por João Luís Ceccantini UNESP/ FCL Assis*
Foto: Anselmo Cunha/Nonada
A impressão imediata provocada por uma primeira visada da quinta edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil é a de que o intervalo de quatro anos que separa esta edição da anterior não trouxe à tona diferenças gritantes quanto à boa parte dos dados apresentados. Um aspecto peculiar, entretanto, se faz evidente: a presença de uma nova demanda aos respondentes, que produziu um subconjunto de dados original. Foram obtidos pela inclusão na pesquisa de um módulo de questões com o objetivo de compreender o universo específico dos leitores de literatura.
No universo geral dos sujeitos pesquisados, em que 52% dos respondentes são inseridos na categoria leitor (aquele que leu, inteiro ou em partes, pelo menos um livro nos últimos três meses), 28% declararam ser leitores de livros de literatura e 30% informaram que são leitores de literatura apenas em outros meios. Tomada como base a população brasileira em 2019 com cinco anos ou mais – 193 milhões de pessoas –, é, portanto, substantivo o número de leitores que se dedicam à leitura da literatura. No contexto da pesquisa, a literatura é considerada de forma bastante abrangente. São tomadas como literatura as obras que se opõem àquelas de natureza essencialmente utilitária/informativa. Ou seja, literatura, no contexto da pesquisa abarca diferentes gêneros (romance, poesia, conto, crônica etc.) e diversas modalidades (clássicos nacionais e estrangeiros, best-sellers, literatura infantil, literatura juvenil etc.).
Um primeiro aspecto importante que vale a pena destacar quanto aos leitores de literatura é que há um predomínio de leitoras (56%) em oposição ao número de leitores (44%). Intensifica-se a tendência de um número superior de leitoras já observado em edições passadas da Retratos da Leitura no Brasil, assim como também em outras sondagens, de menor porte, realizadas sobretudo em contexto escolar e regional. Essas pesquisas vêm apontando, ao longo das duas últimas décadas, que há, de modo geral, um público leitor feminino crescente, que tem por particularidade a valorização da literatura.
Observa-se também que que há mais pessoas jovens, com cinco a 29 anos, entre leitores de livros de literatura do que entre outros tipos de leitores; a partir dos trinta anos, no entanto, há um contínuo decréscimo dos leitores de livros de literatura que prossegue até a faixa dos setenta anos ou mais. O que conduz a isso? Trata-se de questão que merece ser estudada com o devido cuidado, investigando-se sobretudo se não estaria atrelada a práticas escolares cristalizadas e superadas na abordagem do fenômeno literário, incapazes de formar leitores permanentes.
Alguns outros aspectos, de natureza variada, também merecem ser destacados no que diz respeito à leitura da literatura. Quando comparados aos leitores em geral, chama a atenção que entre os leitores de literatura, os livros são mais lidos por inteiro e há um número maior de leitores de literatura que leem por vontade própria e não por motivação exterior (escola, trabalho etc.). Também a média de livros lidos nos últimos três meses é maior entre leitores de literatura do que no universo geral de leitores, devendo-se ressaltar que a média de leitura desses que leem livros em geral é mais ou menos constante ao longo dos anos em que a pesquisa vem sendo realizada, ao passo que a média dos livros de literatura lidos por leitor tem aumentado a cada edição da Retratos.
Para o cenário razoavelmente positivo que se esboça no que concerne à leitura de livros de literatura, muitas razões poderiam ser levantadas, mas, na atualidade, uma que parece especialmente importante, porque se ancora em informações fornecidas pela própria pesquisa, é a de que os novos meios tecnológicos para leitura, cada vez mais disponíveis e populares, têm facilitado o acesso à literatura como nunca antes se viu. E, como se sabe, isso se dá hoje cada vez com maior rapidez, crescente diversidade e menor custo – quando não gratuidade –, sendo disponibilizados aos leitores obras clássicas da literatura mundial e nacional (geralmente em domínio público) e mesmo obras de autores iniciantes/alternativos ou autores contemporâneos já consagrados, que buscam conquistar novos nichos de leitores. Assim, passa a haver, cada vez mais, uma ampla oferta de textos de natureza diversificada, disponibilizados em múltiplas plataformas que impulsionam a ampliação do universo de leitores.
A título de exemplo, pode ser lembrada aqui uma fonte muito acessada por inúmeros leitores nos dias de hoje: o Wattpad. Trata-se de uma plataforma de compartilhamento de histórias bastante popular, no qual foi disponibilizado em 2013 o romance de Anna Todd, After, inicialmente uma fanfiction publicada nesse mesmo ano. Essa obra atingiu a marca de mais de 1,6 bilhão de leituras online, tornando-se o livro mais lido de toda a plataforma, até chegar em 2014 às prateleiras das livrarias em formato físico. Na Retratos, After é uma das obras literárias presentes entre os 37 livros mais citados na categoria “último livro lido ou que está lendo”, sinalizando o elevado grau de alcance que um livro disponibilizado numa plataforma digital alcança hoje entre os leitores brasileiros, mesmo no caso de uma autora estreante, que nunca tinha publicado um livro físico.
É bastante relevante na pesquisa, também, que, quando se pede aos respondentes que apontem aquele que consideram o “livro mais marcante” em sua experiência de leitor, os títulos indicados – além da Bíblia, que ocupa um absoluto primeiro lugar, com um grande número de indicações – são, de um modo geral, livros de literatura. Vale a pena salientar que até mesmo quando os livros indicados se situam numa zona de fronteira com as categorias “religião” ou “autoajuda”, trata-se de obras que revelam um nível alto de narratividade. E não se pode ignorar que esse, aliás, é precisamente um aspecto intrínseco da Bíblia, exaltada por muitos especialistas não apenas como um pilar religioso, mas também como uma importante referência literária no âmbito do gênero narrativo.
Entre os livros lembrados pelos leitores estão A cabana, O pequeno príncipe, A culpa é das estrelas, Dom Casmurro, Harry Potter, O diário de Anne Frank, Vidas secas e Capitães da areia. São dados que estão em plena sintonia com as respostas obtidas para a questão voltada à motivação que possuem os entrevistados para ler: nesse caso, predomina nas respostas a escolha movida pelo prazer (gosto, distração etc.) em oposição a razões utilitárias (demandas escolares, profissionais etc.).
Merece destaque, igualmente, no comportamento dos leitores de livros de literatura, a dimensão socializante que se faz presente em algumas de suas ações. São eles aqueles que mais compartilham as leituras realizadas com outros leitores, conversando com um amigo ou familiar sobre a leitura, indicando-a para alguém, postando textos, imagens ou vídeos associados à leitura feita e, até mesmo, embora num percentual ainda acanhado, conversando numa roda, num clube de leitura, num sarau ou num slam.
Chama a atenção, na pesquisa, o fato de os leitores de livros físicos compartilharem significativamente mais impressões de leitura sobre uma dada obra lida do que aqueles que leem literatura apenas em outros meios. Também são os leitores de literatura os que mais realizam o empréstimo de livros junto a bibliotecas, assim como junto à família ou aos amigos. E, talvez por isso, comprem menos livros do que os demais leitores, como se depreende das informações colhidas. Curiosamente, também são os leitores de literatura os que mais leram um livro digital (53%), modalidade que constitui um ilustre desconhecido para grande parte de todos os sujeitos pesquisados: 56% dos respondentes dizem nunca ter ouvido falar desse tipo de livro.
Para finalizar este rápido apanhado de alguns aspectos ligados à questão da leitura do livro de literatura na Retratos, não se pode deixar de apontar que, ao longo dos muitos tópicos que dão corpo à pesquisa, fica claro que o papel desempenhado pela instituição escolar no Brasil para a formação de leitores – compreendida aqui em amplo sentido – tem deixado muito a desejar. Na comparação com as pesquisas anteriores, fica nítido em diversas frentes, que a influência da escola no campo da leitura tem diminuído, e especialmente no que diz respeito ao livro de literatura, ao longo de todo o período de escolarização dos indivíduos e de maneira ainda mais acentuada no ensino superior. Dentre muitos exemplos que poderiam ser apontados, sobressai o fato de ter caído de forma significativa – das pesquisas anteriores para esta – o número de leitores de literatura que leem livros motivados pelo universo escolar.
Perde-se, assim, a oportunidade de, ao longo do período da escolaridade, não ser explorado o privilegiado potencial que os livros de literatura têm de fazer diferença, auxiliando a formar leitores mais autônomos, dinâmicos e interativos, entre tantos outros atributos sugeridos pela pesquisa, em maior ou menor grau.
* João Luís Ceccantini é professor de Literatura Brasileira na UNESP – FCL Assis. Dedica-se à pesquisa de temas como leitura, literatura infantil e juvenil e literatura brasileira contemporânea, com várias publicações na área. Coordena o Grupo de Pesquisa CNPq “Leitura e Literatura na Escola”. Integra a “Red Temática de Investigación Literaturas Infantiles y Juveniles em el Marco Ibérico”, vinculado à Universidade de Santiago de Compostela (Espanha). Coordenou durante vários anos o Grupo de Trabalho “Leitura e Literatura Infantil e Juvenil” da ANPOLL (Associação Nacional de Pós-Graduação em Letras e Linguística). É votante da FNLIJ (Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil).