As donas do Fim do Mundo

Texto: Kelly Freitas

Metade pássaro

A mulher do fim do mundo
Dá de comer às roseiras,
Dá de beber às estátuas,
Dá de sonhar aos poetas.

A mulher do fim do mundo
Chama a luz com assobio,
Faz a virgem virar pedra,
Cura a tempestade,
Desvia o curso dos sonhos,
Escreve cartas aos rios,
Me puxa do sono eterno
Para os seus braços que cantam.

Murilo Mendes

 

O lugar é delas

Não eram 4h da manhã de segunda-feira (31) quando o primeiro grupo de pessoas se posicionou em frente ao portão do Campus Centro da UFRGS. Além da resistência, traziam consigo cobertores, cadeiras de praia e o chimarrão para acompanhar. Dentre eles, a estudante de Ciências Sociais Mariana Gonçalves, que na semana anterior postou em seu perfil no Facebook, um chamado aos amigos dispostos a enfrentar a fila pela retirada de ingressos para a apresentação de Elza Soares, na quinta-feira seguinte. Com os nomes dos interessados, foi montado um grupo de WhatsApp com cerca de 30 integrantes. Todos negros.

Sua iniciativa foi ao encontro de postagens que multiplicaram-se pelo evento oficial do show no Facebook. Nelas, predominantemente jovens negras e cotistas da UFRGS, reivindicavam qual seria o público de Elza Soares e sobre quem a artista canta. Tais postagens enfatizavam que as reais mulheres do fim do mundo seriam aquelas que não têm condições de pagar pela entrada de um show em ambiente privado, ou também as que trabalhavam no momento em que os bilhetes seriam distribuídos.

“Algumas pessoas brancas perguntavam se poderiam ir, ou afirmavam que iriam de qualquer maneira. Acho que o pessoal ficou com um certo medo que nós fôssemos interpelar de alguma forma, mas não era essa nossa intenção. Era problematizar para quem era aquele show, para quem a Elza canta as músicas dela” – afirma a estudante.

A letra da música "A Carne" foi a maior responsável por fazer com que os negros presentes se emocionassem (Foto: Anselmo Cunha/Nonada)
A letra da música “A Carne” foi a maior responsável por fazer com que os negros presentes se emocionassem (Foto: Anselmo Cunha/Nonada)

Nem todos participantes do grupo puderam comparecer à fila no dia agendado, mas a quantidade de pessoas que chegaram antes de os portões abrirem, fizeram com que os ingressos acabassem em torno de 9h da manhã. Mariana, e outras estudantes, deram início a uma chamada que auxiliaria na formação justa da fila no momento em que a distribuição começasse. Munidas de papel e caneta, foram anotando um a um os nomes de quem chegava após o grupo. Somaram, ao todo, 140 nomes em ordem de chegada. Toda essa organização foi em resposta aos tumultos gerados pela distribuição de entradas para o primeiro show gratuito pelo projeto Unimúsica de 2016. No mês de junho, diversas reclamações de desorganização marcaram a passagem da cantora Maria Bethânia pela UFRGS.

“Até a diretora do DDC chegou pela manhã para organizar e já estava super organizado. Várias pessoas elogiaram e gostaram da ideia porque o show da Bethânia foi realmente um caos”, finaliza Mariana.

De fato, a repercussão das postagens anteriores à data de retirada dos convites gerou alguns conflitos no próprio evento do Facebook. Algumas pessoas brancas acusaram as postagens como racismo reverso. Como resposta, alguns comentários grifaram trechos de um texto de autoria de Djamila Ribeiro, publicado pela Carta Capital em novembro de 2014, como: “Racismo é um sistema de opressão e, para haver racismo, deve haver relações de poder. Negros não possuem poder institucional para serem racistas. A população negra sofre um histórico de opressão e violência que a exclui” escreve a pesquisadora na área de Filosofia Política e feminista.

 

Quando um ícone se abstém

Elza não tinha conhecimento dos fatos que rodearam sua apresentação em Porto Alegre, mas isso mudou durante o show (Foto: Anselmo Cunha/Nonada)
Elza não tinha conhecimento dos fatos que rodearam sua apresentação em Porto Alegre, mas isso mudou durante o show (Foto: Anselmo Cunha/Nonada)

A limitação imposta aos veículos de mídia alternativa de levarem apenas uma pergunta, cada um, a uma personalidade tão cheia de história e representatividade fez com que a escolha dessa mesma questão ficasse mais difícil. Em algum momento, entre a passagem de som e o início do show, como uma repórter recém-formada, eu iria entrevistar uma mulher com mais de 60 anos de carreira. Chegado o momento, em um espaço restrito atrás do palco, Elza estava em meio a uma entrevista e eu poderia me localizar ao lado. Escolhi não ignorar o contexto de luta que envolveu todo o evento.

Ao informar à Elza sobre as postagens no evento oficial que pediam às pessoas brancas que cedessem seu espaço na retirada de ingressos à mulheres negras, Elza afirmou não saber de nada e, por isso encontrava-se em uma posição complicada sobre ser, ou não, representada por aquelas que a alçam como porta-voz. Aproveitando o espaço de tempo até a formulação de outra pergunta de outro veículo, questionei Elza sobre como é ver a população negra de Porto Alegre, a cidade onde ela cantou pela primeira vez como profissional, trazida por Lupicínio, mobilizando-se para assistir a seu show:

“Pode vir negro, branco, não tem problema. Acho que a dignidade não está na cor da pessoa. O caráter não está na cor da pessoa.”

Elza nunca se pôs o rótulo de cantora de protesto, mas carrega a luta de milhões de mulheres negras pelo Brasil em sua própria história de vida. A menina de 13 anos que se apresentou no programa de calouros apresentado por Ary Barroso (1903-1964), pela Rádio Tupi, buscava uma forma de conseguir dinheiro para comprar remédios para o filho recém-nascido. Ao longo de toda vida, Elzinha teve nove filhos e perdeu cinco deles. O único fruto de seu casamento com o jogador Mané Garrincha, faleceu em um acidente de carro somente três anos após a morte do pai, aos nove anos.

Em contraponto a tantas dores, a cantora que hoje chega à marca de 34 álbuns gravados em estúdio, teve sua carreira reconhecida internacionalmente em 1999, ao ser eleita, pela Rádio BBC de Londres, como a cantora brasileira do milênio. Desde seu início como caloura até agora, acumula indicações ao Grammy Latino e grandes parcerias musicais. Suas turnês já passaram pela Europa, América do Norte e América do Sul e, em 2014, foi lançado o longa-metragem My Name Is Now, fruto de pesquisas realizadas pela jornalista e cineasta Elizabete Martins Campos, após o aniversário de 50 anos de carreira de Elza.

 

“Vocês nos devem até a alma!”

Não passava de 20h10min quando Elza iniciou seu show com “Coração do Mar, a primeira canção de seu disco lançado em 2015. Enquanto sua voz anunciava a redenção depois de dias de colaboração e luta entre a comunidade negra e estudantil de Porto Alegre, mulheres negras que chegavam após o início do show eram barradas na entrada, mesmo com ingresso em mãos. Negralisi da Rosa, estudante de Enfermagem da UFRGS, foi quem recebeu uma chamada e uma mensagem de uma das impedidas de entrar. Ao sair do show para verificar o que estava acontecendo, recebeu o argumento da equipe de segurança de que havia sido a própria Elza que não gostaria de pessoas entrando após o início de sua apresentação.

“Todos os bilhetes que chegavam, nós distribuíamos para as mães negras. Nós fazemos essa auto-crítica porque, ao mesmo tempo que nós estamos ali, somos privilegiadas. A UFRGS é pública e deveria fazer algo aberto ao público. Um show na quinta-feira, às 20h, sabendo-se que parte da população enfrenta a dupla jornada de trabalho e não consegue ir, é segregador.”

Ao mesmo tempo em que acontecia a discussão, pessoas brancas se retiravam do show para ir embora, afirma Negralisi. Antes de se retirar do auditório, ela argumenta que ainda haviam lugares desocupados.

“O segurança disse que não iríamos entrar de volta, então ameacei chamar a polícia pelas minhas coisas estarem lá dentro. Conseguimos voltar, mas eles foram irredutíveis e não deixaram elas entrarem junto”, conclui.

Pouco antes da metade do show, enquanto Negralisi se mantinha fora do auditório, uma das principais músicas que marcaram a carreira de Elza consagrava a noite. “A Carne”, escrita por Seu Jorge, Marcelo Yuca e Ullisses Cappelletti, gravada por Elza em seu EP Do Cóccix Até O Pescoço (2004), foi responsável por dar liberdade às lágrimas que corriam pelo rosto de negros e negras que se colocaram de pé, do início ao fim da música. Assim como as lágrimas, o grito bradado de punho cerrado e elevado acima das cabeças “Jovem negro vivo, jovem negro forte. Que não teme a luta, que não teme a morte!” foi entoado por alguns segundos e assistido por Elza e sua banda, como resposta ao chamado da mesma para a luta. Luta essa que “fica mais bonita se for com todos juntos, de mãos dadas” defende Elza durante o show. Se ela lembrou da minha pergunta na entrevista anterior ao início da apresentação, fica a esperança.

“Cara gente branca…” era como iniciava-se o discurso liderado por Mariana no momento em que os estudantes negros perceberam que, apesar da mobilização, a maioria era de brancos na fila da retirada de ingressos. Eles elaboraram um texto na hora solicitando que, conscientes de seus privilégios, as pessoas entregassem o segundo bilhete a uma mulher do fim do mundo. Entre os dias que se passaram até o show, e inclusive, minutos antes de ele começar, tanto brancos quanto negros estavam disponibilizando entradas para a distribuição pelo movimento negro. Mariana reconheceu que é possível, e até necessária, uma participação do branco na luta contra o racismo estrutural.

“Não vamos conseguir alcançar nada se não estivermos todos juntos, mas existem momentos em que o protagonismo é nosso e têm brancos que entendem isso”, assume Mariana, mas ao mesmo tempo alerta: “Tem gente que diz “eu não entendo a maneira de atuar de vocês”. Não vão entender mesmo porque não vivem o que nós vivemos todos os dias, mas é importante que entenda qual é o teu lugar nisso tudo. Qual o teu papel nessa estrutura toda, que vai além dessa bolha que a gente vive.”

De volta ao auditório, Negralisi disse que não se sentia mais inteiramente ali. Ao dar de cara com aquilo que lida diariamente, justamente em uma ocasião em que acreditava que seria de compensação, caiu no choro e questionou a si mesma. E toda essa tempestade acontecia dentro dela enquanto voltava sua mente e seu coração aos efeitos causados pela voz de Elza.  

“A Elza me representa enquanto mulher negra e mãe. Por já ter passado por situação de abuso, por ter me tornado universitária e hoje fazer parte do movimento negro. Ela representa pela história dela. Hoje ela está ali toda debilitada, cantando sentada, mas cantando a história dela.”

Elzinha, que aparentava serenidade na entrevista, como se disfarçasse sua voz rasgada e capaz de conduzir um show por mais de uma hora de duração, manteve-se sentada durante toda a noite. Sua banda completamente sintonizada e incrível, a reverenciava constantemente. A cada entrada de música atrasada de Elza, eles se adaptavam, fazendo com que o show fluísse perfeitamente, e a “diva”, como gosta de ser chamada em sua página oficial no Facebook, pudesse transmitir, até a última cadeira do auditório, toda a sua energia que vem da alma.

Ainda na entrevista coletiva, ao responder uma repórter sobre quem seriam as mulheres do fim do mundo, Elza colocou que seria ela mesma e todas as mulheres simplesmente por serem mulheres em um mundo machista. Em decorrência do evento realizado no último dia 3, essas mulheres e outras, cujas histórias não puderam ser contadas, foram batizadas pelo fogo da luta e tiveram sua noite de glória. De certa forma, privilegiadas de poderem fazer parte do ambiente acadêmico, mas posicionando-se como responsáveis pela mudança que galga diariamente em direção ao fim de um mundo em que o negro (e especialmente a negra) fica em silêncio diante de obstáculos impostos por uma estrutura racista.

“Um dos seguranças me disse, antes de eu retornar ao show, que eu não tinha nem que estar ali. Foi o que pensei quando ela cantou “você vai se arrepender de levantar a mão pra mim”. Eles vão se arrepender em algum momento, então por isso a gente tem que estar firme. Pra que isso um dia acabe”, relata Negralisi sobre o momento em que Elza interpretou a canção Maria da Vila Matilde – Porque se a da Penha é brava, imagina a da Vila Matilde.

Negralisi condensa sua revolta em palavras e é ovacionada pelo público preto (Foto: Anselmo Cunha/Nonada)
Negralisi condensa sua revolta em palavras e é ovacionada pelo público preto (Foto: Anselmo Cunha/Nonada)

Assim como Elza, Negralisi conseguiu tirar de dentro de si, apesar de toda a dor, a capacidade de mobilizar todos à sua volta. Com o fechar final das cortinas do palco e em meio a gritos de “Ei, Elza, a UFRGS é racista!”, deu início a um discurso. Ela escolhera contar o acontecido às mulheres negras impedidas de entrarem durante o show, tendo a colaboração de todos que repetiam suas palavras:

“Mulheres do fim do mundo foram impedidas de entrar para assistir o show. A desculpa da UFRGS foi racista. Essas mulheres, que vieram da sua terceira jornada de trabalho, estavam com seu ingresso na mão e foram impedidas de adentrar nesse espaço. Ei, UFRGS, escuta: vocês nos devem até a alma! Isso é só o começo”.

Confira mais fotos:

Foto: Anselmo Cunha/Nonada
Foto: Anselmo Cunha/Nonada
Foto: Anselmo Cunha/Nonada
Foto: Anselmo Cunha/Nonada
Foto: Anselmo Cunha/Nonada
Foto: Anselmo Cunha/Nonada

 

Foto: Anselmo Cunha/Nonada
Foto: Anselmo Cunha/Nonada

 

Foto: Anselmo Cunha/Nonada
Foto: Anselmo Cunha/Nonada
Foto: Anselmo Cunha/Nonada
Foto: Anselmo Cunha/Nonada
Foto: Anselmo Cunha/Nonada
Foto: Anselmo Cunha/Nonada
Compartilhe
Ler mais sobre
Processos artísticos Reportagem

Traduzir e transcender: Conheça a multiartista e cantora lírica Inaicyra Falcão, que entoa versos em Iorubá

Comunidades tradicionais Processos artísticos Resenha

Do ventre da árvore do mundo vem “O som do rugido da onça”

Coberturas Processos artísticos Reportagem

África(s) em cor, som e movimento

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *