Uma noite com quatro DJs que simbolizam a base da cultura Hip-Hop

Fotos: Gisele Endres

Dançar é uma das formas mais livres de se expressar. Deixar o corpo responder à batida da música, sem restrições, sem limites. Às vezes até pode haver uma coreografia, mas em algum momento, a improvisação domina o que já estava pré-estabelecido. Na noite da última quarta-feira (25), o Bar Ocidente recebeu mais uma edição da festa VooDoo, que por sua vez realizou um encontro de gerações de DJs. Diferente da apresentação de uma banda, um show com DJs não tem apenas um foco. As atenções podem se voltar à pessoa que está tocando, mas também aos dançarinos, às bebidas, à decoração, à diversão, ao contexto da festa. DJ é o pilar base da cultura Hip-Hop, pois foi com a música que os outros três elementos (MC, Grafiti e Break) se desenvolveram. Hoje, chamamos de DJ qualquer um que toca música em festa, mas é essencial saber a origem de uma nomenclatura que possui uma identidade forte. A principal atração era DJ Maseo, americano e integrante do grupo De La Soul. Além dele, DJ Barata, baiano-campinense que tocava pela primeira vez em Porto Alegre. E DJ Nezzo, gaúcho e pioneiro na cultura Hip Hop no país.4

 

Dom Caiaffo e DJ Barata misturando estilos 

Para coordenar a noite, o mestre de cerimônia era Dom Caiaffo. Caiaffo também é DJ, e reverbera black music em seus sets. Foi ele quem começou os trabalhos e abriu a pista para o público. Gaúcho radicado em São Paulo, é um dos fundadores da festa VooDoo. Com início marcado para às 22h, a festa foi enchendo devagar. Em mais ou menos uma hora, poucas pessoas estavam presentes no Ocidente. Ainda tímidos pelo tanto de pista que estava vazia, muitos ficavam encostados na parede ou sentados, conversando. Os únicos que já sentiam todo o clima black eram os componentes dos grupos de dança 2Brothers e Attitude’s Crew. Os dois dançavam sem descanso, inventando coreografias na hora e se desafiando. A iniciativa logo surtiu efeito. Os que antes estavam escorados e apenas olhando, criaram coragem para arriscar alguns passos juntos dos dançarinos. Conforme a desinibição foi aumentando, os quadrados em preto e branco da pista iam sumindo.

A quarta-feira, véspera de feriado, destoava dos dias de frio passados no restante do mês de maio. Parecia ser a data perfeita para sair e se divertir. Talvez por isso o público não se preocupou com horário de chegada na VooDoo. Foi depois da meia-noite que a Rua João Telles ficou movimentada e reconhecível aos olhos da boemia porto-alegrense. Seguindo o convite para a festa, a grande maioria das pessoas foi com sapatos confortáveis para o Ocidente, prontos para dançar. Com espaço cheio, houve a primeira troca de DJ da noite. Entrava DJ Barata, soteropolitano de nascença, porém residente e atuante em Campinas, São Paulo. Barata promove uma das principais festas da região, a Nervosa, onde mistura ritmos internacionais e nacionais. Seu set comprova a alternância das nacionalidades.

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Caiaffo anuncia DJ Barata que trouxe em seu set muita música brasileira

Ele brinca com o som new wave de “Genius of Love”, da banda americana Tom Tom Club. E continua suas estrepolias abusando da brasilidade de Jorge Ben, tocando “Umabararuma”. O trabalho de um DJ é semelhante a de um pesquisador, é preciso entender a origem e história das músicas. Barata demonstra isso ao tocar muitos samples (melodia original que foi adaptada para uma nova música), como “Rapper’s Delight”, do grupo The Sugarhill Gang. A batida é facilmente reconhecida em “2345meia78”, do Gabriel Pensador.

O Ocidente estava lotado quando, por volta da 1h30min, surgiram dois homens no maior estilo americano: gordinhos, carecas, altos e de camiseta preta. Eram a atração principal junto de seu agente. Outro fato que denuncia a chegada de um DJ é a mochila. A sensação que fica é a de estar vendo todo o conhecimento musical da pessoa sendo carregado. Logo, ver uma mochila pesada é sinal de que uma boa apresentação estará por vir. O palco tinha 50% da sua capacidade ocupada pelas mochilas e materiais dos DJs da VooDoo, e mais uma não seria problema. Assim que Vincent Mason chegou, Dom Caiaffo subiu novamente ao púpito e anunciou o convidado ilustre. Todos aplaudiram.

 

DJ Maseo: “This is a really good party” 

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DJ Maseo está em turnê na América Latina, e Porto Alegre foi sua segunda parada, depois de Curitiba

Mason é rapper, produtor. Também conhecido como DJ Maseo, P.A. Pasemaster Mase e Plug Three. Integra o De La Soul, grupo nova iorquino de Hip Hop. O De La Soul é formado por um trio de amigos que se conheceram no colégio, além de Maseo, Dave e Posdnuos são os membros. Em 1989, eles lançaram seu primeiro álbum: 3 Feet High and Rising, que é considerado um clássico do Hip Hop. Diferente da influência e da mensagem gangsta passada pelos grupos de rap na época, o De La Soul se apresentou no mercado fonográfico com letras conscientes sobre afrocentrismo e uma batida menos violenta, mais centrada e cadenciada. Com essa nova forma de fazer rap, a música do grupo foi enquadrada em gêneros como jazz rap e alternative rap. Essa estética, voltada às questões de exaltação ao negro, presentes em outros grupos de rap americanos, formou um coletivo chamado Native Tongues. Entre seus muitos integrantes, se destacavam o A Tribe Called Quest, o The Jungle Brothers e a Queen Latifah.

A presença de um gringo ainda mexe com os ânimos dos locais. Mas o sentimento é válido quando existe um porquê nessa agitação. Nem todas as pessoas presentes no Ocidente conheciam Maseo e entendiam o contexto que se instaurava naquele instante, entretanto, isso não diminuiu as pessoas que foram apenas para aproveitar uma noite. Na verdade, esse era o espírito: aproveitar. Maseo ajeitou seu aparato e tocou por duas horas. Muito à vontade, pegava o microfone e interagia constantemente com o público (em inglês) perguntando se todos estavam gostando, dizendo que a festa estava boa, pedindo palmas e gritos em determinadas músicas. Havia uma atração internacional inédita tocando, mas Maseo já parecia fazer parte do ambiente.

Para um grupo menor, a história estava acontecendo diante de seus olhos. Leia-se fãs e DJs. Esses eram os que descobriram o Hip Hop ao longo de sua existência e o adotaram como estilo de vida. Esses tinham plena noção de que tinha um ídolo à sua frente. Em cada troca de música no set de Maseo, um espanto, uma emoção. Sem falar nos olhos, que se seguram mais e mais, tentando piscar o menor número de vezes possível. Um fato raro também estava acontecendo: a nata e o underground dos DJs de Porto Alegre estavam no Ocidente, prestando atenção no que Maseo fazia. DJ Jorge Cuts, DJ Dick Jay, DJ King Jay, DJ Nezzo, Dom Caiaffo, DJ Buiu e o baiano DJ Barata. Já os fãs pegavam seus celulares e chegavam o mais perto que dava e faziam o seu registro. Esses, além dos olhos, não conseguiam fechar a boca tamanha a admiração.

E Maseo surpreendeu. Os esperados raps dos anos 80 e 90 tiveram seu espaço, como “The Breaks”, do Kurtis Blow, “Mass Appeal”, da Gang Starr e “They Reminisce Over You”, do Pete Rock & CL Smooth”. Mas a proposta do convidado especial era criar uma atmosfera da década de 80. Plug Three embalou a noite com sucessos dance: “Don’t Stop ‘Til You Get Enough”, “Rock With You” e “P.Y.T”, de Michael Jackson. O rock-dance “Sweet Dreams”, da dupla Eurythmics. O hit R&B “I Can’t Go For That”, de Daryl Hall & John Oates. E o soul foi representado com “Sexual Healing”, de Marvin Gaye. Acompanhado de vinho, DJ Maseo deixou a noite mais leve, e frequentemente brindava com o público. Ele fez uma homenagem a J Dilla (1974-2006), grande nome do Hip Hop underground, tocando “The Look Of Love”, do Slum Village.

Quando o grande hit do De La Soul tocou, “Me, Myself and I”, todos entre fãs, DJs e público em geral reconheceram a importância do momento. Essa música está no número 46 das 100 melhores músicas de Hip Hop, do VH1. Sob sample de “(Not Just) Knee Deep”, do Funkadelic, Posdnuos e Dave rimam de forma engraçada sobre seu estilo. Passado das 3h30min, Vincent Mason foi se despedindo e deixou uma prévia do novo álbum do De La Soul And the Anonymous Nobody apenas para quem estava no Ocidente. E pediu para que ninguém gravasse. O público respondeu bem ao que ouviu desse novo projeto. O álbum será lançado em 26 de agosto desse ano.

 

DJ Nezzo e o respeito à cultura black 

Nezzo
DJ Nezzo é o número 1, foi ele quem começou a divulgar a cultura black no Rio Grande do Sul (Foto: Israel França/Capture)

Aos 50 anos de idade, DJ Nezzo foi o responsável por encerrar as apresentações da noite. Era a sua terceira participação na VooDoo, e parecia estar bem feliz por um DJ de fora abrir o seu set. Dom Caiaffo voltou ao microfone para relembrar que Nezzo é o número um do Estado. Foi ele quem começou a discotecar no Rio Grande do Sul, e é um dos precursores da cultura black no país. Nezzo foi apresentador do Hip-Hop Sul, na TVE – o primeiro programa destinado ao gênero. A madrugada já estava encerrando sua participação no dia, algumas pessoas começavam a ir embora. Os que ficaram puderam ouvir as músicas selecionadas pelo DJ Nezzo, que agradeceu o convite para tocar e falou que tinha feito sua seleção baseado na identidade da festa VooDoo. “And The Beat Goes On”, do The Whispers e “Just Chillin’ Out”, de Bernard Wright foram algumas das músicas tocadas.

A VooDoo é uma festa dedicada à cultura black e existe há seis anos em Porto Alegre. Porém, a maioria de seu público e quem organiza o evento são pessoas brancas, até porque são essas pessoas que têm mais acesso à cultura de fora do país. Com isso, surge a retórica da apropriação cultural. Em uma conversa com Nezzo, ouvi uma opinião interessante sobre esse assunto, que está muito vivo atualmente. Espaços como o Ocidente são multiculturais, são locais que, sim, estão em áreas privilegiadas da cidade, mas que abrem as portas e amplificam a presença de alguém ou de um grupo que geralmente não frequenta o lugar. O DJ Nezzo viu todo o processo de desenvolvimento do Hip Hop na cidade e vê a VooDoo e Ocidente como pontos de educação e respeito à cultura black, sem indícios de apropriação cultural. Tanto que sua primeira vez tocando no Bom Fim foi nos anos 90 e sempre se sentiu bem. Para ele, cada noite é única e em cada vez o sentimento para tocar e fazer o publico dançar é novo.

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Editor, apaixonado por Carnaval e defensor do protagonismo negro. Gosta de escrever sobre representatividade, resistência e identidade cultural.
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