(Foto: Edgard Rocha/Iphan)

Mestres da cultura popular pedem aprovação de PL que garante auxílio econômico à atividade

Em meio ao som de tambores, pandeiros e cantos, mestres e mestras da cultura popular participaram na última segunda-feira (27) da audiência pública sobre a PL 1176/11 na Câmara dos Deputados. O Projeto de Lei, também conhecido como “Lei dos Mestres”, reivindica um marco legal para orientar políticas e programas estatais de proteção e estímulo aos conhecimentos e manifestações culturais de transmissão oral no Brasil.

A sessão contou com a participação de brincantes, griôs, mestres de capoeira, pesquisadores e cantadores das cinco regiões do país. Participaram do debate Mãe Beth de Oxum (PE), Daraína Pregnolatto (GO), Isaac Loureiro (PA), Mestre Alcides (SP), Mestre Chico (RS), Mestre Dirceu (MG) e Mestre Chico Simões (DF). A audiência foi presidida pela deputada Erika Kokay (PT-DF), autora do pedido para realização do debate.

A proposta da “Lei dos Mestres” pretende garantir um auxílio financeiro de, pelo menos, dois salários mínimos a pessoas que reconhecidamente representem a cultura brasileira tradicional, de acordo com critérios do Conselho Nacional de Política Cultural. O Projeto tramita em caráter conclusivo nas Comissões da Câmara, ou seja, não precisa ir ao plenário para aprovação. Depende apenas da aprovação da Comissão de Constituição e Justiça para ser encaminhado ao Senado. A proposta é debatida junto ao PL 1786, também de 2011, que institui a Política Nacional Griô para proteção e fomento à transmissão dos saberes e fazeres de tradição oral.

Os Mestres convidados falaram sobre a importância da Lei para seus diferentes contextos. Mãe Beth de Oxum foi a primeira a argumentar, abrindo uma sequência de falas também cantadas. A Mestra, responsável pelo Centro Cultural Coco de Umbigada, criticou a morosidade do projeto, que já completa uma década, e pediu por agilidade neste momento em que ele volta a ser pautado. Ela reforça que a história do Terreiro é a história da comunidade e que a importância da política pública é assegurar que os fazeres populares não serão perseguidos, por exemplo.

“A gente vive disso. É a alma da gente. Ensinamos nossos filhos e netos. A brincadeira tem que permanecer com toda a diversidade em que ela existe. Há cinquenta anos, era proibida até na lei, porque reflete a comunidade, exalta a identidade negra, traz fundamentos da cultura indígena. Precisamos de proteção”, defendeu Mãe Beth, ialorixá, ativista cultural e ícone da cultura popular de Pernambuco. Ela finalizou sua fala cantando ao som do pandeiro: “Tá na hora do pau comer/ Do povo preto ser respeitado/ Do povo de terreiro ser protagonizado”

Mãe Beth de Oxum (foto: Anna Ortega/Nonada Jornalismo)

Daraína Pregnolatto, responsável pelos grupos Flor de Babaçu, Cupuaçu e Flor de Pequi, em Pirenópolis (GO) enfatizou o aspecto da oralidade, que é, por meio do convívio comunitário entre gerações, que as culturas populares e tradicionais permanecem vivas. “Esses mestres e mestras já são conhecidos nas comunidades. Só falta o Estado acordar para também reconhecer”, pontua.

De Belém, o pesquisador Isaac Loureiro lembrou do ministério da cultura de Gilberto Gil, o primeiro, de acordo com ele, a olhar a cultura para além das elites e do entretenimento importado. Foi durante a gestão de Gil que foram criados os Pontos de Cultura, em 2004, para estimular iniciativas culturais da sociedade e valorizar conhecimentos tradicionais.

Para Isaac, a importância do debate do PL 1176/11 é que esta é uma legislação que garante a dignidade, os direitos e a vida para quem faz cultura popular. “A diversidade cultural do nosso país repousa nos ombros dessas pessoas que guardam nossa ancestralidade, nossas brincadeiras, nossos brinquedos e nossas tradições ”, explicou o também criador e coordenador da Campanha Carimbó Patrimônio Cultural Brasileiro.

“O Brasil precisa superar esse complexo de casa-grande e reconhecer que a cultura do nosso povo é também importante, necessária, e que precisa ter o olhar do poder público. Precisamos garantir direitos para quem faz essa cultura permanecer viva.”

Reconhecimento econômico aos mestres

Um consenso do debate foi a necessidade do reconhecimento, não somente simbólico ou midiático, mas econômico aos mestres. Muitos já idosos, com demandas de assistência médica, por exemplo, deparam-se com a ausência de recursos financeiros no fim da vida. O impacto é em toda comunidade, que vê alguém que dedicou anos para a cultura e transmissão de saberes ancestrais terminar a vida de forma desassistida.

Mestre Chico, diretor do Centro Cultural Tambores de Angola, em Porto Alegre, demonstrou preocupação com as gerações futuras. O diretor é considerado uma referência na capoeira e na transmissão da cultura de matriz africana no Rio Grande do Sul. Para ele, que fala os idiomas iorubá, lingala e quimbundo, aprendidos em seus 68 anos de vida, a proteção aos mestres é também proteção aos saberes.

“As crianças me cobram [ensiná-las]. Sei o quanto será importante. Hoje eu ainda posso. Mas e amanhã? Quem vai ensinar o que eu sei?”, questiona. “No Rio Grande do Sul, são pouquíssimas as pessoas que falam a língua iorubá, ou quimbundo. Eu falo e escrevo. As crianças me pedem para ensiná-las. Mas como? Eu não posso ensinar uma ou outra”

Mestre Chico (Foto: Anna Ortega/Nonada Jornalismo)

Mestre Chico explica que a maioria das comunidades são rurais, em lugares distantes, com custo para deslocamento, permanência e infraestrutura. Ele pede que mestres e mestras possam ter dignidade, condições de sobrevivência, e apoio para seguir o trabalho de transmissão de conhecimentos.

“Se houvesse uma bolsa, claro que me possibilitaria ir até às comunidades e passar esse conhecimento. Tenho vontade imensa. Mas será que só eu devo ter essa vontade?” E o Estado? Será que o Estado não se interessa pelas culturas populares da nação? Essa é a minha pergunta. Existem muitas leis, mas quais delas são aplicadas?”, questiona aos demais mestres e à deputada.

Mestre Alcides, Griô da Tradição Oral, cobrou uma ação concreta da deputada Erika Kokay, pedindo que ela siga com eles, não somente agora, mas sempre. “Deputada, assuma isso com a gente para agora e para sempre. Não tem jeito de a gente ainda ficar achando que não vai dar certo, que tem algum problema com os presidentes das casas. A senhora é a pessoa que vai fazer o caminho junto. Não dá mais para esperar. Eu já estou com meus 75 anos”, enfatizou.

A deputada se comprometeu em buscar a aprovação do projeto nas próximas 3 semanas, antes do recesso da Câmara. Ela deve procurar o presidente da Comissão de Constituição e Justiça para dar encaminhamento à proposta. “Estamos aqui discutindo o reconhecimento para que mestres e mestras possam ter direito à dignidade. Direito a terem uma condição, a partir do estado, de sobrevivência. Nunca conseguiram e nunca conseguiram calar os tambores”, disse no final da audiência.

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Repórter do Nonada, é também artista visual. Tem especial interesse na escuta e escrita de processos artísticos, da cultura popular e da defesa dos diretos humanos.
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