“Represento minha avó e bisavó, que foram escravas”, diz Elza Soares ao receber o Honoris Causa na Ufrgs

Reportagem: Thaís Seganfredo

A noite deste domingo (26) foi de Elza Soares, mas foi também da comunidade negra da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). Em sessão solene no Salão de Atos, a cantora recebeu o título de Doutora Honoris Causa, tornando-se a primeira artista negra a receber a homenagem no país. O título foi proposto pelo Instituto de Artes da universidade, em celebração também à cultura popular brasileira.

“Vocês não sabem o que esse espaço significa para mim. Eu queria que significasse para todas e todos nós, negros. Eu sou bisneta e neta de escravos. A minha bisavó Henriqueta foi uma escrava. A minha avó, Cristina, foi uma escrava e a minha mãe, Rosária, pegou o final da escravatura. Estou aqui representando elas com muito orgulho”, declarou a doutora após receber o título. Elza também lembrou da pauta mais urgente nas últimas semanas segundo a sociedade brasileira. “Nós queremos mais educação, nós queremos mais cultura, mais universidades gratuitas e escolas públicas”, pediu.

O reitor da Ufrgs, Rui Vicente Oppermann, ressaltou que o título outorgado à cantora foi pela arte, pela contribuição à cultura brasileira, mas também pela “posição corajosa, incisiva, intransigente na superação do racismo. Elza soares assume a defesa da mulher negra com a força da sua voz, com a certeza da sua causa e com a indignação com as desigualdades e injustiças com que tratamos a maioria da nossa população”. Oppermann lembrou que a universidade tem hoje 20,8% de alunos negros. “Temos uma maioria de alunos oriundos de escola pública e uma maioria de mulheres, mas cotas não são suficientes”, disse, citando a necessidade de incluir a cultura negra na universidade e dar espaço para mais cientistas, filósofos e sociólogos e professores negros.

A sessão teve discurso emocionado também da oradora e professora da Universidade, no Departamento de Arte Dramática, Celina Alcântara. “Esse título é um reconhecimento à tua sabedoria ímpar, plasmada na tua obra, na tua vida, nas tuas realizações, nos teus prêmios. Esse saber o qual tu representa é para mim o saber construiu e constrói esse país. Esse saber ainda não está devidamente reconhecido nesse espaço.” A sessão encerrou com grande participação do público, que homenageou Elza com gritos de “Doutora”, vocativo que combinou perfeitamente com a cantora de 81 anos.

Aula-show emociona público e cantora

Wisnik e Elza em aula-show (Foto – Marcus Vinicius/reprodução)

Após a sessão, Elza Soares recebeu o músico e grande parceiro de trabalho Zé Miguel Wisnik para uma aula-show, reeditando o encontro que tiveram no mesmo salão há 16 anos. Wisnik iniciou saudando a presença de Elza na música popular brasileira. “A música popular é uma criação coletiva e memorial que veio do mais profundo – do coração, do corpo e da inteligência popular brasileira. E a Elza representa isso porque vem do que há de mais profundo e radical, que é o samba. Ela atravessa a história da música brasileira.”

Em uma conversa breve, perpassada por muitas intervenções da plateia, sedenta por um contato mais direto com a cantora, os dois relembraram passagens de trabalho em conjunto e episódios da carreira de Elza. Entre falas mais emocionantes e outras mais descontraídos (“Deus é mulher porque se fosse homem não existiria mais nada disso aqui”), Elza ainda reservou momentos para presentear o público com trechos acapella e duetos com Wisnik de músicas como “Flores Horizontais” e “Sei Lá, Mangueira”.

A cantora se mostrou, mais uma vez, conectada com o público de Porto Alegre, brincando sobre futebol e relembrando sua amizade com Lupicínio Rodrigues. “Meu primeiro show profissional foi feito aqui em Porto Alegre, o primeiro dinheiro que eu ganhei fazendo show foi aqui. Eu fui trazida pelo Lupi, que é uma paixão da minha vida”.

A cantora e agora doutora homenageada pela Ufrgs (Foto – Suelen Diniz/reprodução)

Elza completou contando como conheceu o compositor gaúcho. “Eu trabalhava numa boate do rio de janeiro e uma noite eu estava cantando e me entra um cara com umas rosas vermelhas no braço e dizendo que trazia rosas para outra rosa. Eu olhei pra cara dele e pensei ‘não tá com cara de rosa não, está com cara de cantada’. Eu não sabia que era o Lupi. Eu falei ‘o senhor se enganou, não me chamo rosa e detesto rosas’, relatou, arrancando gargalhadas da plateia. Elza havia acabado de gravar “Se Acaso Você Chegasse”, música que a projetou nacionalmente. Um dos pontos altos da noite foi quando Wisnik pediu à Elza que ela cantasse um trecho de sua versão singular da música. A cantora convocou a plateia para a acompanhar na letra e, com lágrimas, se emocionou ao relembrar mais uma vez Lupi.

A conversa também teve momentos para a cantora reafirmar a importância do título que recebeu na luta contra o racismo. Ela relembrou o episódio em que participou do programa de talentos de Ary Barroso, ainda menina. Foi com o vestido de sua mãe, todo preso com alfinetes e, diante de uma plateia que a desprezava, surpreendeu o compositor com seu talento e sua fala afiada. “Eu vim do planeta fome”, respondeu, quando Barroso a questionou com de que lugar ela vinha. Ela contou à plateia que tem esse momento na memória para relembrar tudo que passou.  “De vez em quando eu tenho um alfinete pendurado na roupa para não esquecer de onde eu vim”, disse.

Por fim, Elza também demonstrou preocupação com a situação política do país. “Eu hoje me pego sentindo um brasil com ódio, coisa que eu tenho muito medo. Isso me arrepia. Vamos pensar no amor, vamos pensar de forma mais poética”, pediu. Após a conversa, a noite encerrou com autógrafos da cantora e de seu biógrafo, Zeca Camargo.

 

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Nortista vivendo no sul. Escreve preferencialmente sobre políticas culturais, culturas populares, memória e patrimônio.
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