A resistência Kaingang na Aldeia Goj-Jur

Laura Galli
Fotos e vídeo: Desirée Ferreira

“Teve muito governante que vendeu nossas terras, estamos cobrando que devolvam nossas terras, pedacinhos de terra dos nossos antepassados, tiraram os índios, mandaram embora e venderam o que era nosso. Estamos lutando para retomar elas de volta. Estamos tristes, mas lutando, batalhando, passando frio, enfrentando polícia, batalhão de choque ou tomando tiro de borracha e bomba de gás que eles jogam na gente.” Essa fala é de Arão Carvalho, liderança Kaingang do norte do Estado do Rio Grande do Sul com quem a equipe do Nonada conversou sobre a luta pela terra dos povos indígenas. 

Num terreno atrás da rodoviária da cidade de Passo Fundo, interior do estado, se localiza a aldeia Kaingang Goj-Jur, uma retomada que existe há cerca de três anos num local onde antes era um lixão. A comunidade se estabeleceu ali após sair de uma área próxima à divisa com Carazinho, numa terra do Estado, onde seria construído o presídio feminino da região. Antes que saísse a reintegração de posse reclamada pelo Estado, o grupo de famílias Kaingang se retirou e se estabeleceu atrás da rodoviária. Como o terreno é área de proteção por ser margem do rio Passo Fundo, construções não são permitidas, e a área foi cedida pelo proprietário. 

Segundo o cacique Jocemar Mariano e Arão Carvalho, com quem conversamos, quando chegaram o local era um lixão a céu aberto, com dejetos chegando até o rio Passo Fundo, que passa logo atrás da aldeia. O terreno estava praticamente abandonado, e com o tempo, foi limpo pelos Kaingang. Atualmente são 19 famílias vivendo ali. A proximidade com o centro urbano não é o almejado pela comunidade, já que não possibilita modos de vida e a cultura Kaingang. Porém, num contexto de disputas de terras e exclusão dos indígenas pelo Estado e por latifundiários, a cedência do terreno garante que a comunidade possa viver enquanto luta pela terra.

Aldeia urbana localizada atrás da rodoviária está ás margens de rio poluído (Foto: Desirée Ferreira)

A área ocupada anteriormente próxima de Carazinho reivindicada como território tradicional pela aldeia faz parte de um conjunto de nascentes de rios, como o rio da Várzea e o próprio rio Passo Fundo. Daí vem o nome Goj-Jur, que em Kaingang significa rio nascente, numa referência ao direito de acesso à água. Água limpa, diferente da que corre no rio Passo Fundo no caso do terreno onde se localizam hoje. A fala de Arão Carvalho resume essa questão: “A gente sempre protegeu o rio, quando tinha acesso. A água desse jeito não tem como pescar, como manter a cultura. Não tem como pegar peixe, é uma preocupação muito grande com a poluição do rio. É triste não poder estar no rio, tomar um banho. Quando tá quente, principalmente, a gente precisa do rio e não tem.”

O rio Passo Fundo recebe dejetos urbanos e o município não tem nenhum projeto de despoluição para ele. A retomada Goj-Jur, com outras comunidades de Passo Fundo e movimentos pela moradia e direitos humanos, precisou judicializar a luta pelo acesso à água junto ao município desde a pandemia. A aldeia conseguiu acesso à água potável, mas com caixa d’água, mesmo que se localize logo ao lado do rio.

A luta dos Kaingang da retomada Goj-Jur conquistou também a criação de uma escola estadual na aldeia, que atende 42 crianças de variadas idades. A língua Kaingang é falada por todos e é uma forma importante de manter a cultura, mas não é suficiente. Para os Kaingang, assim como para outros povos indígenas, o acesso à terra é fundamental para a manutenção e continuidade da cultura. Arão Carvalho afirma que essa é uma tarefa difícil no meio da cidade. É preciso terra digna, onde se possa plantar alimentos, e com acesso à água limpa.

A luta dos povos indígenas pela terra é pauta fundamental no Brasil hoje. A possível aprovação do PL490 no Congresso Federal ameaça a política de demarcação de terras pois, entre outros problemas, institui a tese do marco temporal. Com isso, serão consideradas terras indígenas apenas aquelas que já existiam, já estavam ocupadas por esses povos, na data da promulgação da Constituição de 1988.

Escola Kaingang foi uma conquista recente da retomada em Passo Fundo (Foto: Desirée Ferreira)

De acordo com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), “a tese é injusta porque desconsidera as expulsões, remoções forçadas e todas as violências sofridas pelos indígenas até a promulgação da Constituição. Além disso, ignora o fato de que, até 1988, eles eram tutelados pelo Estado e não podiam entrar na Justiça de forma independente para lutar por seus direitos.” Além disso, tramita no STF o julgamento da reintegração de posse pelo estado de Santa Catarina sobre a Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ do povo Xokleng. Em 2019, o STF deu status de “repercussão geral” para a decisão, o que significa que ela poderá servir de diretriz para casos semelhantes no futuro.

É preciso que a sociedade brasileira esteja atenta para essas decisões que impactam diretamente os povos indígenas, mas também todo o conjunto da população do país. A pauta do direito à terra é emblemática sobre o país que se quer construir. Um país que garante direitos básicos a todos, ou um país que prioriza o lucro e a monocultura? A demarcação de terras indígenas é fundamental para a sobrevivência da diversidade cultural brasileira, para a biodiversidade e para a preservação das florestas. 

Para Arão Carvalho, da retomada Kaingang Goj-Jur, “O que é importante pra nós é a demarcação e essa lei que estão tentando aprovar [o PL 490]. A gente queria que eles olhassem pra nós, nós somos humanos. Que olhassem pra nós como se olhassem pra eles, como se olhassem pros filhos deles. Eu tenho meus filhos, o presidente tem os filhos dele, os governadores tem os filhos deles. Então que olhassem pra nós como gente, não como desumano. Se ele se cortar sai sangue, se cortar ele sai sangue também. A gente quer direitos iguais, isso que é importante pra nós. Que ele não venha com essa lei pra terminar com as nossas demarcações. Se ele terminar com as nossas demarcações quer dizer que ele tá nos eliminando, ele tá nos banindo, ele tá tirando o que é nosso. Tirando o que é dos nossos filhos, dos nossos antepassados, que foi dos nossos bisavós, que é a nossa terra. Não é o brasil todo, é um pedaço de terra pra criar nossos filhos, pra plantar alguma coisa pros filhos comer. Só isso. Mostrar nossa cultura em cima das nossas terras demarcadas. Essa é a grande preocupação pra todos nós indígenas, Kaingang, Guarani nesse Brasil.”

Confira a entrevista com Arão Carvalho na aldeia Goj-Jur, às margens do Rio Passo Fundo:

Em português:

Em Kaingang:

 

Esta reportagem integra o projeto Sons do Sul – uma cartografia linguística, da Riobaldo Conteúdo Cultural, agência de conteúdo do Nonada. Financiamento: edital Diversidades das Culturas, da Secretaria Estadual de Cultura do RS e Fundação Marcopolo – Lei Aldir Blanc.

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