Kiusam de Oliveira (Foto:Dinarci Borges/FiliGram)

Festival Literário de Gramado propõe falar sobre diversidade em cidade conservadora

A primeira edição do Festival Internacional Literário de Gramado, o FiliGram, começou histórica. Logo na abertura, o poeta e fundador do Dia da Consciência Negra Oliveira Silveira foi homenageado em um painel protagonizado por sua filha, a pesquisadora Naiara Silveira. Ela repassou momentos da vida e da obra do poeta, em uma fala didática e alegre, mas que foi marcada por alguns burburinhos de pessoas brancas na plateia. 

“Negro no sul não quer mais abolição como data da raça”, dizia a manchete do Jornal do Brasil de 1971, noticiando as ideias do Grupo Palmares, do qual Oliveira fez parte e que propôs o 20 de novembro como data oficial do antirracismo. “O que ele deixou pra mim? Meu pai me deixou uma herança bem pesada, que é dar continuidade, seguir esse legado.”

O FiliGram já chegou demarcando sua identidade como um evento democrático e inclusivo, mesmo inserido em uma cidade em que 68% da população votou em Bolsonaro em 2018. Com pautas como identidade de gênero, protagonismo indígena, acessibilidade cultural e mercado editorial, a proposta é tornar Gramado conhecida no Brasil e no mundo como uma cidade que pensa literatura. A curadoria do Festival é coletiva, com nomes como o editor Eduardo Krause, o coletivo de afroeducadoras Sankofa, o portal Literatura RS e a ex-editora da Marvel no Brasil, Carol Pimentel.

Na programação, várias das mesas são pautadas pelo olhar decolonial. Alguns desses eventos falam sobre a importância de abordar o antirracismo na literatura, com Paulo Scott e Taiasmin Ohnmacht e as histórias indígenas na cultura pop, com Sâmela Hidalgo, Cacique Maurício Kaingang e Rayane Xipaya, do Xingu. Outros temas presentes são a curadoria literária, escrita criativa, literatura na era dos criadores de conteúdo, além de games e histórias em quadrinho.

O festival está acontecendo no Centro Municipal de Cultura, dois quilômetros longe do centro, mais procurado pelos turistas. A localização pode ter contribuído para o esvaziamento de algumas mesas. Foi o que aconteceu com a educadora Kiusam de Oliveira. Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo, ela protagonizou a mesa mais emocionante do festival até o momento, falando sobre como o antirracismo precisa ser abordado de forma estrutural – mesmo em organizações de eventos como o próprio FiliGram.

Kiusam criticou a organização do festival pela falta de público na sua mesa. “Quando pensamos em um evento assim, precisamos preparar o território, porque estão nos matando, e isso não é retórico, simbólico, é muito real”. O ocorrido suscitou questionamentos sobre a relação entre o evento cultural e seu público. Será que Gramado está preparada para finalmente debater o racismo a fundo?

Literatura em tempos sombrios

Afonso Cruz, Jeferson Tenório e Vanessa Passos (Foto: Dinarci Borges/FiliGram)

Qual a função da arte em tempos sombrios como o que estamos vivendo? A pergunta da escritora Vanessa Passos ecoou na tenda principal do FiliGram. O termômetro batia menos de 10 graus às 20h do dia 2 de setembro quando os escritores Afonso Cruz e Jeferson Tenório se reuniram em uma conversa híbrida mediada por Vanessa. 

Tenório, vencedor do Prêmio Jabuti com o livro “O Avesso da Pele”, participou online direto da Universidade de Brown, onde está atualmente lecionando como professor convidado. “A arte não tem essa utilidade capitalista. Se a religião e a ideologia oferecem respostas, a literatura oferece questionamentos, investigações afetivas e estéticas. A arte vem para contestar a realidade”, disse.

O autor também criticou o governo Bolsonaro, refletindo sobre os motivos que levam o presidente a promover um desmonte na área. “Quando um governo fascista chega ao poder, uma das primeiras coisas que ele faz é acabar com a cultura. E foi o que aconteceu no Brasil. A arte incomoda as pessoas porque ela mexe com essa estrutura que não passa por essa racionalização do conhecimento, ela toca as pessoas de outro modo”.

O escritor português Afonso Cruz é autor do livro “Vamos comprar um poeta”, que retrata um universo distópico no qual as pessoas não compram animais de estimação, mas sim artistas. Ele avalia que a utilidade da arte é subjetiva, pode significar muito para algumas pessoas e nada para outras, dependendo do viés. Ele também criticou governos anteriores de Portugal que cortaram recursos da cultura com a justificativa de poupar dinheiro. “Poupar qual dinheiro? O orçamento do ministério da Cultura é minúsculo”.

Relações decoloniais e a presença da literatura

A importância da memória e a potencialidade que a literatura tem de resgatá-la também foi um tema levantado pela mediadora Vanessa Passos, vencedora da 6ª edição do Prêmio Kindle de Literatura. Para Tenório, a memória é intrínseca à literatura. Ele também destacou a relação das culturas de matriz africana com a memória. 

“É uma relação de olhar para essa memória não como algo preso no passado, mas como uma espécie de síntese do próprio tempo, como se o futuro, o passado e o presente fizessem parte de uma mesma estrutura”. A literatura também tem esse poder, segundo o autor. “E o que a literatura faz é mexer um pouco com essa estrutura. Dependendo do modo como é a narrativa, nós [autores] conseguimos estabelecer uma outra relação com o tempo”. 

Sobre as relações entre Brasil e Portugal na literatura, foi consenso que ainda é preciso estreitar mais os laços. Afonso Cruz destacou que os escritores de língua portuguesa têm dificuldade de serem traduzidos em outros países e que, mesmo em Portugal, a cultura norte-americana é muito mais valorizada pelas pessoas do que a cultura portuguesa, incluindo elementos como o fado. Cruz também abordou a questão da decolonialidade e a relação de Portugal com suas ex-colônias. “Cada vez mais em Portugal somos menos retrógrados, meus filhos estão sendo educados muito melhor do que eu fui”.

Já Tenório observou que, em meio a uma diversidade de narrativas da literatura portuguesa contemporânea, há alguns temas se destacando, como o retorno às guerras coloniais, ao processo de descolonização e a uma narrativa de histórias que repensam a identidade portuguesa e a relação com as ex-colónias. “Em Portugal, vemos alguns autores brasileiros circulando, mas me parece muito dentro do cânone. Assim como também é difícil encontrar literatura portuguesa no Brasil, e nesse sentido acho que precisamos quebrar alguns estereótipos identitários dos países”. 

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Nortista vivendo no sul. Escreve preferencialmente sobre políticas culturais, culturas populares, memória e patrimônio.