelacción entre teoría y práxis escénica, realizada na Universidade de Sevilla, dentro do Programa de Doutorado em Ciencias del Espectáculo. O trabalho recebeu ajuda da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior).

Dessa pesquisa, foi originada a peça, a qual apresenta um viés antropológico, e não religioso, como faz questão de destacar a autora aos espectadores ao final de sua apresentação. A intenção é bem clara: desvendar a figura da primeira testemunha da ressurreição de Jesus Cristo. Durante uma longa conversa da atriz com o Veredas, percebi que a tarefa não foi nada fácil.

A quantidade de informações com as quais a pesquisadora se deparou exigiu habilidade, tanto em relação ao número de versões, quanto de interpretações viáveis a respeito de Maria Madalena. No caso da Bíblia, Elisa a leu três vezes.

A verdade é que não há verdade 

Em MadalenaHistória e mito (Ésquilo, 2008), a pesquisadora e escritora portuguesa Helena Barbas esclarece que a verdade sobre a Maria Madalena é não haver verdade alguma. Para ela, quando se tenta explicar um mito “ou circunscrevê-lo a eventos concretos, está-se a cortar-lhe as asas, a reduzi-lo – a forçá-lo a regressar à tal história da qual se libertou”.

E foi exatamente isso que Elisa afirmou quando eu lhe perguntei se Madalena, de fato, existiu. “Ela é uma figura construída, inventada. Por outro lado a gente pode considerar a construção do arquétipo da mulher profana. Está na cara que ela é um mito, mas Madalena também representa uma série de coisas através dele”.

Em seu apartamento, enquanto preparava o café para mim, Elisa disparava as informações colhidas durante sua estada em Sevilha. Partir do começo é uma tarefa árdua, já que, em se tratando de Maria Madalena, os começos podem ser muitos. Mas demos início, liguemos os pontos. A personagem que nasce na Bíblia é citada 12 vezes no evangelho, em quatro episódios da vida de Cristo, que são, basicamente, pregação, crucificação, morte e ressurreição. E é por aparecer nesta última situação que Maria Madalena ganha tanta importância. Elisa destaca, no entanto, que o evangelho de São João é o único que a discípula está sozinha, ele dá maior protagonismo à mulher. Por isso é em São João que a atriz se guia para criar o texto de A dama dos evangelhos, além de “ser mais poético”.

Deveríamos ser vossa companheira. Mas os senhores nos aprisionam com ignorância, silêncio e claustro. Por que a mulher e a serpente são malditas se elas mostraram o conhecimento ao homem? Apedrejem-me! Apedrejem a que não usa véu! Que não tem filhos! Que anda só e expressa sua vontade. Apedrejem a “pecadora”! Amanhã OS SENHORES apedrejarão vossas filhas e as filhas de vossas filhas (Trecho de A Dama dos Evangelhos)

A dramaturga Elisa Lucas procurou um viés antropológico para a peça (Foto: Priscila Pasko)
A dramaturga Elisa Lucas procurou um viés antropológico para a peça (Foto: Priscila Pasko)

O primeiro indício deste imaginário nasce no ano de 1051, em Vézelay, na França, quando os monges beneditinos dizem que no local estão as relíquias de Maria Madalena. Mas, por outro lado, como alerta Elisa, tal afirmação poderia ser uma estratégia, pois os monges reivindicavam uma reforma na basílica. Na mesma época em que surgem dois relatos sobre Maria Madalena, a vida apostólica – narrando a viagem da Maria Madalena com São Máximo (“esse caminho eu percorri todo”, conta Elisa) – e a vida eremítica.

Baseada nas leituras que fez, Elisa conclui que a figura da discípula já existia e, portanto, não poderia ser excluída da história alguém que viu cristo ressuscitado. Maria Madalena é a prova viva de que Cristo ressuscitou, explica a atriz, lembrando que os Concílios procuraram embaçar esta lenda. Contudo, Elisa mergulhou mais fundo e também estudou os evangelhos apócrifos, ou seja, os textos não reconhecidos pelo cristianismo ortodoxo.

Nos apócrifos, Maria Madalena será considerada uma mulher que tinha conhecimento, uma líder, a companheira de Jesus, sua discípula, a bem-aventurada. Elisa suspeita que Madalena tenha sido uma apóstola, mas, pelo fato de as mulheres não terem participação dominante na Igreja, ela foi suprimida e considerada prostituta.

“Tu já ouviste falar na Maria Madalena como prostituta, né?”, me pergunta Elisa sugerindo a dúvida de quem já sabe a resposta. “Sim”, respondo. Então ela me conta que existem pelo menos dez relatos do imaginário de Maria Madalena que se inspiraram na biografia da Santa Maria Egipsiaca. Conhecida na Europa, Egipsiaca foi uma prostituta que nasceu no ano 344d.C, ou seja, usaram a história de uma prostituta de 300 anos pós-Maria Madalena. “Isso, talvez, porque precisassem construir um passado ou porque eles não podiam dizer que ela foi esposa de Jesus, não sei.” Ainda assim, não existe nenhuma prova de que Madalena fora prostituta ou que tenha sido ela a apedrejada, como na conhecida passagem.

A lenda no palco e na pesquisa 

Cena do espetáculo A dama dos evangelhos (Foto: Vilmar carvalho)
Cena do espetáculo A dama dos evangelhos (Foto: Vilmar carvalho)

O texto foi escrito em Sevilha por Elisa enquanto ela ensaiava. Teoria e prática andando juntas. Para dar voz à personagem que interpreta e possibilitar que a história se encaixasse no texto de A dama dos evangelho, Elisa Lucas criou um passado para sua Maria Madalena. Brincou com as palavras e seus significados, assim como o próprio nome, Maria de Magdala (torre) e colocou a personagem como uma menina que cresceu dentro de uma torre. Como solução para que ela saísse de casa, Elisa acrescenta a morte da mãe e do pai, após este a violar. Incluiu a prostituição em troca de conhecimento e a vidência manifestada desde criança – para justificar sua visão de Jesus ressuscitado mais tarde. Da Legenda Áurea (ou Lenda Dourada) e na Pistis Sophia, texto gnóstico, há indícios de que Madalena conhecia as escrituras

Esta não é a primeira vez que Elisa explora no teatro as nuances de uma mulher. Em 2004, ela levou ao palco Confesso que Capitu (direção de Roberto Birindelli), peça que tratava sobre a personagem do livro Dom Casmurro, de Machado de Assis. Ao lado de sua estante de livros, onde se sente segura para fazer consultas precisas às minhas perguntas, Elisa responde mais duas dúvidas pontuais antes de eu ir embora.

VeredasTe reconheces como uma atriz focada no resgate de personagens mulheres? Isso está claro?

Elisa – Antes de tudo eu sou atriz, se fosse ator, talvez eu pesquisasse homens. Me aproprio de tal história para construir aquela que eu quero contar. E cada vez eu me apaixono mais pelo feminino. Outro dia me perguntaram porque eu achava importante levantar bandeira do feminismo. Olha, eu nunca pensei “vou fazer um teatro feminista”, mas eu percebo no feminino possibilidades impressionantes de serem levadas à cena. Se eu disser que é inconsciente, estarei mentindo. Por outro lado, sinto medo em ser panfletária. Minha proposta é ir na raiz das coisas. Quando trabalhei a Capitu, trabalhei o desejo da menina, da jovem, da mulher, da mãe e da velha. Quando escolhi Maria Madalena, pensei em trabalhar o sagrado e o profano no feminino e tive que me meter muito mais afundo em questões de antropologia.

Veredas – No caso de Maria Madalena, sentiste receio de se limitar ao profano e ao sagrado, sem considerar o que pode haver além disso, ou não era a intenção da pesquisa?

Elisa – Ficou muito claro, para mim, a vida dela como apóstola. Acho que explorei na medida cada um dos dois e procurei ser fiel ao que eu estava pesquisando. Fiquei muito mais transitando pelo profano e sagrado do que sair em busca de uma verdade ou contestação. Seria possível fazer outra Maria Madalena, mas ainda preferi costurar estas versões. Optei por fazer um texto mais rebuscado, que ele falasse por si. Não era um texto para quebrar paradigma. O texto final da peça é muito Maria Madalena para mim: “criticam-me e louvam-me com a mesma convicção. Minhas vestes são páginas acetinadas de textos proibidos. Abraço a morte. Estou nas ruas. Sou incompreendida, bilíngue, fugitiva. Rasgo minhas vestes de papel e em minha nudez se vê a alma do mundo”.

****

Hora de ir embora. Me despeço e, da porta de seu apartamento, a atriz se coloca à disposição para quaisquer esclarecimentos que eu venha precisar para acrescentar à entrevista. Entro no elevador; Elisa fica, ela e suas Madalenas, as sagradas, as profanas e as que ainda estão para serem descobertas.

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Jornalista freelancer na área cultural e graduanda no Bacharelado em História da Arte (Ufrgs) e escritora. É autora do livro de contos “Como se mata uma ilha” (Zouk, 2019).
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