Livro investiga tensão entre arte e capitalismo

Luiz Prado/Jornal da USP
Foto: divulgação

Que o capitalismo, sobretudo em seu estágio neoliberal, concentra um poder de adaptação e cooptação brutal é sensível para praticamente qualquer terráqueo do século 21. Como isso acontece em seus múltiplos meandros, contudo, é algo que precisa de olhares mais atentos e pesquisas meticulosas para ser apreendido.

Na esfera das artes, um novo esforço acaba de surgir com a publicação de Arte e mercado: Afinidades Eletivas, e-book do Núcleo de Estudos das Espacialidades Contemporâneas (NEC), ligado ao Instituto de Arquitetura e Urbanismo (IAU) da USP, em São Carlos. Organizada pelo professor Ruy Sardinha Lopes, coordenador do NEC, a obra é resultado de pesquisas de mestrado e doutorado já concluídas ou em andamento feitas por integrantes do núcleo.

Os temas da arte, arquitetura, design e urbanismo são visitados no livro sob a perspectiva de suas interações com a lógica do mercado. Os estudos ora investigam como o capitalismo se apropria de princípios, provocações ou propostas vindas desses universos para se reciclar e se fortalecer, ora discutem como esses campos abordam criticamente a sociedade de consumo ou se veem obrigados a incorporar seus pressupostos para sobreviver.

“Não apenas o mercado se ‘culturalizou’, passando a operar a partir de lógicas antes vistas como ‘marginais’ ou mesmo ‘não econômicas’ – donde a insuficiência das teorias neoclássicas em explicá-lo -, como o fazer artístico, ao perder sua ‘especialidade’ e distanciamento crítico, se viu obrigado não apenas a rever seu posicionamento, mas também a incorporar uma série de procedimentos e ações ‘não artísticos’”, escreve Lopes na introdução do volume. “Assim como o trabalho ordinário se torna ‘criativo’ e o consumo ‘experiencial’, o ‘talento’ ou ‘a genialidade’ artísticos se tornam resultados de um eficiente branding e o engajamento de uma obra é medido pelo número de likes obtidos por sua visualização em alguma plataforma digital.”

A vida que se torna arte que se torna produto

No filme Ghost (1990), o loft aparece como o objeto de desejo da geração yuppie – Foto: Reprodução

Um estudo dessa “culturalização” do mercado aparece no artigo assinado por Débora Gomes dos Santos, que investiga como ambientes degradados de Nova York, ocupados por artistas marginais e de vanguarda nas décadas de 1960 e 1970, se tornaram objeto de consumo para a geração yuppie do final dos anos 1980. Débora focaliza seu interesse nos lofts do Downtown, antigos espaços fabris abandonados que se viram convertidos em espaços de efervescência estética e contracultural.

“Dos expressionistas abstratos aos artistas pop e os minimalistas”, escreve a autora, “a comunidade artística do Downtown fez explodir uma energia potencial latente de produção criativa que trazia a apropriação, a exploração e a valorização do contexto ambiental e material de acumulação histórica, social e cultural da região tanto como tema e matéria-prima quanto como identidade e estilo de vida.”

Fachadas de ferro fundido, imensas plantas livres, colunas salientes e grandes painéis de vidro banhados por rios de luz faziam da arquitetura dos lofts matéria-prima dessa energia artística. Eram cenário e fermento para uma nova consciência estética e uma nova forma de vida: a existência como acontecimento. Anti-funcionalista, o loft imiscuía trabalho, moradia e festa, negando o projeto positivista de organização e compartimentação da vida. “Constrói-se propriamente um estilo de vida ali, e esse estilo de vida, agora de forma explícita, é igualmente uma forma de arte”, explica Débora.

Esse modo de viver estetizado acabaria, como em toda história da arte, instrumentalizado para demonstrar poder e riqueza, continua a pesquisadora. O estilo de vida do artista se torna fator de diferenciação social e, com isso, os próprios lofts passam a ser objeto de desejo de um novo grupo, os yuppies, jovens adultos de classe média-alta originados da fritura econômica dos anos 1980. Assim, a valorização dos lofts acaba por expulsar os artistas, justamente os responsáveis por sua revitalização, e torna esses espaços residências de luxo, onde a arte vira apenas cenografia e memória.

“Há em curso um processo de consumo estético do bem-viver artístico que transforma em mercadoria a própria experiência existencial do indivíduo criativo e que vê a cidade como um gabinete de curiosidades em escala monumental”, escreve Débora. “Assim, o loft é isolado enquanto conceito espacial e produto imobiliário, aparecendo como uma nova tipologia habitacional oferecida em edifícios de alto padrão e sugerindo o estilo de vida do artista como uma nova identidade disponível ao consumo em um mercado em franca expansão.”

O design critica o design

Comfort Unit, o mobiliário que reúne cama e estação de trabalho, antecipando o sonho (ou o pesadelo) do home office – Foto: Reprodução

As considerações artísticas sobre esse abocanhamento praticado pelo capital são o interesse do artigo de Marilia Solfa. A pesquisadora se debruça sobre a obra da artista estadunidense Andrea Zittel, que une arte e design de maneira irônica e provocativa. Suas séries de uniformes, tapeçarias e mobiliário são, ao mesmo tempo, herdeiros do desenho industrial estadunidense e comentários incômodos sobre o design e nossos desejos de consumo.

“É evidente que Zittel não teme a aproximação entre os universos da arte e do mercado. Ao contrário, ela constata a inevitabilidade dessa aproximação e passa a conceber e produzir seus trabalhos a partir dela”, escreve Marilia. Um dos exemplos dessa aproximação é a obra Comfort Unit, um móvel que reúne cama e estação de trabalho, e antecipa, ainda nos anos 1990, a questão do home office, tornada onipresente pela pandemia.

Comfort Unit também evidencia a idealização social existente por trás do processo de cooptação do cotidiano pelo trabalho produtivo”, escreve a autora. “Ao fundir uma cama e uma estação de trabalho em um mesmo móvel, a proposta abre uma brecha para que o próprio tempo de descanso do usuário se torne produtivo. O ‘trabalho no conforto do lar’, embora idealizado pela sociedade, representa um preocupante processo de flexibilização e precarização do trabalho, impulsionado também pelo desenvolvimento das novas tecnologias de informação e de comunicação. O home office, quando associado a altas metas de produtividade, ameaça suprimir a existência do tempo vago, dedicado ao ócio e à manutenção da própria vida.”

Assim, segundo Marilia, se o Comfort Unit materializa em um mobiliário as promessas de autonomia e liberdade do home office, também revela ao espectador/usuário a falha desse objeto e a ilusão de suas pretensões. Dessa forma, como em outras obras, Zittel constrói com sua cama/estação de trabalho uma reflexão dentro do próprio campo que deseja contestar. A artista imita os modos de ação do design para poder compreendê-lo e, na sequência, subvertê-lo.

“É a partir dessa aproximação que a artista investiga a existência de ‘brechas’ nesse sistema, onde busca plantar sua atuação”, escreve a pesquisadora. “Se a atuação do design contemporâneo, aliada aos campos da propaganda e da moda, busca construir a imagem de um mundo totalmente desenhado e programado, à artista cabe intervir nesse sistema investigando meios para que o espectador se confronte com sua própria realidade cotidiana e existencial, desnudando as contradições da sociedade do presente.”

De Oiticica ao Google

Outros artigos do volume espraiam a discussão e mostram que o Brasil não está desconectado dessa tensão entre arte e mercado. É o caso do texto de Rafael Goffinet, que discute os laboratórios de experiências criativas indo das experimentações de Helio Oiticica e Andy Warhol e chegando ao Google Campus São Paulo.

Segundo Goffinet, os laboratórios de experiências criativas, como o Google Campus, se inserem em um novo paradigma cultural, produtivo e subjetivo, que recontextualiza expressões como “experiência”, “criatividade” e “colaboração”, em pauta desde os anos 1960. “Antes elementos centrais para a crítica e promessas de transformação das relações de trabalho e de vida vigentes, [essas expressões] informam, hoje, as transformações discursivas ocorridas entre os campos da cultura e da economia, do lazer e do trabalho, em direção à constituição de novos circuitos hegemônicos de produção e de subjetivação.”

Enquanto Warhol, nos anos 1960, instalava em um loft de Manhattan sua The Factory – misto de ateliê e ponto de encontro de artistas, boêmios e outras figuras da contracultura –, Oiticica se preparava para, alguns anos depois, pensar colaboração, participação e a obra de arte inserida na vida em trabalhos como Babylonests – a transformação do seu apartamento em Nova York em uma “casa-obra”. Dois modelos de espaços arquitetados para o “estado de permanente invenção” buscado por Oiticica e cujos ecos capitalizados apareceriam no século 21 em conceitos como o Google Campus.

“A uma distância de cerca de cinco décadas das experimentações do artista”, escreve o pesquisador, “vemos como a defesa de estruturas abertas, germinativas, capazes de ativar o comportamento do público, ecoa as premissas de um novo contexto produtivo que exige dos indivíduos a capacidade de, como aponta Claire Bishop, ‘ser empreendedor, abraçar os riscos, procurar seus próprios interesses, performar suas próprias marcas e estar disposto à auto-exploração’.”

É uma ética empresarial da colaboração que se materializa, portanto, em espaços como o Google Campus São Paulo, situado próximo à Avenida Paulista, em um edifício de seis andares – quatro reservados para empresas residentes –, com espaço aberto para o público em geral e atividades variadas relacionadas ao mundo do empreendedorismo, como workshops, palestras, treinamentos e sessões de yoga. Para os frequentadores/clientes, é um espaço customizado com apelo visual e sensorial que, segundo Goffinet, evocam a Babylonests de Oiticica e a Factory de Warhol.

“A novidade é que, no Google Campus, a customização significa a conformação de um ambiente de trabalho positivo entre os empreendedores visitantes ou residentes, como se o sucesso da empresa, ou a capacidade produtiva individual, dependesse de um ambiente que estimule ou favoreça a interatividade e a sensação do ‘trabalho vivo’, isto é, menos como labor, pois criativo”, escreve o autor.

É dessa perspectiva, segundo Goffinet, que a multiplicação desses laboratórios de experiências criativas surge como a formação de novos circuitos de produção, responsáveis não apenas por dissolver os limites entre cultura e economia, mas também por gestar dispositivos de controle social e de subjetivação. “Momento em que o sonho de ‘viver e trabalhar como um artista’, como diria Bishop, é o pesadelo real de reduzir-se a uma ‘empresa autoadministrada’, escreve o autor.

Arte e Mercado: Afinidades Eletivas, de Ruy Sardinha Lopes (organização), Núcleo de Estudos das Espacialidades Contemporâneas (NEC) do Instituto de Arquitetura e Urbanismo (IAU) da USP, 189 páginas. Disponível gratuitamente no Portal de Livros Abertos da USP.

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