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O (re)inventar dos blocos de rua

Ester Caetano
Foto de capa: bloco Não Mexe Comigo que Eu Não Ando Só (Crédito: Benedictas Fotocoletivo/Giovana Fleck e Joana Berwanger)

Há quem diga que o carnaval simboliza e representa a alegria do povo brasileiro com cores, glitter, música, dança, fantasia, beijos, sorrisos e encantos. Cada palavra ecoada pelo carro de som se transforma em alegoria para a festa carnavalesca. Conhecida como Entrudo no início do século XVIII, associado aos festejos burgueses, com brincadeiras e folguedos variados de cada região, a manifestação foi ressignificada pelas classes populares no Brasil. No final do século XIX, grupos carnavalescos, já conhecidos como cordões, ranchos e blocos, popularizaram-se nas ruas do Rio de Janeiro e espalharam pelo país o modelo das manifestações que temos até os dias de hoje, com forte protagonismo das populações negras.  

O ano de 2020, inusual para todas as esferas da sociedade e, ainda mais para o setor da cultura, afetou também os blocos de rua, que são movimentados e alimentados pelo calor e envolvimento dos foliões. Em Porto Alegre, o começo da primavera é a época do ano em que os coletivos organizam os ensaios abertos para as saídas do próximo carnaval. Com reuniões remotas, lives e menor contato possível, estar longe das praças tem sido a realidade e o “novo normal” de alguns blocos na capital rio-grandense. 

O Não Mexe Comigo que eu Não Ando Só, que atua desde 2016, foi surpreendido e não realizou sua saída anual já em 2020. O grupo estava com data marcada para o cortejo de 2020 quando a necessidade do isolamento social impactou a todas. Bruna Anele, integrante do grupo, conta como fizeram para não deixar passar em branco a data. “Cada uma mandou um vídeo, e fizemos um vídeo coletivo das mulheres se vestindo como se estivessem indo pra saída, tocando seu instrumento. Essa foi a ação para que não passasse sem nada. A partir disso, a gente continuou se reunindo, surgiram muitas ideias de formação interna, formação externa e lives com outras pessoas.”

Saída do bloco Turucutá (Foto Alex gracia e Vinicius Avila)

Uma realidade que pode ser angustiante a quem tem um coração que pulsa junto com as batidas do tamborim e do tambor. Ter que se afastar, paralisar ensaios, configurar uma nova forma de fazer acontecer a folia impacta diretamente em toda a organização de um bloco. No Turucutá – Batucada Coletiva Independente, existe no grupo de foliões uma oficina de percussão, que durante todo o ano reúne cerca de 100 alunos para a formação. Neste ano não foi possível abrir turmas. “Essa oficina é um gás natural, estamos o ano todo fazendo música, todo sábado na quadra da imperadores, vivendo, convivendo e não ter a oficina foi muito pesado pra gente.” Ian Angeli, produtor da banda do Turucutá.  “Não sabemos muito sobre o futuro. O que mudou foi que a gente está com mais pilha ainda para quando voltar”, diz o músico.

Por outro lado, o recolhimento serviu de mote para que os integrantes pudessem compor, gravar e lançar o primeiro single do Turucutá, “Nosso Ylè”, que quer dizer “lar” no idioma iorubá. Lançada em novembro, a música traduz a poesia do carnaval urbano, com alusão à simbologia dos lugares que se tornam casas, cultivando memórias e afetos. O single remete à essência carnavalesca e à ideia de permanência do pulsar da música brasileira. 


Quando chega a primavera, as cores da estação se misturam às cores dos blocos e intensificam as atividades, em um momento de planejamento do cortejo para a saída anual. É também quando iniciam os ensaios abertos, e os brincantes se juntam aos blocos nas praças. Kaya Rodrigues, integrante do Bloco da Laje, expõe que os ensaios abertos revelam o caráter mais genuíno do bloco, ocupando os espaços públicos, mas com grande atenção e responsabilidade com a saúde de todos. 

Afinado, neste ano o grupo compreendeu a importância de se recolher e de se remodelar. Passaram a utilizar o momento para debater pautas importantes, como a luta feminista e antirracista. “Vemos o Bloco da Laje como um organismo vivo, mutante, mutável e sabemos que para transformar a sociedade é preciso transformar cada um de nós primeiro. Dessa forma, nós usamos esse espaço virtual para nos aprofundarmos, para alinhar cada vez mais nosso discurso e nossa prática”, conta Kaya.  

Ensaio aberto do Bloco da Laje no recanto africano do parque Redenção (Foto; divulgação)

Sem o frenesi de ensaios, construção de fantasias, repertórios e tudo que envolve a estrutura de um bloco para ir às ruas, se abrem lacunas na agenda dos grupos de foliões, o que de certo modo, possibilita que os grupos reflitam sobre sua essência e sobre o devir do Carnaval. Bruna, integrante do “Não Mexe Comigo”, ratifica que os blocos são uma manifestação cultural no ambiente público e é necessário discutir sobre isso – enquanto existe um [espaço], para discussões e formações, “porque a gente não tem tempo de falar sobre isso quando estamos na correria, fazendo as saídas enquanto estamos caminhando e tem coisas que passam por cima.” Para ela, debater sobre a ocupação do espaço público vai além da ação cultural enquanto lúdica.

Remodelar, ressignificar, transformar o ato artístico em manifestações virtuais, do “corpo a corpo” ao “tela na tela”, do não conseguir ouvir/ou entender o outro- por motivos dos repiques rítmicos da banda para “não dá para te ouvir, seu microfone está desligado”. Pensar num bloco de rua sem as ruas é construir analogias para pensar significados e ausência de sentidos, como o futebol sem bola, uma vez que a construção de um cortejo se dá justamente nas vias públicas. 

Ju Barros, integrante do Bloco da Laje, realça o que tem sido a noção do seu bloco sem o contato no contexto não pandêmico: “nossas atividades sempre foram pensadas para a rua, a Laje só existiu a partir desses encontro nos espaços públicos de uma ocupação das ruas. Então, pra gente foi muito dolorido esse ano de 2020, quando a gente percebeu que iria ter que fazer re-adaptações para que o coletivo continuasse existindo e para que nossas ideias não se perdessem no tempo-espaço. Então, tem sido um trabalho bem cuidadoso, interno, um trabalho afetivo e de escuta.”     


Nos últimos meses, o grupo lançou um clipe que traduz a catarse e as angústias de estar longe das ruas com a música “Lá vem Gente”. Uma das primeiras composições da Laje, a obra é nada menos que uma ode a brincar o Carnaval. Que saudade, Dionísio!

Conheça mais sobre os blocos que ouvimos nesta reportagem:

NÃO MEXE  COMIGO QUE EU NÃO ANDO SÓ

Em Porto Alegre, o bloco com maior protagonismo feminino no carnaval de rua é o Não Mexe Comigo que Eu Não Ando Só, idealizado por mulheres que questionam os espaços delimitados de gênero no Carnaval. O Coletivo criado desde de 2016 é formado exclusivamente por mulheres, e todos os processos são executados somente pelas integrantes. O nome surgiu da vivência de uma das meninas com o machismo e o assédio, que levou o grupo a  cantar a música de Maria Bethânia em um ato de defesa. O grupo não existe somente para fazer festa, tem por essência a união da diversidade de mulheres por um ideal: a luta por uma igualdade de gênero. De forma artística, levam para as ruas a representatividade e as contestações que ampliam os movimentos sociais.

BLOCO DA LAJE

Coletivo que transita em diversos segmentos da cultura, tem por essência o encontro de pessoas com afinidades afetivas e o cuidado no olhar sobre a cidade, no que tange a questões políticas e ao desejo de ocupar os espaços públicos de uma forma celebrativa. Nascido no cerne das artes cênicas, o bloco une o fazer teatral a inspirações musicais que vão do rock’n’roll ao afoxé, valorizando as tradições populares brasileiras. Júlia Ludwig comenta que artisticamente a Laje é um caldeirão de influências “ A brincadeira é nossa revolução, pois ela subverte o que está instituído e cristalizado, nos oferecendo um novo olhar sobre nós mesmos e o mundo. Vivenciar nossas fantasias é muitas vezes experimentar o que de mais verdadeiro e real temos em nós. Nos identificamos com as pautas que celebram a diversidade e que caminham em direção a uma sociedade mais justa, com menos desigualdades, mais harmoniosa, inventiva e menos careta”, ressalta a integrante. 

TURUCUTÁ – BATUCADA COLETIVA INDEPENDENTE

Despontado pela magia dos instrumentos de escola de samba, o Turucutá movimenta as ruas desde 2009.Com o objetivo  de transformar as ruas e exaltar a cultura de rua e a cultura popular, tem seu repertório, a partir de experiências sonoras dos integrantes, diversos gêneros afro-latinos. O bloco passa pelo ska, Ijexá, jongo, samba de avenida e outros. Além das releituras, o Turucutá tem suas próprias músicas autorais, que retratam a vivência e história do coletivo.  

Esta reportagem é uma produção do Programa de Diversidade nas Redações, realizado pela Énois – Laboratório de Jornalismo, com o apoio do Google News Initiative.

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Jornalista engajada nas causas sociais e na política. Gosta de escrever sobre identidade cultural, representatividade e tudo aquilo que engloba diversidade.
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