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Entidades do patrimônio cultural enviam carta aos presidenciáveis

Fórum de Entidades em Defesa do Patrimônio Cultural Brasileiro, que reúne 26 entidades da sociedade civil, presente em várias unidades da federação através dos seus Fóruns Estaduais, foi criado em outubro de 2019, para denunciar os permanentes ataques e destruições promovidos pelo governo federal contra a estrutura pública de proteção e fomento, e propor ações e políticas para assegurar e ampliar a proteção às nossas manifestações culturais em todas as suas dimensões.

Em um momento em que a fome atinge milhões de brasileiros, falta trabalho e os salários são reduzidos, os acervos e as manifestações culturais são também duramente atingidos, especialmente aqueles que expressam a nossa cultura popular. Os orçamentos foram severamente reduzidos e a gestão comprometeu as políticas de inclusão e participação social, abandonadas por gestores incapazes e despreparados para lidar com a dinâmica e diversidade do universo cultural.

A jovem democracia brasileira tem sido profundamente atingida pelos episódios dos últimos seis anos e, junto com ela, também o cuidado e o respeito por aquilo que nos é tão caro: a nossa história, a nossa memória e o nosso patrimônio material e imaterial nas esferas nacional, estadual e municipal. O desmonte das políticas públicas no campo da cultura e do patrimônio atingiu diretamente os detentores, artistas, técnicos, especialistas e servidores que trabalham incansavelmente na sua proteção e preservação. Some-se a esta situação, a retomada de métodos inquisitoriais de gestão, por meio da vigilância policialesca, ameaças e utilização de processos administrativos como estratégia de coação. Os servidores são vigiados em suas redes sociais e punidos caso se manifestem com viés crítico.

A sociedade brasileira precisa refletir sobre os processos dolorosos de opressão, exclusão e violência vividos ao longo de nossa história, para que possamos encarar as consequências materiais e psicossociais que marcaram e continuam a marcar a nossa estrutura econômica, social e política.

Os séculos de opressão e desigualdades que a sociedade brasileira vive, tornaram a violência um processo naturalizado, que traz marcas nas diversas formas de práticas sociais e expressões culturais. Nesse sentido, é preciso que o Estado e a sociedade invistam em ações transversais que abordem formas de reparação, repactuação e reconstituição de laços sociais em todas as políticas públicas setoriais.

A área da cultura tem a potência de tratar temas dolorosos através das memórias, mentalidades e do imaginário coletivo, ao mesmo tempo que pode intervir de forma direta e concreta sobre a qualidade de vida da população vulnerável. Por isso, urge que os órgãos que coordenam políticas culturais criem programas com ações orçamentárias específicas e intersetoriais para afirmar a disposição do Estado e da sociedade brasileira à reparação e à justiça social.

Das políticas de patrimônio cultural: é fundamental a criação de programa(s) para preservação, salvaguarda, valorização e difusão do chamado patrimônio sensível, relacionado a processos de sofrimento e traumas, como foram os processos de escravidão e das ditaduras, da fome e do racismo, vividos ao longo da história da sociedade brasileira, especialmente pelas populações indígenas, de origem africana e comunidades tradicionais. É necessário que a difusão de bens e projetos culturais transmitam narrativas de equidade de direitos, de ideias e princípios democráticos, assim como abordem e proponham estratégias de reparação dessas violências infligidas a diversos grupos sociais e estratégias de pacificação, inclusão e defesa da diversidade cultural.

Da integração das políticas de patrimônio cultural com as políticas de desenvolvimento social, meio ambiente, assistência social e direitos humanos: é preciso efetivar a função dada ao Patrimônio Cultural pela Constituição Federal de 1988. Ele deve refletir as diversas narrativas identitárias, ser vetor de garantia de direitos fundamentais e promover a Democracia, baseando-se nos princípios de justiça, respeito e diversidade. Nesse sentido, acreditamos que programas voltados ao patrimônio material e imaterial devem interagir e promover o debate sobre a integração entre natureza e cultura, o respeito ao habitat, o direito à memória, à terra, à moradia digna e à cidade, aproximando, assim, o campo do patrimônio aos Objetivos do Milênio da ONU e a tantos outros compromissos nacionais e internacionais relacionados aos Direitos Humanos dos quais o Brasil é signatário.

Da gestão de recursos: é necessário ampliar e diversificar intersetorialmente os investimentos em cultura, que foram ainda mais reduzidos nos últimos anos por meio de repasse de verbas, editais específicos e fomento à pesquisa, incluindo e valorizando públicos e territórios que historicamente não vem sendo atendidos pelas políticas de patrimônio.

Da implementação do Sistema Nacional do Patrimônio Cultural: a descentralização das políticas de gestão do patrimônio cultural deve estar amparada por instrumentos legais sólidos e participativos que levem à cooperação entre a instância federal, os estados e municípios. Mesmo com a estrutura historicamente insuficiente para lidar com a complexidade do seu campo de atuação, o Iphan é a referência nacional para a implantação de políticas em defesa do patrimônio cultural brasileiro. Nesse sentido, a instituição deve ser desenhada e gerida de forma a manter sua expertise e disseminá-la aos parceiros públicos, apoiando-os para que possam exercer suas atribuições locais com segurança e legitimidade. É necessário ampliar a formação de quadros profissionais capazes de formular e implementar, políticas de identificação, reconhecimento, conservação, salvaguarda, normatização e fomento, pesquisa e difusão cultural. Novamente deve-se avançar em termos legais e institucionais, com desenho organizacional e inovação na legislação, discutindo-se ferramentas compartilhadas, delegação, descentralização gradativa, mas também fortalecendo políticas de ensino, pesquisa e extensão, visando a formação e ampliação de quadros de profissionais e especialistas que atuem no campo da preservação. Na estruturação do Sistema Nacional de Patrimônio Cultural é fundamental que se implemente um Fundo Nacional do Patrimônio Cultural Brasileiro, regulamentando a fonte de financiamento e investimentos, a destinação e o repasse dos recursos aos estados e municípios.

Das relações de parcerias e apoio técnico internacionais: urge recuperá-las para promoção da salvaguarda e da preservação do patrimônio cultural, principalmente nos países do Sul Global, da comunidade lusófona e da América Latina, entendendo que as parcerias devem levar a uma cooperação mútua entre os países, compartilhando os desafios específicos de cada um e respeitando a diversidade e a contribuição de todos os povos.

Dos programas de proteção ao patrimônio cultural: implementar programas que tenham como base o tripé “Cultura, Educação, Território” e que sejam geridos em parceria com a sociedade civil e governos, para fortalecer as relações sociais comunitárias, capazes de reconstruir o pacto social e unificar a nação em torno da construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Partimos do entendimento de que a construção de uma identidade nacional a partir do patrimônio cultural tem sido indissociável dos processos de espoliação da terra a que foi submetida grande parte da população brasileira. Não pautar as políticas patrimoniais a partir da superação dessa situação é ignorar o potencial transformador que as narrativas identitárias têm para o desenvolvimento social da população brasileira. Nesse sentido, é preciso atentar-se aos riscos relacionados à flexibilização e desregulamentação de processos de licenciamento ambiental e de desenvolvimento urbano, que ignoram a necessidade de estudos mais aprofundados e que demandam prazos mais prolongados do que os reivindicados pelos empreendedores (públicos e privados).

Da reestruturação do Iphan: um órgão renovado para um novo tempo: para fazer frente a esses desafios, é preciso redesenhar a instituição, respeitando, entretanto, seu histórico e sua solidez. Para tanto, é necessária a implementação de instrumentos de gestão participativa nas políticas de patrimônio cultural, entendendo que os conselhos e comitês precisam refletir a diversidade cultural e econômica da sociedade. É preciso ampliar a representatividade social no Conselho Consultivo, assim como em outras instâncias de participação social que promovam o controle social das políticas públicas, de forma a fortalecer e democratizar instâncias de gestão e garantir a transparência dos órgãos de preservação do patrimônio cultural. É preciso garantir a participação social ao longo de todas as etapas do processo de planejamento e gestão do patrimônio cultural. É fundamental também ampliar a participação de servidores do Iphan nas instâncias de deliberação política e orçamentária do órgão, como da Diretoria Colegiada, das instâncias de decisão relacionadas às políticas de capacitação e de gestão de recursos humanos. Importa também implementar um sistema independente de gestão de modo a contribuir para um processo mais protegido de influências de interesses econômicos e políticos escusos, que prejudiquem a gestão pública e a estrutura do Estado. Por último, no âmbito do fortalecimento institucional, é urgente apontar para a necessidade de valorização do trabalho dos servidores da cultura, por meio da criação de um Plano de Carreira específico. É necessário que os servidores do quadro da cultura possuam um horizonte de desenvolvimento, crescimento e valorização na carreira a fim de motivar a permanência nos seus órgãos. Os indicadores de aposentadoria e evasão de servidores apontam para a iminente possibilidade de perda da qualidade do serviço prestado à sociedade e a impossibilidade de atendimento às demandas que são de atribuição das autarquias, fundações e da administração direta ligada ao setor da cultura.

Concluímos, destacando que a gestão participativa e a recuperação da autonomia para implementação de uma política de estado, como é a da preservação do patrimônio cultural, exige uma organização onde a sociedade civil tenha representação expressiva e autônoma, menos suscetível a atitudes totalitárias como as que atualmente vivenciamos, caracterizadas pelo negacionismo e destruição sistemática de duras conquistas históricas.

Reafirmamos a necessidade de fortalecer a política nacional de patrimônio cultural, em torno das pautas de reparação histórica, ampliando os instrumentos de gestão e de participação social, consolidando o entendimento de que a cultura e o patrimônio cultural são direitos fundamentais, imprescindíveis, e que precisam ser garantidos e impulsionados por um Estado Democrático de Direito.

Brasil, 17 de agosto de 2022.

As entidades abaixo subscrevem o documento:

  • ABA – Associação Brasileira de Antropologia
  • ABAP – Associação Brasileira de Arquitetos Paisagistas
  • ABEA – Associação Brasileira de Ensino de Arquitetura
  • ABGC – Associação Brasileira de Gestão Cultural
  • ANPARQ – Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo
  • ANPEGE – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia
  • ANPUH – Associação Nacional de História
  • ANPOCS – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais
  • ANTECIPA – Associação Nacional de Pesquisa em Tecnologia e Ciência do Patrimônio
  • ARQUIFES – Rede Nacional de Arquivistas das Instituições Federais de Ensino
  • AsMinc – Setorial dos Servidores do IPHAN na Associação dos Servidores do 
    Ministério da Cultura
  • CBHA – Comitê Brasileiro de História da Arte
  • DOCOMOMO Brasil – Seção Brasileira do Comitê Internacional para a Documentação e Conservação de Edifícios, Sítios e Conjuntos do Movimento Moderno
  • FENEA – Federação Nacional dos Estudantes de Arquitetura e Urbanismo
  • FNA – Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas
  • FNArq – Fórum Nacional das Associações de Arquivologia do Brasil
  • IAB – Instituto de Arquitetos do Brasil
  • ICOM-BR – Comitê Brasileiro do Conselho Internacional de Museus
  • ICOMOS Brasil – Comitê Brasileiro do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios
  • SAB – Sociedade de Arqueologia Brasileira
  • SBS – Sociedade Brasileira de Sociologia
  • PróIPHAN – Grupo formado por servidores aposentados do IPHAN
  • TICCIH Brasil – Comitê Brasileiro para a Conservação do Patrimônio Industrial
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