Obra de Judith Bacci, "Mãe preta amamentando menino branco", 1988 (Foto: Daniel Moura)

Com atraso de décadas, mostra reúne artistas negros no principal museu de arte do RS

Inaugura no próximo sábado (14), a exposição Presença Negra no Museu de Arte do Rio Grande do Sul, que traz mais de 250 obras de cerca de 70 artistas negros, negras e negres presentes em coleções de arte do estado. (Confira no fim do artigo a lista completa de artistas participantes). Em 2021, o Margs realizou uma revisão crítica de seu acervo, identificando 24 artistas negros que o integram, ou seja, 2,1% em um universo de cerca de 1.100 nomes. Desde então, a instituição estadual realizou uma série de formações e debates para refletir sobre ausências e presenças de artistas negros no sistema de arte gaúcho. Segundo o diretor-curador do Margs, Francisco Dalcol, “em um país em que o racismo estrutural e sistêmico persiste em suas diversas formas de dominação, opressão, segregação e exclusão, o projeto vem também a problematizar o mito da democracia racial no Brasil”. Em texto curatorial, os curadores Igor Simões e Izis Abreu, acompanhados da curadora-assistente Caroline Ferreira, refletem sobre a exposição e presença de artistas negras no estado. Leia a seguir:

Por Igor Simões, Izis Abreu e Caroline Ferreira

Este escrito é um esboço. O esboço de uma urgência. De um projeto que começa, mas exige o tempo das coisas que durante muito tempo são silenciadas e que para irromper precisam encontrar a temperança. No entanto, essa não é tarefa fácil.  De onde escrevemos, é preciso emitir avisos constantes ao resto da terra Brasil. Há de se continuamente dar conta da noção de existência. Sim, escrever sobre negros desde o Sul do Brasil é, antes de tudo, partir de uma afirmação: estamos e sempre estivemos aqui. Há de se lembrar da imensa porção de homens e mulheres negras escrevendo seus territórios naquela parte do país que sempre se sonhou europeia. 

Qual a possibilidade de que o trabalho de uma ex-zeladora, mulher negra, habite o acervo de uma instituição artística no Rio Grande do Sul? Quantas exposições mostraram o trabalho de Judith Bacci? Por que sabemos tão pouco sobre ela? Uma mulher preta, ex-zeladora. Interrogar sobre a existência de artistas negros, em qualquer tempo, é necessariamente assumir os lugares sociais que foram impostos a homens e mulheres negras na história assimétrica e violenta do Brasil, do Rio Grande do Sul.

Nesta exposição, escolhemos trabalhar apenas com produções que vêm de mãos e mentes negras. Esta é uma posição política que se refere à necessidade de conceber a arte afro-brasileira não como um tema, um estilo ou conteúdos preestabelecidos, e, sim, como a parcela da arte brasileira produzida por sujeitos negros. 

São só alguns exemplos para começarmos a nos interrogar sobre a ausência de sujeitos negros na história da arte local. Nunca se tratou de ausência, sempre se tratou de uma escolha. Sempre esteve relacionada a um cânone artístico que excluiu a possibilidade dessas criações figurarem como material de nossas narrativas mais legítimas. Adjetivos como autodidata, primitivo, naïf e datado são heranças dos artifícios do cânone para retirar de suas listas aqueles que não o confirmavam. Seu principal estratagema: o argumento de que eles não existiam. Tanto existem que reunimos mais de 250 obras, de cerca de 70 artistas, algumas delas provenientes de coleções particulares e de acervos públicos do RS, apresentadas em núcleos a partir do conceito de poéticas das encruzilhadas. Noção elaborada com base nas proposições teóricas de Luiz Rufino (2019) e que parte da compreensão de que a arte afro-brasileira resulta dos cruzos de múltiplos conhecimentos condensados em manifestações poéticas tecidas na trama das experiências transatlânticas. 

A arte contemporânea local nos permite encontrar chaves para a visibilidade das múltiplas formas de existências e poéticas de artistas negros no Rio Grande do Sul, facilitando inclusive o olhar sobre outras épocas e invenções de passado. Tomemos aqui o exemplo de artistas com considerável circulação nos sistemas da arte locais e nacionais e que nos permitem proposições para entender parte da diversidade possível de abordagens para essa produção no Estado. Pensemos no trabalho do artista Leandro Machado (Porto Alegre, 1978), que se impõe pela força poética que surge de proposições que se forjam no tempo da calma e do silêncio, e que se impõe pelo agudo acerto e pela contínua negociação entre o sujeito negro e o artista negro. Com uma produção constante, Leandro é um dos nomes-chaves para compreender a produção de artistas racializados como negros na arte brasileira a partir do extremo sul. Na série de pinturas feitas a partir do Henê — alisante e tintura que habitou cabeças de gerações de mulheres negras —, Leandro apresenta um olhar desde o Sul para as questões das formas de vida e sociabilidade de pessoas negras em contextos excludentes como aquele da sociedade brasileira.

Obra de Leandro Machado, “Treze” (2004)

As relações do homem no espaço e as percepções do espaço contemporâneo são tema de uma produção que escapa continuamente a tentativas tão frequentes de essencialização. Nos trabalhos em vídeo, desenho, instalação, escultura e fotografia, Rommulo Conceicao, nascido na Bahia mas habitante há décadas no RS, se inscreve de uma forma diferente nas discussões sobre arte e negros. Não há necessariamente em sua produção uma visualidade que atente para sua condição de homem negro, no entanto seus trânsitos pelos sistemas das artes visuais o inscrevem dentro e fora das noções mais recorrentes de arte afro-brasileira — termo difícil e controverso na identificação da produção de sujeitos negros.

As questões que pulsam para a história da arte no Rio Grande do Sul são muitas. Há de se pensar na importância do trabalho de Maria Lídia Magliani (Pelotas, 1964 — RJ, 2012), artista negra que, saída de Pelotas e sendo uma das primeiras alunas pretas formada no Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, constrói uma carreira de circulação nacional sendo  também, até bem pouco tempo e mesmo quando do início deste projeto em 2021, a única presença de mulheres negras nos acervos públicos de arte de Porto Alegre, como apontam pesquisas recentes. As pinturas, desenhos, gravuras e esculturas de Magliani reúnem em si mais do que a arte local, e, sim, uma visão aprofundada dos anseios poéticos de uma geração de artistas. Cabe salientar que na trajetória da artista, tantas vezes apontadas como distante das discussões sobre raça, destacam-se participações em mostras de artistas racializados que configuram o campo no RS, como a mostra dividida com Paulo Chimendes e J. Altair, em 1973, e que despontava com o título “Três pintores negros”, demostrando a autoconsciência de artistas pretos no Rio Grande do Sul ao longo das décadas. Em termos nacionais, Maria Lídia é também uma das únicas mulheres negras presentes na icônica mostra de 1988 intitulada “A mão afro-brasileira”, curada por Emanoel Araujo e que estabelece e se firma na dimensão conceitual de mostras como a que aqui apresentamos.

Esses nomes e recortes em produções específicas não dão conta de toda a potência da arte produzida por negros no Sul. O Sul ao Sul é, e sempre foi, território de lutas e conquistas afro-diaspóricas e, no caso da arte, apresenta um ponto privilegiado para ensejar outras geografias para a arte afro-brasileira.

Obra de Salvador, Sem Título (2020)

Assim, um importante evento antecedeu a mostra: a realização de uma residência artística com a participação de 23 artistas negros e negras atuantes em nosso Estado, que em encontro presencial realizado no MARGS compartilharam suas produções e experiências, afirmando um espaço coletivo como estratégia de luta e resistência, acesso e permanência em espaços institucionais como o Museu. Suas produções permeiam o espaço da mostra em conversa com artistas de diferentes gerações que talvez ousaram sonhar com as articulações e movimentos coletivos evidentes em suas atuações nos sistemas das artes local.

O tempo é de acerto de contas. Ele não começa agora. Estamos vivendo o resultado do acúmulo de séculos de luta dos negros e suas formas de agrupamento e resistência. A arte brasileira, que nunca foi neutra, é um dos espaços de visibilidade dessa disputa. A arte e sua história vêm sendo interrogadas e estremecidas em nosso país. Qual a explicação para histórias tão plenamente brancas da história da arte? Como nossos acervos, coleções, exposições e narrativas se permitiram construir com tão parca participação de negros em um país em que 54% da população se declara não BRANCA? Como podemos olhar com normalidade a infinidade de listas compostas apenas por artistas brancos? 

No caso do Rio Grande do Sul, a dificuldade se acirra. A insistência em uma história de ascendência europeia serviu para nublar a presença de sujeitos negros em um estado com forte contingente de pessoas racializadas como negras. O Museu de Arte do Rio Grande do Sul é questionado e, portanto, também se questiona, posto que é o principal museu de nosso Estado. Esperemos que esse seja o reflexo de um estado inteiro que se pergunta e busca saída para as suas lacunas e apagamentos. Não temos certeza. Acreditamos que não. Mas então que a arte assuma seu mito de dianteira da sociedade e que as histórias da arte que aqui se impõem sugiram revisões em nossas formas de existência.

Artistas integrantes da exposição:

Obra de Valéria Barcellos, “Gênero Azul” (2022)
  • Afrokaliptico
  • Allan Vieira – ALN
  • Ana Langone
  • André Ricardo
  • Antônio Sérgio Deodato
  • Arthur Timótheo da Costa
  • Black Nvgga
  • Carlos Alberto de Oliveira – Carlão
  • Corbiniano Lins
  • Dirnei Prates
  • Djalma do Alegrete
  • Emanoel Araujo
  • Estêvão da Fontoura
  • Fayola
  • Flávio Cerqueira
  • Gabriel Farias
  • Gisamara Oliveira
  • Giuliano Lucas
  • Grace Patterson
  • Gui Menezes
  • Gustavo Assarian
  • Gutê
  • Heitor dos Prazeres
  • Helô Sanvoy
  • Irene Santos
  • J. Altair
  • Jaci dos Santos
  • Jaime Lauriano
  • João Alves Oliveira da Silva
  • Josemar Afrovulto
  • Jota Ramos
  • Judith Bacci
  • Leandro Machado
  • Leonardo Lopes
  • Lidia Lisbôa
  • Luis Ferreirah
  • Marcos Porto
  • Maria Lídia Magliani
  • Mitti Mendonça
  • Momar Seck
  • Ney Ortiz
  • Osvaldo Carvalho
  • Otacílio Camilo
  • Pamela Zorn
  • Paulo Abenzrragh
  • Paulo Chimendes
  • Paulo Corrêa
  • Paulo Só
  • Pedro Homero
  • Pelópidas Thebano
  • Preta Mina
  • Renata Sampaio
  • Renato Garcia
  • Rita Lende
  • Rogério Fraga de Campos
  • Rommulo Vieira Conceição
  • Rosana Paulino
  • Salvador
  • Silvana Rodrigues
  • Silvia Victoria
  • Silvio Nunes Pinto
  • Thiago Madruga
  • Triafu
  • Valéria Barcellos
  • Virgínia Di Lauro
  • Vitória Macedo
  • Wagner Mello
  • Wilson Tibério
  • Zé Darci
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