A loucura de transgredir

veredas-banner-300x300px (1)No livro Los cautiverios de las mujeres: madresposas, monjas, putas, presas y locas, a escritora mexicana Marcela Lagarde diz que a loucura das mulheres – a grosso modo – poderia ser definida pelo desdobramento de uma vida em cumprimento dos mandos e deveres da condição deste gênero. A loucura surgiria, então – ou passaria a ser encarada como tal pelo outro –  a partir da transgressão dessas condições de vida, do rompimento daquilo que a sociedade costuma esperar de uma mulher.

É possível perceber alguns traços dessa interpretação no mais recente livro de contos de Nara Vidal, A loucura dos outros (Reformatório, 2016). Nele, nos deparamos com mulheres invisibilidadas no casamento, abandonadas, infanticidas e suicidas. Ou seja, personagens que vivenciam situações-limite. Cada um dos, 21 contos (e um “Falso começo”) recebe o nome de uma mulher: Quem se revolta, se rebela – quem sai do formato aceitável pela sociedade que é tão machista – é considerada louca, comenta Nara na entrevista concedida ao Veredas.

Mineira de Guarani, Nara é formada em Letras pela UFRJ e Mestre em Artes pela London Met University. Já publicou os adultos Viajar sem dinheiro, gafes internacionais (2010) e Lugar comum (2015). Além desses, os infantis e infanto-juvenis O segredo de Amelie e As férias de Amelie e Julia (2012), Arco-íris em preto e branco (2013), Pindomara de Sucupira (2013), A menina e os relógios (2014), O doce plano das galinhas (2014), Dagoberto (2016) e Cadê o sono (2016).

A escritora mora em Londres desde 2001, mas continua ligada ao Brasil, não apenas por meio da escrita, como também na produção de eventos. Nara é responsável pelo Canalzinho, projeto que divulga a literatura em língua portuguesa para crianças e jovens imigrantes brasileiros (ou que falem português) e que moram em Londres ou Paris.

A loucura dos outros_Divulgação_Reformatório
O livro de contos traz histórias que explicitam o machismo da sociedade Foto: reprodução)

VeredasNara, por que tratar de loucura e por que da loucura das mulheres? [ainda que o livro não esteja restrito a este tema]

Nara Vidal – Para mim, o mais possível no livro foi fazer uso das personagens femininas, mesmo que nem sempre sejam femininas as vozes narrativas. Eu parti do ponto que eu conheço: sou uma mulher numa família de mulheres. Entre meu pai e meu filho são 70 anos de diferença e entre os dois, só mulheres. Todas nós crescemos e fomos criadas num ambiente machista porque foi um ambiente feminino. Tínhamos que nos comportar e nos vestir de determinada maneira e aprendemos vários preconceitos, inclusive contra nós mesmas.

Mas a grande surpresa foi que cada uma de nós precisou enfrentar problemas e desafios que colocavam por terra toda a feminilidade aprendida. Precisamos lutar feito homens, diria a sociedade machista na qual crescemos. Então, mesmo não tendo sido preparadas para igualdade de gêneros, conquistamos essa igualdade, seja através de um divórcio, de uma maternidade independente, da libertação da culpa sexual, do experimento da própria sexualidade, de viajar sozinha, de escolher quando ter filhos, de escolher não ter filhos, de poder escrever e ser possível viver disso.  É a história da emancipação a qual se refere Woolf no ensaio feminista e belíssimo A room of one’s own [Um quarto todo seu].

“Era eu. No reflexo do vidro era eu. Meu cabelo era uma juba bem cuidada, meticulosamente bagunçada, com cheiro de flor quase murcha não fosse por mim mesmo injetar-me água, na tentativa de evitar a tragédia que é a morte plena. Morrer aos poucos ainda é algumas vida”
(conto “Cecília”, em A loucura dos outros)

Veredas – No livro Los cautiverios de las mujeres: madresposas, monjas, putas, presas y locas, de Marcela Lagarde, entre outras definições, a autora diz que a loucura das mulheres é o resultado de uma vida em cumprimento dos mandos e deveres da condição da mulher. A loucura seria encarada como tal a partir da transgressão dessas condições de vida. É esse conceito que você procura imprimir em alguns contos, já que nem todas as personagens são o que a sociedade entende por “loucas”?

Nara – Sim, acredito que essa análise se aproxime muito do que eu pensei depois de ler o livro. [Simone] Beauvoir falou sobre essa armadilha na qual caímos: a questão do feminino ser uma invenção da sociedade. A expectativa de um comportamento “feminino” resultou nessa insatisfação da mulher e na sua eventual sensação de fracasso, já que com a emancipação, equilibrar o feminino e igualdade de gêneros tornou-se um impressionante desafio. Assim sendo, quem se revolta, se rebela, sai do formato aceitável pela sociedade que é tão machista é “louca”, é a mulher que não se conforma. E o mal-estar que comportamentos inesperados gera cria a necessidade de categorizar e nominar algo muito complexo para ser simplesmente taxado. Assim sendo, é muito mais simples enlouquecer mulheres que não se enquadram na cultura feminina e machista, que andam de mãos dadas, do que escutá-las sem subestimá-las.

Esse livro que você cita é importante porque trabalha estereótipos de mulheres, seus papéis e a consequência da opressão vivida por cada tipo em relação a sua sexualidade, inclusive, na sociedade patriarcal, machista apesar de tantos esforços, avanços e tanto tempo passado. Ainda estamos atrasadas.

“E se seu voltasse e procurasse o Reato, numa tentativa, a última? Possivelmente não daria certo. Em pouco tempo ele se tornaria o que o meu marido se tornou. Teríamos feito filhos, quem sabe. Eu teria me descuidado. Ele teria me traído. Uma vida chinfrim e machista cairia sob nosso telhado e de lá, a gente assistiria à prática de uma teoria vulgar: felizes para sempre, apesar dos pesares”
(conto “Adriana”, em A loucura dos outros)

VeredasEm uma entrevista que você disse querer se arriscar, escrever algo diferente do seu primeiro livro para adultos (Lugar comum). Como foi o resultado da experiência em A loucura dos outros?

Nara – É interessante como nasceu o Lugar comum. Foi um livro muito honesto porque ele começou de algo tão simples quanto a nostalgia. Explorei o tema exaustivamente. Depois, feito uma overdose, eu me cansei e precisei sair de onde tinha ficado. Foi estranho, por exemplo, ter que explicar para algumas pessoas que no próximo livro adulto eu não falaria mais da cidade que deixei, da infância, do romantismo. Eu sinto certo incômodo com categorias. Por isso, acho que quis correr da facilidade que é ter a minha escrita encaixada em determinado perfil. Se eu tivesse continuado a escrever textos como os do Lugar Comum, não os teria publicado. Era importante para mim revirar possibilidades, tentar achar outras formas de escrever temas que me consomem tempo, energia, língua, ideias.

Por isso eu gosto de ter vários tipos de trabalhos. Tenho infantis, adultos, juvenis, escrevo matérias sobre assuntos diversos. Para mim, escrever é fundamental. Mas não me agrada muito a ideia de limite, como se o autor/escritor tivesse que seguir um formato pelo qual já é reconhecido. É por isso que não é absolutamente um problema ou um erro dizer que o autor não escreve para o leitor. Imagina! Se eu escrevesse qualquer coisa com algum leitor em mente eu não sairia da primeira página. Como é possível tentar criar tendo em vista a ambição de agradar. Eu não consigo.

A escritora Nara Vidal tem livros publicados de nichos diferentes Foto: divulgação)
A escritora Nara Vidal tem livros publicados de nichos diferentes Foto: divulgação)

Veredas – Como é a sua rotina de escrita? Existe uma rotina?

Nara – Ah… Como eu adoraria ter uma rotina… Mas com duas crianças em casa isso é um sonho distante. Escrevo quando posso, quando tenho uma hora, quando dá. Escrevo coisas soltas na rua. A construção, o juntar os pontos, isso é feito em casa quando tenho mais tempo e geralmente quando as crianças estão dormindo. Às vezes, nos finais de semana eu viajo e vou escrever. Às vezes dá para fazer isso. Mas, mesmo assim, nem sempre coincide de eu sentir vontade de escrever quando tenho esse tempo livre.

Veredas – Em A loucura dos outros, todos os contos recebem o nome de uma mulher. Entre eles (Marta, Ana Rosa, Vanessa), estão três narradores homens machistas. Por que incluir essas vozes? Que tipo de retorno você teve dos leitores?

Nara – Veja que estranho: quando eu recebi o prefácio escrito pelo Godofredo de Oliveira Neto, ele disse que o livro era machista. Foi a primeira vez que eu parei para pensar que sim, tinha escrito um livro muito machista. Porque o que eu escrevi, enquanto trabalhava e criava os contos, foi uma narrativa mais realista e veja que o resultado foi machista. Mas o que eu escrevi foi, geralmente, uma narrativa do que eu já observei. O mundo é percebido então, de um modo muito machista por mim e que me incomoda profundamente ao ponto de eu escrever sobre ele.

“Não que crianças não me agradem, mas não costumo me envolver com elas. Sempre me interessam mais os adultos. As crianças são simples e têm pouco a acrescentar. Há quem diga o contrário, mas os gritinhos, os chorinhos, as birrinhas, tudo isso me entedia”
(conto “Maria Dulce”, em  loucura dos outros)

Veredas – Em alguns comentários sobre A loucura dos outros, são ressaltadas a crueza e densidade dos temas. Para você, tal destaque se deve ao fato de seu livro anterior ser bastante diferente deste? Ou porque o leitor espera algo mais sutil em livro que trate sobre mulheres?

Nara – Eu honestamente espero que seja a primeira alternativa. Não é possível mais que leitores esperem algo morno, meigo ou dito “feminino” quando se depara com um livro escrito por uma mulher. As variações de estilos acontecem não por causa do gênero masculino ou feminino, mas por personalidade, técnicas utilizadas, nunca porque exista literatura feminina, já que a literatura masculina nunca foi cogitada. Mas me parece importante que cada vez mais autoras estejam tratando de temas e narrando histórias sem pudores. Não é possível perder tempo tentando narrar uma história se não for algo latejante.

Veredas – Nara, você coordenada o projeto/evento Canalzinho, responsável por divulgar a literatura em língua portuguesa para crianças e jovens. Quais países ele alcança e como tem sido essa experiência?

Nara – O Canalzinho foi uma espécie de loucura, já que falamos disso (risos). Eu amei ajudar a colocar de pé uma ideia que eu tinha há muito tempo, desde que tive minha filha. A produção foi uma força tarefa. Teve muita gente bacana envolvida e a coisa cresceu. Fizemos não só em Londres como em Paris. É impressionante como precisamos e ainda falta iniciativa que leve ou traga a nossa literatura contemporânea para as comunidades de brasileiros que vivem aqui. Esse foi o maior propósito do Canalzinho: levar literatura em língua portuguesa aos imigrantes brasileiros (ou que falem português) e que moram em Londres ou Paris. Fomos abraçados generosamente pelas comunidades daqui e da França. Um grande elenco de autores incríveis esteve conosco. Foram dias especiais, preciosos tanto para mim quanto para os convidades e público.

Quando se resolve produzir um evento assim, a gente se expõe muito, mas o balanço, apesar das várias dificuldades, foi positivo. Mas é intenso. Eu me lembro que quando o evento terminou em Londres, eu fui agradecer e ao fechar a programação comecei a chorar. Acho que de alívio porque conseguimos realizar a proposta e por alegria, satisfação. É uma baita responsabilidade levantar uma bandeira dessas. Mas é muito bacana quando acontece. Pretendo fazer outras edições, mas não necessariamente todos os anos. Tenho um outro projeto tomando forma agora que também envolve literatura brasileira por essas minhas bandas, mas não é infantil. Logo, logo sai uma bela notícia por aí.

Veredas – Aqui no Brasil, o movimento que procura divulgar e resgatar a literatura produzida por mulheres vem ganhando força no mercado editorial, na imprensa e na academia, ainda que timidamente e com algumas resistências. E em Londres, e na Europa como um todo, como você percebe este movimento?

Nara – O Reino Unido, a Inglaterra têm uma História muito mais tradicional de igualdade de gêneros. Existe machismo sim, é claro, mas é muito menor se comparado com países latinos como o Brasil, por exemplo. Há movimentos e iniciativas que valorizam a leitura de obras de autoria feminina, mas não vejo que tenha o mesmo peso político e até ativista que em outros países têm. Estamos, claro, aqui também atrasadas no sentido de representatividade, e movimentos assim são muito, muito importantes mesmo. Mas hoje em dia, por aqui, você abre um jornal como o The times, por exemplo, e você vai ver que os livros indicados e resenhados são muito bem distribuídos em relação a questão de gênero, tanto no que diz respeito às autoras contemporâneas quanto ao resgate dos clássicos escritos por mulheres. Vai chegar um dia em que não vamos mais precisar discutir nada disso. Estamos caminhando para isso.

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