Glauber Cruz
Uma das sequências de Adoráveis Mulheres mostra a família March em um momento de confraternização à mesa. A câmera gira em torno dos personagens, revelando os sorrisos daquela simpática família que, envolta em alguns clichês, sofre com as perdas da guerra. A cena poderia perfeitamente fazer parte de uma novela das 18h, cuja estrutura se baseia em uma fórmula marcada por uma discreta despretensão e pela ausência de uma espécie de fúria narrativa cujo intuito é prender o público, típica dos horários nobres. Esse paralelo não é um demérito, muito pelo contrário: é justamente nessa leveza, polvilhada de açúcar narrativo, que reside a grande qualidade do novo filme da cineasta Greta Gerwig (Lady Bird – A Hora de Voar). Em tempos que possuem um profundo gosto amargo na ponta das nossas línguas, mais do que nunca é necessário pitadas de açúcar de histórias que falam sobre amor e o carinho que temos por aqueles que dividem conosco a nossa própria história e também sobre sonhos que, quando realizados, viram fissuras na estrutura de uma sociedade subjetiva e objetivamente violenta para com aqueles ditos subalternizados.
Mas Adoráveis Mulheres vai bem além dessa percepção no mínimo mais esperançosa sobre a vida. O filme é marcado pela discussão sobre a complexidade de ser e estar, estando em um local subalternizado pelos discursos e pelas práticas de um mundo centrado na figura do homem. Escrito e dirigido por uma Greta decidida a não deixar nenhuma fenda de questionamento (masculino) a respeito do domínio que tem como diretora e roteirista, Adoráveis Mulheres conta a história de Jo, Meg, Amy e Beth, quatro irmãs que crescem em meio a Guerra Civil dos Estados Unidos (1861-1865) e a um contexto que as encerra em vestidos, espaços e práticas. Sob a perspectiva de Jo (Saoirse Ronan), somos apresentados aos diferentes sonhos destas irmãs, às suas diferentes maneiras de ver e traduzir, através da arte, o mundo que vivem e também a maneira que lidam, cada uma a seu jeito, com as estruturais violências simbólicas que sofrem pelo fato de serem mulheres.
Em um diálogo do filme, Jo declara à sua irmã mais velha, Meg (Emma Watson) que seria muito mais fácil viver se ela fosse uma personagem de livro, cujo destino seria casar ou morrer (ou ambos), o que a livraria da vontade que ela sente de viver coisas para além de um projeto de vida baseado na vida familiar. É um pedido de socorro de uma mulher num mundo de homens, de uma figura que se vê forçada a se locomover o tempo todo com um fardo imposto externamente, enquanto tenta se esquivar daquilo que não deve ou que deve ser feito, das coisas que são ou não são “de mulher”. Além desse, o filme é pontuado por outros diálogos muito bem escritos, que passam longe da fácil exposição, e que confirmam a triste atualidade da história das irmãs March, escrita e publicada por Louisa May Alcott em 1868 e já adaptada para o cinema outras três vezes (em 1933, 1949 e 1994).
Um dos aspectos mais poderosos da versão de Greta (completamente ignorada nas premiações do último Globo de Ouro, realizado no dia 05 de janeiro) é justamente armar uma trama em que a discussão sobre a mulher e o lugar da mulher (o lugar que quer ocupar, o lugar que pode ocupar) se entrelaça com esse olhar mais quente, carinhoso e delicado para a dureza da vida (tanto da dureza da vida em guerra, quanto a dureza da vida que passa naturalmente, numa batalha em que o inimigo é o tempo, a morte, o fim da infância, o desistir dos sonhos), que não reforça o estereótipo da mulher delicada, sensível e carinhosa. Embalado pela trilha sonora por momentos excessivamente doce de Alexandre Desplat, o filme também é incisivo ao questionar e problematizar, por meio das vozes de todas as mulheres da narrativa, o que é ser mulher e como é ser mulher em um mundo de homens.
Ainda que de maneira episódica (boa parte do roteiro é estruturado em flashbacks, o que acaba sacrificando a naturalidade do fluxo narrativo, como se o espectador fosse sempre alertado de que a partir dali, assistirá um flashback sobre determinado assunto), o filme consegue estabelecer esses dois planos de reflexão e narração de maneira muito convincente e bonita. Portanto, ao mesmo tempo que levamos um soco no estômago com a brutalidade simbólica dos diálogos de Amy (Florence Pugh) com a tia March (Meryl Streep, impecável) e o amigo Laurie (Timothée Chalamet), temos o coração apertado por uma sequência protagonizada pela irmã mais jovem, Beth (Eliza Scanlen) e o vizinho da família, o Sr. Laurence (Chris Cooper). E o fantástico é que esse encontro de atmosferas colabora para que em nenhum momento o little women do título original (“mulherzinhas”, numa tradução literal para o português que é também o título da obra de Alcott no Brasil), e o adoráveis mulheres do título brasileiro ganhem os contornos pejorativos dos estereótipos. Muito pelo contrário, eles são ressignificados: essas mulherzinhas adoráveis, todas muito diferentes entre si, questionam e não se conformam com o espaço que lhes reservam e com a impossibilidade de escrever suas próprias narrativas. Elas lutam (sonhando e falando) para que possam buscar o seu próprio lugar no mundo, um lugar escolhido por elas e construído por elas. Tudo isso num mundo fotografado em cores quentes, onde o Natal é um momento não só de celebração mas também de olhar para o outro, onde a infância tem gosto de união e onde mesmo as dificuldades e as ausências tem um gosto não tão amargo, pois há sempre certeza de que nunca se está sozinho.
É justamente a existência dessa atmosfera “comercial de margarina” ou “novela das 18h” que torna Adoráveis Mulheres um filme tão significativo atualmente: nesses dias amargos em que a censura à arte e o preconceito aparecem travestidos de respeito às diferentes opiniões, e que artistas têm subtraída a sua extrema importância no processo democrático e histórico, é muito bonito e simbólico que possamos nos cativar e nos emocionar com uma história que, ao mesmo tempo que fala de um assunto urgente, também fala de sentimentos tão universais e igualmente urgentes nos dias de hoje. O amor, o carinho e a esperança de que nossos sonhos são possíveis. Nada mais clichê e nada mais necessário nesses tempos antidemocráticos que, assim como Jo diz em determinada cena do filme, nos fazem lamentar o fim da infância.