Não ao marco temporal: devemos parar de prezar por uma economia da devastação

Por Paola Mallmann*

Foto: Cícero Bezerra/APIB

A primavera indígena chegou no Brasil movimentando sentidos e estruturas sociais, marcando no ritmo dos maracás a forte presença da ancestralidade ameríndia no debate sobre a tese do Marco Temporal. O movimento indígena se fortaleceu no Brasil, não apenas em ativismo, mas em profissionais liberais indígenas que atuam na sociedade brasileira em diferentes segmentos, inclusive na área do direito que fazem a defesa e uma brilhante interpretação dos artigos da Constituição de 1988, que trata dos direitos territoriais dos povos indígenas. Mas ainda falta aderência de grande parte da população brasileira não-indígena para essa alteridade que nos constitui, é preciso que a parcela da população que é contra o bolsonarismo se posicionou à favor das lutas indígenas, a essa luta em defesa de direitos ancestrais das Primeiras Nações, que reverbera em todas as demais agendas que estão em sintonia com o novo milênio e a busca pelo bem-viver..

Ainda em relação ao marco temporal, na tentativa de arrastar o processo e a decisão, o ministro Alexandre de Morais, do STF, solicitou mais tempo, através do pedido de“vistas”, na última sessão do julgamento que ocorreu em 15 de setembro, o que torna o julgamento mais lento e sem prazo de retomada.

Mas mesmo esta interrupção tática, não para a luta e repercussão do movimento indígena, aqui e no mundo. Após, uma semana intensa de movimentação em Brasília no início do mês se setembro – aliás, diga-se de passagem, de ambas partes que atualmente disputam os rumos que a história do Brasil, embora de formas totalmente diferentes – a importância da vanguarda e da resistência indígena em se posicionar e enfrentar o debate cresce cada vez mais em importância social e transcende essa essa causa. Sua presença se faz ecoar em defesa da nossa frágil democracia, da cidadania cultural, dos direitos originários e também da dignidade para os povos indígenas no Brasil.

Sexta, 24.09, se completam duas semanas da 2ª Marcha das Mulheres Indígenas do Brasil. Este movimento, organizado pela ANMIGA (Associação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade) e APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), dentre outras organizações indígenas, deixou a marca do que é uma organização à frente de seu tempo, reunindo mulheres de Sul à Norte do país que, organizadas por regiões/biomas, debatiam diversas pautas, da saúde à educação, do território à defesa da vida e do direito de ocuparem lugar na política. A esperança que deixam, entre tantas outras, também se localiza no território da política institucional, a de que não seja apenas Joênia Wapichana a representante indígena no Congresso Nacional, nas próximas eleições. Mas, que se fortaleça a presença das mulheres indígenas na política em todos os níveis do legislativo.

“Chama, chama que ELAS vem” foi com esse brado de Puyr Tembé, do Pará, que a Marcha “Mulheres Originárias, Reflorestando Mentes para a Cura da Terra”, deixa seu legado, apesar das constantes ameaças recebidas pelas lideranças dos movimentos. Sediada com base no complexo cultural da Funarte, onde havia um verdadeiro aldeamento indígena multiétnico, a Marcha foi motivada por valores que respeitam a vida, sendo uma forma de manifestação pública que abrange a diversidade e a integridade dos povos indígenas que compõem o Brasil.

Durante o processo de organização da Marcha, mais de 6 mil indígenas de diferentes etnias e povos estiveram acompanhando a votação direto em Brasília, deixando clara sua posição de combate ao fascismo, ao racismo e a toda forma de opressão e retrocesso dos direitos originários e constitucionais.

O movimento iniciado em agosto, que seguiu-se com a Marcha e o lançamento do programa “Reflorestar Mentes”, na última sexta-feira,17/09, pode também ser chamado de Primavera Indígena e está sendo a vanguarda da resistência política e cultural no Brasil. O lançamento do programa aconteceu dentro de uma instalação em forma geodésica, onde, conduzido por Sônia Guajajara e Célia Xacriabá, estiveram como convidadas cinco mulheres anciãs de diferentes povos, para distribuir mudas de árvores à jovens indígenas, as quais ficarão responsáveis pelo sucesso de seu crescimento.

O ato teve caráter artístico e ritual, onde cada mulher trouxe sua fala, seu canto, sua reza, e as jovens puderam expressar seu sentimento de recepção do legado. Dentre uma das mulheres anciãs, estava Dona Iracema Kaingang, que batizou sua neta durante o ato cerimonial de lançamento do programa e, além disso, envolveu a todos e todas presentes, distribuindo sementes de araucárias. Uma clara simbologia para que possamos plantar um novo amanhã, nesse gesto de esperança. O desfecho do acampamento pela vida, deixa essa raiz viva, essa semente de ações mais integradas com os saberes indígenas e, mais os povos originários fortalecidos para seguir a luta.

***

Os eleitores de Bolsonaro e os que ainda se apropriam do verde e amarelo da bandeira do Brasil, desconhecem a verdadeira origem dessas cores para as populações indígenas. Circula nas mídias que dão vazão ao bolsonarismo e ao conservadorismo, de que a tese do marco temporal ameaça a economia e o direito de propriedade, comparando o número de hectares por indígena no Brasil e em outros países. No entanto, esquecem de mencionar que os empreendimentos econômicos que aparentemente geram lucros para o PIB, do agronegócio, não prezam necessariamente pela saúde pública e muito menos contribuem para a distribuição das riquezas.

Enquanto que a significativa possibilidade de aumentar as demarcações de terras indígenas, presta um serviço ao futuro das próximas gerações, à proteção da biodiversidade, das águas e de todo o manejo do solo e do clima. Essas populações, ao contrário do que se pensou por muito tempo, não estão apenas em nosso passado, bem antes de 1988 neste grande território chamado Brasil, mas também construindo no presente o espaço para um novo amanhã. As plantações de soja, que servem em parte para criação de gado, não geram alimentação significativa para a população brasileira, não bastasse o preço da carne no mercado estar exorbitante. A demarcação das terras indígenas no Brasil representa uma justa reparação histórica e um fio de esperança para os não indígenas que também acreditam que o Brasil precisa e merece retomar a direção de uma história mais democrática, de direitos, de inclusão social, com equilíbrio e justiça ambiental.

A primavera indígena ensina, a todos e todas, uma lição de organização social de base comunitária, de enfrentamento político pacifico, provida de uma verdadeira espiritualidade que promove a integridade do ser humano e que deve ser mencionada desde já e incluída em nossa memória e história do tempo recente. Fala-se muito em pátria, em referência a uma visão patriarcal da formação do país, mas é esquecido que a “mátria”, a matriz do povo brasileiro, veio do ventre indígena. Deveríamos parar de prezar por uma economia da devastação e começar a encontrar a economia da regeneração, começando por fazer parte deste reflorestar de mentes e corações, todos aqueles que desejam transformar de fato a história nestes novos tempos de crise sanitária, política, filosófica e ambiental.

*Paola Mallmann de Oliveira, é produtora cultural e realizadora audiovisual, Mestra em Antropologia (UFF) e Bacharel em Ciências Sociais (UFRGS). paolamallmann@gmail.com/ Instagram: @paolamallmanneusou

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