Árida/divulgação

Jogos à brasileira: desenvolvedores levam cenários como o sertão e a quebrada para os games

Um grupo de moradores da quebrada contra uma horda de zumbis. Essa é a premissa de Guetto Zombies, um jogo digital brasileiro em pixel art atualmente em desenvolvimento. A trama mostra que todo mundo que entrou em contato com o líquido acabou virando um morto vivo. Mas os moradores daquela quebrada não foram infectados, porque naquele dia aconteceu algo, infelizmente, bem comum em uma periferia: a falta de água. 

O jogo é do estúdio Fogo Games, formado por desenvolvedores que moram na quebrada de São Paulo. Dany Lima, produtora do jogo, diz que para eles é natural a ambientação. “É o lugar em que a gente vive e experiencia, então, por que não fazer jogos sobre isso?”, afirma. Incorporar elementos locais nos jogos digitais mostra que esse produto cultural também está cada vez mais assumindo cenários brasileiros. O jogo já lançou a demo, mas a equipe está em busca de financiamento para concluir o projeto.

Guetto Zombies (divulgação)

Filipe Pereira, CEO e produtor na Aoca Game Lab, com sede na Bahia, é um dos criadores do jogo ÁRIDA, lançado em 2019, no qual acompanhamos a jornada de Cícera pelo sertão do século XIX. “Reconheci no sertão um universo muito poderoso para a criação de universos ficcionais. E na história do povoado de Canudos uma passagem da história nacional de importância ímpar. Um tema já muito debatido nas universidades e trabalhado em filmes e documentários, mas raramente nos games. Identificamos a oportunidade que aos poucos foi moldando a identidade criativa da Aoca: criar jogos com forte pegada narrativa, influenciados pela história e pela cultura popular do Brasil”, explica. Um jogo indie legitimamente brasileiro, tanto na produção, como na temática, realizado a partir de uma pesquisa de campo da equipe em Canudos.

O Árida foi planejado para ser uma trilogia, e a equipe já está trabalhando no desenvolvimento do segundo jogo. A história segue acompanhando Cícera, que agora terá novos recursos. Mas, antes disso, recentemente o estúdio lançou uma versão mobile do jogo. “A expansão para o mobile tem muito a ver com o desejo de ampliar as áreas de contato do nosso público com o universo ficcional que estamos criando. E, no Brasil, nosso maior mercado, o público mobile é bem representativo”, explica Filipe.

Nos últimos anos, o mercado independente de games vem se destacando e apresentando temas e narrativas próximas de uma linguagem brasileira. Pelo menos é o que pensa o professor do Departamento de Mídias Digitais da Universidade Federal da Paraíba, Ivan Mussa. “Destacaria mais recentemente jogos como Dodgeball Academia, Unsighted, Bem Feito e Fish Person Shooter. Não necessariamente são jogos sobre lendas brasileiras, folclore, etc., mas jogos feitos com referências visuais, narrativas e culturais do Brasil contemporâneo, urbano”, diz. 

Equipe da AOC em viagem para Canudos (divulgação)

Dany Lima acredita que, assim como em outros tipos de mídia, os jogos também podem trazer questões raciais e problemas sociais. “Acho que o Guetto é uma demonstração dessa possibilidade, é um jogo divertido, um shooter com zumbis, mas há também o problema real da falta de água, muito comum na periferia. Sempre há alguma quebrada passando por isso, enquanto outros bairros mais ricos não”, aponta. Essa criação também possibilita o povoamento de personagens inspirados em pessoas do cotidiano, criando também uma espécie de crônica no cenário da quebrada representada no jogo.   

Já Filipe acredita que jogos que tratam da cultura brasileira podem sugerir oportunidades de ressignificar as relações das pessoas com as suas próprias histórias e ancestralidades. “Os games são culturalmente muito poderosos e influentes. Hoje em dia ainda mais, especialmente entre as pessoas mais jovens. Ter no ambiente interativo dos games este sentimento de pertencimento, de ‘jogar com a sua própria cultura’ é algo novo para as pessoas do Brasil. Estamos ainda nos acostumando a isso. Mas a maioria das reações que recebemos de pessoas que jogam o ÁRIDA transmitem um misto de emoção e surpresa. Algo como se encantar com o fato de poder sentir isso através dos games”, completa. 

Games, política e representatividade

A nona edição da Pesquisa Game Brasil, entre vários dados, apontou que 49,4% dos gamers brasileiros são negros (pardos e pretos) e 46,6% são pessoas que se identificam como brancas. Durante os anos de pandemia, 72.2% dos jogadores afirmam terem jogado mais, sendo que as mulheres são maioria entre os gamers, representando 51% do total. 

Apesar da diversidade de público, ainda há um longo caminho para uma maior representatividades nos jogos até dentro dos considerados Triple AAA, os grandes games com investimento financeiro pesado. “A verdade é que o crescimento da diversidade nas narrativas, com personagens femininas, negras, LGBTQIA+, etc responde a uma demanda de mercado. Sobretudo a partir dos anos 2000, com consoles como o Nintendo Wii e com a explosão do mercado de games independentes, muitas pessoas que não faziam parte desse nicho ‘gamer’ tradicional passaram a querer consumir”, diz Ivan. Um dos grandes exemplos recentes desse tipo de jogo é The Last Of Us II, que traz Ellie, uma protagonista de ação assumidamente lésbica. 

Mas essa maior representatividade também passa por ter um cenário forte de empresas desenvolvedoras de jogos que possibilitem oportunidades para que diversos tipos de profissionais consigam se inserir no mercado. O doutorando em Comunicação e Informação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e ligado ao Laboratório de Artefatos Digitais Tarcízio Macedo vê o quadro brasileiro de games como promissor, mas ainda longe de seu potencial. Para ele, é preciso investimentos em pesquisas que procurem compreender as demandas e gargalos existentes na produção e no consumo. 

“E isso não virá sem apoio governamental, sem políticas públicas no sentido de criação de incentivos tanto à capacitação e formação de profissionais, quanto à criação de condições adequadas de produção. As indústrias chinesa, americana e japonesa não cresceram sem essa relação. A brasileira, portanto, não será uma exceção. Além disso, as empresas que temos hoje estão centralizadas principalmente nas regiões Sul/Sudeste. Precisamos contornar esse tipo de problema”, aponta.

Jogos também podem ser utilizados para diferentes usos políticos. No Brasil, existe uma espécie de tradição na forma como jogadores brasileiros se apropriam de games estrangeiros. “Por exemplo, nosso modo de jogar GTA Online é muito diferente do modo como o jogo foi projetado: até carnaval já foi feito dentro do jogo por jogadores brasileiros. Outro exemplo é o Bomba Patch, que inclui jogadores e times brasileiros em jogos de futebol através de modificações piratas. Não são temas diretamente políticos, mas demonstram que os jogos são projetados para uma cultura do Norte Global, hegemônica, e o brasileiro faz o possível para se apropriar e recriar suas próprias formas de jogo a partir destes produtos”, explica Ivan. 

Tarcízio observa uma mobilização política de grupos a partir da pauta de jogos. Segundo o pesquisador, inúmeras minorias sociais levaram a discussão de pautas políticas aos videogames. “A disputa na batalha contemporânea pela renegociação da identidade do jogador rendeu vários episódios marcantes, como o Gamergate. É necessário, sim, politizar o debate sobre os videogames urgentemente, porque a retórica que impediu essa discussão criou condições para que algo ainda mais pernicioso se desenvolvesse diante dos nossos próprios olhos: a guinada dos games (e da cultura gamer) à extrema-direita. Há uma estreita relação, aliás, entre o discurso da exclusão e da subalternização empregado por jogadores e nerds/geeks e o promovido pela chamada mídia alt-right”, analisa.

Por igualdade no esports 

Integrantes do AfroGames (divulgação)

Criada em 2019, a Afrogames é um projeto de inclusão focado em jovens de comunidades de baixa renda da cidade do Rio de Janeiro ligado ao Grupo Cultural AfroReggae. Ricardo Chantilly, um dos fundadores da empreitada, conta que a ideia surgiu em conversa com José Junior, fundador do Afroreggae. “Nosso propósito é ser o primeiro centro de formação de jogadores de esportes eletrônicos e programadores de jogos dentro de uma favela. Mas com o objetivo primário de preparar eles para todos os desafios do mundo. Hoje, o projeto conta com 3 unidades e mais de 300 alunos inscritos”, diz. A primeira unidade foi lançada em Vigário Geral. 

Cada vez mais conhecido no Brasil, a área do e-sports vem crescendo rapidamente no país. A citada pesquisa Game Brasil mostra um salto enorme no público que conhece os esportes eletrônicos: os esports são conhecidos por 81,2% do público gamer; um aumento de 32,8% em relação ao último ano.

Tarcízio pesquisa o tema, e reflete sobre as gigantes desigualdades sociais que existem na prática competitiva dos jogos digitais no Brasil. “Na minha leitura sobre o fenômeno, as desigualdades nos esports se manifestam a partir de vários nós, entre eles étnico-raciais, classistas e de gênero que se emaranham com aspectos materiais, culturais, geográficos (espaciais e regionais, portanto), econômicos, infra estruturais etc., que estão conectados e desempenham um papel pelo menos tão importante quanto saber jogar. Em larga medida, desigualdades nos esports refletem desigualdades mais amplas”, diz.

Nesse sentido, iniciativas como a Afrogames podem ajudar a descentralizar esse conhecimento. “Temos cursos de programação, os alunos têm aulas de inglês semanalmente…Sempre promovemos eventos de GameJams. e Hackathon.  Já fizemos vários jogos e os “A lenda do Guaraná” e o “Ominira” estão publicados na apple store e na google play”, conta. 

Tarcízio lembra que o mercado brasileiro ainda não há espaço para regulamentação no esports, o que pode abrir espaço para que empresas atuem dentro das lacunas da lei para explorar relações de trabalho. “ Vejo o cenário de esports no Brasil como uma bomba que a qualquer momento pode explodir. Sob a sombra de todo o glamour, esperança e sonho de uma vida abastada vivendo a partir da carreira em jogos, seja como atleta ou streamer, existe uma multidão de jogadores aspirantes e semiprofissionais trabalhando muito e recebendo pouco ou nada. Isso precisa aparecer com maior seriedade no debate público”, completa.

A Rede de Pesquisa em Jogo e Cultura Política – Metagame tem assumido o compromisso de reportar algumas dessas questões. “Nosso trabalho chama a atenção sobre como o cenário de esports brasileiro não é simplesmente sobre equipes/jogadores ou possibilidades de marketing, ganhos comerciais e ascensão de novos ídolos e atletas, mas também sobre a compreensão deste contexto precário representado nas implicações sociais e problemas estruturais decorrentes da extensão das amarras coloniais ainda vigentes no país. Na esperança de que um dia elas sejam levadas em consideração e que os esports saltem para uma modalidade esportiva que considere suas muitas lacunas, que não ocorrerá enquanto uma autocrítica não for endereçada”, finaliza Tarcízio.

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Jornalista, Especialista em Jornalismo Digital pela Pucrs, Mestre em Comunicação na Ufrgs e Editor-Fundador do Nonada - Jornalismo Travessia. Acredita nas palavras.
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