Carmen da Silva: histórias de uma feminista de respeito (e ousada)

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Pouco se ouve falar de Carmen da Silva (1919-1985), isso para não citar quem sequer teve o prazer de conhecer o seu legado. Confesso que eu era uma dessas pessoas, porém, logo fui socorrida pela escritora Lélia Almeida, que revelou a mim a importância de Carmen para o feminismo e para a literatura de autoria feminina. Serei para sempre grata.

Durante as pesquisas sobre a Carmen, conheci a professora Nubia Hanciau, Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ela, que pesquisa Carmen desde a década de 1990, coordenou o projeto de pesquisa Carmen da Silva, uma rio-grandina precursora do feminismo brasileiro, no qual se inclui o site administrado por ela dedicado à escritora: carmendasilva.com.br. Nele constam biografia, bibliografia, entrevistas, artigos, dissertações e teses produzidas sobre a autora, além de documentos.

Pode-se dizer que Nubia é responsável pelo primeiro projeto acadêmico sobre Carmen da Silva. “E que eu saiba o único, com vários trabalhos produzidos, artigos meus, ensaios de Iniciação Científica e quatro dissertações de mestrado defendidas”, explica a professora. “Mas sou chamada para falar sobre Carmen e sua obra com pouca frequência”, conta. Carmen nasceu na cidade de Rio Grande, no Rio Grande do Sul. É considerada uma das precursoras do feminismo no Brasil. Viveu no País até os 23 anos de idade, quando foi viver sozinha no Uruguai. Seis anos depois, foi morar na Argentina. Em 1962, Carmen retorna ao Brasil, para o Rio de Janeiro, e, no mesmo ano, passa a assinar a coluna A arte de ser mulher, na revista Claudia. Foi ali que, durante 23 anos, a autora incentivou as mulheres a trabalharem, falou sobre o divórcio, sexo, filhos e a importância do protagonismo feminino, em uma época em que temas como esses não eram discutidos abertamente. Ela recebia, em média, 500 cartas mensais de suas leitoras e leitores, nas quais estavam registradas dúvidas, agradecimentos e até mesmo insultos.  

Escritora, jornalista e psicóloga, Carmen produziu artigos, ensaios, contos, crônicas, novelas e romances. Todos com viés feminista. Entre as obras mais conhecidas, o romance Sangue sem dono (1964), as duas coletâneas de artigos A arte de ser mulher (1966) e O homem e a mulher no mundo moderno (1969), e a autoficção História híbridas de uma senhora de respeito (1984). A julgar pelos título citados, percebe-se uma aproximação com a filósofa feminista Simone de Beauvoir (1908-1986), que escreveu, entre outros livros, O sangue dos outros (1944) e Memórias de uma moça bem-comportada (1958). Nubia conta que seu primeiro contato com Carmen, aconteceu por meio dos textos que ela publicou na revista Claudia. “Surpreende seu estilo sempre atual, jocoso, leve, agradável de ler, demarcado pela qualidade literária indiscutível. Sua coragem e seu pioneirismo contra a herança do sistema patriarcal provocam até hoje e desafiam homens e mulheres à reflexão”, destaca a pesquisadora.

Em seus escritos, Carmen incentivou às mulheres a serem independentes (Foto: divulgação)
Em seus escritos, Carmen incentivou às mulheres a serem independentes (Foto: divulgação)

Como resultado de uma série de trocas de e-mail, Nubia Hanciau concedeu esta entrevista que você, leitora e leitor, conferem agora:

Veredas – Quando você deu início à investigação acadêmica sobre a Carmen?

Nubia Hanciau – [após diversas pesquisas e trabalhos] Pensei na importância de propor na cidade natal da escritora um projeto que recuperasse sua vida e sua obra. Surpreendentemente não havia nenhuma pesquisa sobre ela, nem na cidade, nem em outro lugar naquele momento. A ideia tomou corpo quando da criação do PPG-Letras da Universidade Federal do Rio Grande, em 2002. Passamos a estudar, meus alunos e eu, no âmbito do projeto sob minha responsabilidade, intitulado Carmen da Silva, uma rio-grandina, não apenas seus textos jornalísticos, mas também seus livros ficcionais, muito menos conhecidos naquele momento.

Veredas – Em seus artigos, você fala na “estética feminina” na escrita de Carmen. De que forma isso aparece em suas obras?

Nubia – Essa estética se vê com mais nitidez nas coletâneas de textos jornalísticos, nos quais Carmen escrevia para as mulheres, apurando a consciência feminista. As abordagens as interessavam, o que não significa dizer que seus textos não pudessem interessar ou ser lidos por homens. Já nas obras ficcionais, a exemplo do primeiro romance Setiembre (1957) [lançado na Argentina] traduzido mais tarde por Fuga em setembro (1973), a narrativa chegou a ser confundida como sendo de autoria masculina. Destacam-se neste livro as baixas condições socioeconômicas da maioria das personagens, situação que emerge no trato da sexualidade, da política e das demais esferas da sociedade argentina quando da Revolução Libertadora. Pouco se explorava desses temas tabus à época, daí a crítica ter sido levada até mesmo a acreditar que o nome da autora fosse pseudônimo e que o romance tivesse sido escrito por um homem.

Veredas – Carmen citou o termo “feminista” oito anos depois de começar a escrever na revista Claudia. Ela se enxergava como feminista, se autodeclarava como tal?

Nubia – Ela própria declara que custou muito a assumir-se como tal. Na medida em que foi trabalhando os temas vividos pelas mulheres, foi assumindo-se aberta e francamente. “Eu sou feminista”, dirá finalmente em 1976 no artigo Porque sou feminista, publicado por Laura Taves Civita em O melhor de Carmen da Silva (1994), dizendo mais ainda: “Já é hora de assumirmos aberta e francamente a definição”.

“Como todo mundo, nasci encarquilhada e roxa. Fui recolhida por mãos capazes, pendurada de cabeça para baixo e levei a clássica palmada que, segundo a ciência já provou, não traz nenhum benefício ao bebê. Serve, isto sim, para que um homem despeitado desabafe agressão contra o fruto que não é de seu ventre.” (Histórias híbridas de uma senhora de respeito)

Veredas – Você saberia explicar como e por que os textos de Carmen não foram submetidos à censura, enquanto ela escrevia na revista Claudia?

Nubia – Essa indagação é minha e foi também a de Comba Marques Porto ao escrever A arte de ser ousada (Vieira & Lent Casa Editorial, 2015) quando em suas pesquisas para o livro examinava os artigos de Carmen da Silva na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro: “como sua escrita não foi alvo da censura tão feroz nos anos que se seguiram ao golpe militar?” Comba acredita, e eu também, na extrema habilidade de Carmen ao abordar com profundidade e inteligência os temas mais difíceis. Mas isto não basta para entender o que se passou. Talvez os generais não se sentissem ameaçados pela discussão de temas considerados de “mulherzinha…”; mesmo assim, eis um tópico que mereceria ser mais investigado e desenvolvido.

Nubia Hanciau é doutora em Literatura Comparada e estuda a obra de Carmen (Foto: arquivo pessoal)
Nubia Hanciau é doutora em Literatura Comparada e estuda a obra de Carmen (Foto: arquivo pessoal)

 

Veredas – Carmen recebeu uma forte referência de Simone de Beauvoir…

Nubia – Sim, sem dúvida. Carmen inclusive cita Beauvoir logo na epígrafe do seu autobiográfico – hoje talvez considerado autoficcional – Histórias híbridas de uma senhora de respeito, a célebre frase da escritora francesa: “On ne naît pas femme, on le devient” [“Não se nasce mulher, torna-se mulher”], que demonstra o quanto as ficções formam e transformam nosso cérebro, nos fabricam mais do que as fabricamos, arranjam para cada um(a) de nós, em nossos primeiros anos de vida, um ego. O eu é uma construção elaborada, que fixamos por mera convenção. Nota-se que tanto a obra da autora rio-grandina quanto a da escritora francesa demonstram a preocupação análoga em despertar nas mulheres o espírito de luta por igualdade de direitos, em denunciar uma sociedade opressora e injusta com as “minorias”, pois, apesar de as mulheres serem a maior parte da população mundial, elas ainda constituem minoria em termos de poder, voz e liberdade.  

Veredas – A carreira jornalística de Carmen se sobressaiu à literária?

Nubia – Acredito sim, que os artigos jornalísticos são mais conhecidos e foram muito mais lidos do que a obra literária, pouco difundida apesar de sua qualidade. É preciso lembrar que a revista Claudia, que os veiculava, era a revista de maior circulação na América latina, com um número expressivo de leitores. Além disso, muitos dos artigos foram e são até hoje retomados em publicações. Já os livros, hoje esgotados, não foram reeditados. Daí, provavelmente, o desconhecimento de Carmen e quem sabe até o descrédito no âmbito da literatura.

 “O que lhes proponho, em verdade, é radicalmente oposto às tradições em que foram educadas, aos preconceitos vigentes, à mitologia criada em torno do chamado “eterno feminino”, concebido em termos um tanto rococós de puerilidade, fragilidade, artifício e submissão” (Carmen da Silva em O homem e a mulher no mundo moderno)

Veredas – Qual é a situação dos direitos autorais e a viabilidade da reedição dos títulos, já que os títulos não foram mais publicados?

Nubia – Em algum momento tive interesse em republicar as obras ficcionais de Carmen, poucas, na verdade. Ao todo são quatro romances encontrados atualmente apenas em sebos, na maior parte das vezes em más condições, o aspecto visual pouco atraente, a escrita necessitando ser atualizada. Entrei na ocasião em contato com Alice [Del Fresno, sobrinha de Carmen), que ponderou não haver interesse, argumentando que o preço pelo qual os livros eram vendidos era irrisório. Por outro lado, comentou ainda que não se sentia autorizada em permitir a reedição, pois não se considerava herdeira.  No entanto, soube mais tarde que o inventário judicial nada mais é do que um ajuste entre os eventuais herdeiros, instrumento que confere a titularidade de cada um sobre o seu quinhão hereditário. Cresce de importância quando o patrimônio a dividir é considerável, coisa que, em tese, não se aplica aos direitos autorais de Carmen da Silva, não obstante a importância de sua obra.  Os direitos autorais de Carmen sequer foram arrolados no inventário. Logo, isso não foi de interesse dos herdeiros. Dá para entender que agora não impediriam as reedições já que o inventário se concluiu, a autora morreu, mas sua obra permanece viva. Entendo então que a família não impediria o curso dessa vida e dessa memória. Bastará que um dos herdeiros definidos (a lei os define independentemente de inventário) autorize a edição. O produto dos direitos autorais desta re/edição seria dividido entre os herdeiros que como tal viessem a se apresentar. Não se trataria de operação de alto valor, a desafiar conflitos entre os herdeiros. Não há, portanto, nenhum obstáculo jurídico ou real que impeça Alice, ou quem quer se apresente, a autorizar. Dito isso, poderia responder que não há entraves para a reedição da obra de Carmen. Embora no momento eu não tenha esse interesse, nada impede a meu ver que alguém pilote esse projeto.

[o Veredas conversou por e-mail com a sobrinha de Carmen, Alice del Fresno, que mora na Argentina, a respeito da possibilidade de novas reedições e direitos autorais das obras da escritora. Alice informou que “eles pertencem às respectivas editoras. Reedições só podem ser efetuadas com a licença das mesmas]

Confira entrevista com Alice del Fresno aqui.

Veredas – Qual a importância de Carmen para o feminismo e a literatura de autoriafeminina no Brasil?

Nubia – Embora alguns trechos ou excertos do que Carmen da Silva escreveu demarquem-se pelo contexto de sua época, sua escrita vai além das conjunturas e ainda hoje surpreende quando a lemos. Torna-se, portanto, importante incorporar às nossas memórias sua passagem e sua atuação no movimento feminista brasileiro, chamando as mulheres brasileiras à consciência do paradoxo que é ter alcançado a igualdade jurídica e permanecer no mesmo pé de igualdade dos anos 1970, quando se levantaram as revolucionárias bandeiras feministas lideradas por Carmen.

Se pouco avançamos nesse quase meio século no campo das relações afetivas e familiares, ainda hoje pautadas pela submissão das mulheres fundada nas mais sutis relações de poder notadamente no que concerne à eliminação da violência contra a mulher, dentro e fora do lar, também não fomos muito longe quanto aos direitos sobre o próprio corpo, quanto à questão da reprodução, em relação ao direito de decidir quanto à maternidade, o que pressupõe a descriminalização do aborto. O posicionamento de Carmen da Silva e, nessa esteira, o de mulheres engajadas, implica o ultrapassar e o alargamento do feminismo em direção a um sentimento mais social. A voz de Carmen reverbera ainda por ela mesma, mas fala também pelas mulheres de hoje, são multivozes que incorporam o eu das narrativas, antigas e atuais.

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Jornalista freelancer na área cultural e graduanda no Bacharelado em História da Arte (Ufrgs) e escritora. É autora do livro de contos “Como se mata uma ilha” (Zouk, 2019).
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