O negro conta sua própria história em The Get Down

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O elenco é um ponto forte da série. (Esq-dir) Justice fez “Cidades de Papel”, Shameik protagonizou “Dope” e Skylan fez “A Derrota Inevitável de Mister e Pete” (Foto: Baz Luhrmann/Netflix)

Toda minoria carrega um fardo consigo: ser comparada com a maioria. Mesmo vivendo em um período de valorização étnica, ainda é comum ver a produção cultural negra sendo nivelada com referências brancas. No final de 2015, eu soube do lançamento de The Get Down pela Netflix e achei legal ver que uma história escrita por não-brancos seria contada em formato de série. Então, na sexta-feira, 12 de agosto de 2016, a série foi disponibilizada pelo serviço de streaming. Fiz a maratona e terminei os seis episódios em dois dias, fiquei encantado pelo trabalho. Resolvi que precisava escrever sobre, mostrar a minha perspectiva: de um negro.

Esperei alguns dias para começar, por se tratar de uma série da toda poderosa Netflix, sabia que a repercussão seria grande. O que aconteceu? A resposta foi da forma que eu imaginava, comparando com o que brancos já fizeram. Tanto em comentários em redes sociais quanto em matérias de veículos especializados. Alguns falavam que era esperada uma versão dos anos 1970 de Stranger Things, outro chegou a citar um “Moulin Rouge do gueto”, até textos sobre a história que não foi bem contada em Vinyl (série da HBO que foi cancelada). Parece que contar a história mostrando o ponto de vista de quem fez parte dela não é mais interessante. Esse é o diferencial de The Get Down, a série teve auxílio de muita gente que realmente participou do período retratado.

 

Um universo formado por não-brancos

Conhecido pelo filme Moulin Rouge!, o diretor Baz Luhrmann deu início à produção de The Get Down em 2006, devido a uma playlist sua composta por músicas Disco e Hip-Hop. Notando a riqueza dos gêneros, Luhrmann foi à busca de pessoas que pudessem ajudá-lo a contar essa história. Seu principal parceiro na construção da série foi Nelson George, icônico jornalista negro que tem diversos trabalhos e parcerias sobre cultura negra norte-americana. George possui 20 livros publicados, dentre eles perfis sobre Michael Jackson (1958-2009); um sobre James Brown (1933-2006); outros sobre o nascimento, evolução e morte de gêneros musicais afro-americanos, como Hip-Hop, Soul e Rhytms and Blues. Além disso, George fez sua estreia com produção audiovisual em 1986, ajudando no financiamento de She Got Have It (Ela Quer Tudo), o primeiro filme de Spike Lee. Nelson George supervisionou a produção durante as gravações de The Get Down, em uma entrevista o australiano Luhrmann resumiu a diferença em ter o jornalista como consultor: “Eu já estive no Bronx, mas eu ainda não tinha visto o Bronx com o Nelson”, disse.

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Aos poucos, o envergonhado Zeke se torna Books, uma figura conhecida no Bronx (Crédito: Netflix/divulgação)

Misturando realidade e ficção, The Get Down mostra Nova Iorque em 1977, uma cidade que estava à beira de um colapso por tamanha violência, com elevado índice de crimes e crescimento do uso de drogas. Paralelo a esse princípio de guerra civil, a música Disco vivia seu melhor ano, com recordes de vendas. Mas como tudo que faz sucesso pertence a um grupo seleto, apenas a indústria fonográfica era feliz com o momento. Para muitos americanos pobres na maioria 1977 foi um ano de revolta. Assim, a insatisfação das classes desprivilegiadas explodiu de forma agressiva, com um número grande de gangues na cidade, a queima de prédios, a popularização dos grafites e o surgimento do Hip-Hop.

A trama usa como base a relação de amizade e amor do casal porto-riquenho/negro Mylene Cruz (Herizen F. Guardiola) e Ezekiel Figuero (Justice Smith) para mostrar a transição musical da época. Mylene é a filha mais velha de uma família religiosa que sonha em ser uma estrela. Ela tem a voz e a aparência que toda gravadora compra no ato, mas vive o conflito de não ser encorajada por sua família a fim de ir atrás do seu sonho. Ezekiel é um rapaz que também tem talento para música, ele toca piano na mesma igreja em que Mylene canta, porém a poesia é o forte do rapaz. No primeiro episódio, Ezekiel ganha um concurso de poesia na sua turma de colégio, mas não tem vontade de ler para os colegas. Entretanto, no momento em que conversa a sós com a senhora Green (Yolonda Ross) é forçado a declamar a poesia sobre a perda de seus pais. O ódio e paixão em sua voz emociona a professora. Ezekiel simboliza o rap, ainda novo, com medo de se expressar, sem graça, mas com muito talento para ser explorado.

Yolanda, Mylene e Regina (esq-dir) representam a vivacidade da era Disco. (Crédito: Netflix/divulgação)
Yolanda, Mylene e Regina (esq-dir) representam a vivacidade da era Disco. (Crédito: Netflix/divulgação)

Apesar de nova também, Mylene simboliza a figura da diva, vivendo a era Disco junto de suas amigas, escapando de casa com o intuito de impressionar o DJ Malibu (Billy Porter) com sua música na boate Les Inferno e alimentando a esperança de ser a próxima Donna Summer, (1948-2012), artista ganhadora de cinco Grammy’s e apelidada de Rainha do Disco e Primeira Dama do Amor. As cores e figurinos nas cenas de Mylene dão vida ao papel, no momento em que o sonho de ser uma estrela está em vigor, cores quente vêm à tela. Do contrário, sempre que há alguma discussão com seu pai, o Pastor Ramon Cruz (Giancarlo Esposito), as palhetas se tornam frias, próximas do monocromático.

Outra transição marcante em The Get Down é a de músicas. Com início na década de 90, Ezekiel narra o contexto de Nova Iorque de 1977 com o rap “Rule The World (I Came from the City)”, de Michael Kiwanuka com Nas. Ao chegar nos anos 70, a trilha sonora é composta por hits da época: “Play That Funky Music”, de Wild Cherry; “Shining Star” e “Be Ever Wonderful”, do Earth, Wind and Fire; “The Rubberband Man” dos The Spinners e “Daddy Cool”, do próprio Daddy Cool. “Que Lío”, de Héctor Lavoe (1946-1993), talvez seja uma das escolhas mais representativas da série. A canção acompanha o líder comunitário Francisco “Papa Fuerte” Cruz (Jimmy Smits). Lavoe foi um cantor porto-riquenho que imigrou para os Estados Unidos no final do anos 70 em busca de espaço. Assim como ele, muitos latinos migraram para o país, pois encontravam dificuldades em suas nações. Lavoe foi um sucesso na época e tornou a Salsa um ritmo conhecido nos EUA.

 

Personificando os pilares do Hip-Hop

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Os “Get Down Brothers” possuem os quatro elementos. Shaolin (fundo) é o DJ, Rizzee (1°dir-esq) é o grafiteiro, Boo (2° esq-dir) sabe dançar break e Ra e Zeke são os MC’s (Crédito: Netflix/divulgação)

O Hip-Hop é um movimento que tem elementos, os famosos quatro pilares: o MC (Mestre de Cerimônias) que é encarregado de rimar; o Grafite, a expressão gráfica do movimento que exalta a cultura ou protesta; o Break, a dança de improviso praticada pelos B-Boys ou B-Girls que acompanha as batidas; e o Turntablism, nome dado a arte de mexer com as turntables e o DJ mixer, resumindo as mesas em que o DJ toca. Em The Get Down, os quatro elementos são apresentados através dos personagens.

A série é narrada por um rapper, por um MC, por Ezekiel em 1996 tida como a era de ouro do rap. Representando a poesia do Hip-Hop, duas pessoas fazem o personagem no futuro. A voz de Ezekiel é de Nasir Jones, rapper conhecido como Nas. Nas é de Nova Iorque e um dos principais artistas da costa leste americana, quando o assunto é Hip-Hop. O seu álbum Illmatic, de 1994, é considerado um dos maiores álbuns da história do gênero e se assemelha com a vida de Ezekiel. No Illmatic, Nas trata de temas como gangues e pobreza urbana por meio de narrativas em primeira pessoa. Produtor-executivo da série, ele fez as letras que contam/cantam a trajetória do protagonista. O corpo de Ezekiel é de Daveed Diggs, ator da Broadway vencedor dos últimos Grammy e Tony Award por seu duplo papel no musical Hamilton, onde viveu Marquis de Lafayette e Thomas Jefferson. A peça conta a história de Alexander Hamilton e foi aclamada em 2015, ao ponto dos atores participarem de ações em conjunto com o presidente Barack Obama.

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Jaden é o nome mais conhecido da série. Além de contribuir com o papel de Rumi 411, ele faz parte da trilha sonora de The Get Down (Crédito: Netflix/divulgação)

Shaolin Fantastic (Shameik Moore) é um grafiteiro renomado que chama a atenção por obras feitas misteriosamente, criando um misticismo na trama. Ezekiel e seus amigos Ra-Ra (Skylan Brooks) e Boo-Boo (T. J. Brown Jr.) admiram os grafites de Shao 007, um deles, Rizzee (Jaden Smith) é Rumi 411, grafiteiro em ascensão na cidade. Ainda no primeiro episódio, Rumi está no metrô junto de outros artistas e conversa com Crash (Mikey D’Astoli) e Daze (Tremayne Rollins) sobre a função social do grafite. Os dois são lendas do grafite nova iorquino e prestaram consultoria para a série. John “Crash” Matos ficou famoso nos anos 80 e passou de trens e muros para galerias de arte pelo mundo, além de colaborar com artistas como Keith Hering. Chris “Daze” Ellis seguiu o mesmo caminho, trabalhou junto de Jean-Michel Basquiat e, a exemplo de Crash, tem obras que homenageiam artistas como Madonna e Eric Clapton.

Apesar de ser reconhecido, Shaolin se aposenta do grafite para se dedicar à função de DJ. Ele é aprendiz de Grandmaster Flash (Mamoudou Athie), pioneiro no movimento e mais uma pessoa que colaborou com a série, como produtor-associado. Flash ensinou por horas e horas os atores o turntablism e ficou surpreso com a dedicação de Athie para fazer o DJ. No final do primeiro episódio, Shaolin explica para seus amigos como é a divisão dos reinos no Bronx. Essa cena tem o dedo de Nelson George para desmistificar o nascimento do Hip-Hop, no qual dizem que aconteceu só no sul do Bronx. No lado oeste, ficava o reino do DJ Kool Herc, foi ele quem inventou o “break”, o uso da parte instrumental de um vinil para fazer a batida. Para isso, ele utilizava duas cópias do mesmo vinil ao mesmo tempo. Na parte leste, ficava o reino de Afrika Bambaataa, criador da Zulu Nation, uma organização responsável por expandir as fronteiras do Hip-Hop com princípios de paz, amor, união e diversão. Bambaataa viajou o mundo mostrando sua batida eletro funk. E no sul, ficava o reino de Grandmaster Flash, DJ pai de uma geração que foi reinventando o Hip-Hop.

E é no momento do break, ou get down, que acontece fusão dos quatro elementos. Geralmente em local com a presença de grafites, o DJ toca seus vinis, enquanto os outros dois pilares improvisam: MC rimando e os B-Boys dançando. Os B-Boys são os que determinam se o DJ e o MC são bons e merecem continuar tocando/rimando. Novamente uma das habilidades de Shaolin Fantastic que, por meio da dança, incentiva Ezekiel a rimar na festa de nome Get Down. É o nascimento do rapper Books sob a frase norteadora da série: “líderes lideram, covardes se acovardam”. Outra figura histórica que prestou consultoria foi Kurtis Blow, rapper famoso dos anos 80 principalmente pelo rap “The Breaks”. Kurtis ajudou Justice Smith a se portar como um MC.

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No segundo episódio, Grandmaster Flash ensina Shaolin Fantastic o segredo para o get down (Crédito: Netflix/divulgação)

A expressão get down é usada de diversas formas ao longo da série. Serve de exemplo para se soltar, também é usada para falar de sexo e, principalmente, para o ato do DJ de mudar o vinil na batida. Enquanto o Grandmaster toca o tão cobiçado disco “Far Far Away”, de Misty Halloway (Pakoussa Remix), Shaolin explica para Ezekiel o momento get down. “O Grandmaster marca a parte do get down, às vezes a batida só toca por dez segundos e o resto do disco é violino e canto. Ele não toca essa merda, então toca o mesmo disco em dois decks. Enquanto o get down toca em um, ele prepara a mesma parte no outro. Eu não sei como ele sabe exatamente quando fazer, mas assim que um termina, ele vira o mixer e a batida não para. A batida não para, o poeta não para.” A série The Get Down mostrou em seis episódios o início de um movimento dominante nos dias de hoje. E assim como Hip-Hop se expressa em mais de um formato, get down é uma forma de dizer como cada pessoa se expressa, da melhor maneira possível.

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Editor, apaixonado por Carnaval e defensor do protagonismo negro. Gosta de escrever sobre representatividade, resistência e identidade cultural.
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