Foto: Marcello Casal Jr/Agência brasil

Discurso de Bolsonaro sobre quilombolas vai de ataques ao assistencialismo em 8 anos

A posição de Jair Bolsonaro e de seus filhos sobre as comunidades quilombolas mudou algumas vezes nos últimos 8 anos, segundo os discursos da família nas redes sociais. O Nonada Jornalismo analisou posts publicados pela família Bolsonaro em aplicativos como como Telegram, Instagram e Youtube com o auxílio da ferramenta Metamemo, sistema criado para coletar, armazenar e visualizar as memórias de qualquer pessoa nas mídias sociais. 

A partir das palavras-chave “quilombo” e “quilombolas”, foram identificados 83 conteúdos que abordam comunidades remanescentes de quilombos e demarcação de terras quilombolas. Os discursos se alteraram algumas vezes, variando entre a opinião de que a democracia estaria em risco se os quilombolas governassem o Brasil, em publicação de 2014, até o anúncio de medidas assistencialistas nos meses que antecederam as eleições de 2022.

A opinião da família Bolsonaro sobre as comunidades quilombolas ganhou notoriedade em 2017 devido a uma fala racista, quando o então pré-candidato à Presidência declarou em um evento no clube Hebraica, no Rio de Janeiro, que havia visitado um quilombo e que os moradores da comunidade “não servem nem para procriar”:

A fala ganhou ampla repercussão na imprensa, e Bolsonaro foi processado pelo Ministério Público Federal por danos morais. Em 2019, o presidente foi absolvido pela Justiça do RJ, que entendeu que ele tinha imunidade parlamentar e que a fala racista “não o colocava em posição de vantagem em relação aos demais pré-candidatos”. 

Em anos anteriores, Bolsonaro já havia publicado, em suas redes sociais, posts depreciativos, incluindo mensagens associando quilombolas, indígenas e LGBTQIA+s ao fim da democracia. Em 2014, enquanto deputado federal,  ele informou no facebook e instagram que entraria na Justiça contra o decreto da Política Nacional de Participação Social, que regulamentaria a participação da sociedade civil no governo. A medida foi revogada em 2019 por decreto do próprio Bolsonaro. Ele também se referiu aos grupos como “grupelhos de esquerda”.

Em 2016, seu filho Carlos Bolsonaro publicou uma mensagem contando que havia visitado um quilombo na  Chapada dos Veadeiros e criticou a demarcação de terras e auxílios sociais do governo aos quilombolas:  

“Além de terras, estes grupos também recebem auxílios propostos pelos governos. Conheço alguns ditos “quilombos” e garanto que todos que visitei mantém o mesmo padrão a seguir. (…) Além dos buracos, até comuns na região, é fácil encontrar pequenos rios que cruzam as pistas impossibilitando passagem segura dos veículos, problema que seria facilmente resolvido com uma enxada para escoamento do outro lado da via”, diz o post publicado no blog da família.

Carlos Bolsonaro em visita a um Quilombo na Chapada dos Veadeiros (Foto: blog da família Bolsonaro/reprodução)

O político também atacou o valor de ingresso no local  e as associações de turismo comunitário, “que visivelmente faturam com a exploração desproporcional de pessoas que ali moram”, segundo Carlos.

Crítica às demarcações e ao modo de vida das comunidades

Os dados disponíveis na plataforma Metamemo mostram que o volume de posts da família Bolsonaro sobre o tema aumentou em 2017, mais precisamente dois dias após a fala no clube Hebraica. Os posts veiculados naquele ano traziam discursos contra a demarcação de terras e afirmavam que os quilombolas e outras minorias seriam massa de manobra da esquerda. 

Em post do dia 7 de abril, Jair Bolsonaro rebateu as acusações de racismo contra ele e questionou se os quilombolas trabalham ou vivem às custas dos impostos. Na legenda do vídeo, publicado por ele no facebook e replicado um dia depois por Eduardo Bolsonaro, ele pergunta: 

Já o conteúdo do vídeo trata das demarcações dos territórios quilombolas: “ Você sabe o que é quilombola? Você sabe o que é uma reserva indígena? Ser contra essas demarcações é ser contra índio? É ser contra o negro? É ser racista? Falar a verdade dói. (…) a indústria da demarcação das terras indígenas está perfeitamente alinhada com o que acontece no meio quilombola. Demarcações descomunais e sem qualquer razoabilidade.”

Em 2018, a família passou a compartilhar vídeos de apoiadores que se autodenominam quilombolas. O mais notório deles é Paulo Quilombola, que declarou apoio a Bolsonaro no dia 26 de junho de 2018, em post publicado por Jair e por Flávio. 

No dia seguinte, a Conaq – Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, soltou nota de repúdio a Paulo. “Esse cidadão que se diz “quilombola” e “professor” (seria importante ele comprovar essas credenciais para não incorrer no crime de falsidade ideológica, isto é, mencionar a que comunidade quilombola pertence, por exemplo) usa a “sua” associação para tentar enganar/caluniar lideranças quilombolas de algumas regiões desta unidade federativa. Aliás, é importante frisar que essa instituição [da qual Paulo se diz líder] foi criada sem qualquer articulação com as lideranças quilombolas e/ou do movimento negro deste estado”, diz a nota, relatando que Paulo estaria usando suas redes sociais para publicar “calúnias e difamações” sobre lideranças quilombolas. A nota é datada do dia 24 de abril.

Paulo Quilombola ao lado de Bolsonaro (Foto: reprodução/facebook)

O bolsonarista, que se diz presidente da Federação das Comunidades Quilombolas e Populações Tradicionais do Estado do Pará, foi candidato a deputado estadual em 2022, mas não conseguiu se eleger. Ele e a esposa foram acusados de cobrar dinheiro de moradores de comunidades em troca de um suposto apoio do governo.

Outro vídeo de apoiador já havia sido replicado nas redes de Bolsonaro meses antes, em 16 de abril. Emídio de Souza, autodeclarado “líder dos quilombolas de Mato Grosso”, aparece ao lado de um político integrante do grupo “Direita Mato Grosso” refutando as acusações de racismo contra o então candidato à presidência: “eu vejo como crítica sem fundamento, até porque nossas comunidades tradicionais de quilombos tem pessoas que sobrevivem ali na comunidade, mas também tem pessoas que vêm se salvando”, opinou o apoiador, fazendo referência aos quilombolas que trabalham fora de suas comunidades. 

Ainda em 2018, o então candidato Bolsonaro republicou um vídeo de um protesto em uma rodovia  do município de Eldorado, em São Paulo, com a legenda: “Usando tática do MST ativistas quilombolas de Eldorado/SP fecham rodovia.” A comunidade de Eldorado é a mesma que Bolsonaro disse ter visitado em 2017, quando falou que “o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas”. 

Ausência de políticas públicas dá lugar ao assistencialismo

Os discursos da família mudaram de tom a partir de 2019, com Bolsonaro já eleito presidente do Brasil. Os ataques e reações às acusações de racismo deram lugar a uma proposta de integração, mesma visão adotada pela ditadura militar para os indígenas. Um dia depois da posse, em 2 de janeiro, Bolsonaro publicou em seu facebook, acusando ONGs de explorarem quilombolas e novamente criticando as demarcações. Ele também afirmou que territórios de comunidades tradicionais estão isolados do “Brasil de verdade’:

A Constituição de 1988 garante aos quilombolas o direito a seus territórios no artigo 68: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. Esse direito, bem como o direito a práticas sociais e culturais próprias, é reafirmado pela Política Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais, aprovada em 2007.

A partir de 2020, com a pandemia de covid-19, tanto Jair quanto seus filhos passaram a anunciar nas redes medidas pontuais de auxílio aos povos indígenas e às comunidades quilombolas. Ações do governo como a disponibilização de vacinas para as comunidades e a distribuição de cestas básicas foram compartilhados até 2022, muitas vezes atribuindo as medidas à ministra Damares Alves, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

A maioria dos posts da família sobre os quilombolas em 2020 foram de autoria de Carlos Bolsonaro, que chamou as comunidades de “isoladas e carentes”. No dia 10 de fevereiro, ele publicou no facebook: “Em 400 dias de governo Bolsonaro, alguns resultados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos ( Damares Alves ):1.021 famílias quilombolas, que moram em comunidades isoladas e carentes sendo atendidas por construções de cisternas no Nordeste e Centro-Oeste.” Em agosto, ele avisou que o ministério estava organizando a distribuição de cestas básicas para “162.000 famílias quilombolas devido ao fechamento de comércio de muitos estados e municípios”. 

Flavio Bolsonaro também publicou medidas do governo no ano seguinte, depois de uma decisão do STF movida pela Conaq que determinou ao governo a criação de um plano emergencial de auxílio aos quilombolas, em fevereiro. No dia 20 de março de 2021, Flavio publicou que  as vacinas da Astrazeneca seriam destinadas a comunidades ribeirinhas e quilombolas. Em maio, anunciou o “fortalecimento de equipes de assistência em saúde para povos e comunidades tradicionais indígenas e quilombolas”. 

No mês seguinte, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin determinou que o governo Federal garantisse água potável e distribuição de alimentos às comunidades quilombolas, sob a alegação de que o governo não estaria cumprindo com medidas emergenciais básicas a esse público. Três meses depois, o ministro voltou a determinar o cumprimento da ação, incluindo a vacinação imediata de todos os quilombolas.

Para o coordenador executivo da Conaq, Denildo Rodrigues de Moraes, “a distribuição das cestas básicas não pode substituir políticas públicas de fomento à produção e comercialização pelas comunidades quilombolas, essa é uma medida emergencial em função da pandemia, mas também em função dos sucessivos erros da política econômica do governo federal”. 

Jair Bolsonaro investiu no anúncio de medidas sociais após a nova decisão do STF. Nos meses que antecederam as eleições de 2022, ele publicou pelo menos cinco posts com medidas para os quilombolas.  Entre as mensagens, estavam o anúncio de que destinaria R$ 11 milhões para disponibilizar bolsas a estudantes indígenas e quilombolas – através do Bolsa Permanência, programa criado em 2013 – e a distribuição de 20 mil toneladas de alimentos às comunidades. 

No mesmo ano, o presidente também focou na pauta da segurança pública, utilizando o discurso armamentista para dizer que as comunidades quilombolas estavam mais seguras. Em 20 de junho de 2022, ele avaliou que estava protegendo povos indígenas e quilombolas ao ampliar posse de arma aos fazendeiros: 

Governo Bolsonaro concedeu três titulações de 273

Desde a posse de Jair Bolsonaro como presidente do país, apenas 3 comunidades quilombolas foram tituladas pelo governo Federal: Paiol de Telha, em Reserva do Iguaçu (PR), Invernada dos Negros, em Campos Novos (SC), e Rio dos Macacos, em Simões Filho (BA). Segundo a Conaq, as três titulações foram cumpridas após decisão judicial.

O Brasil possui 273 comunidades quilombolas tituladas parcial ou totalmente. A certificação existe desde 1995 e é realizada tanto pelo Incra quanto por órgãos estaduais. Mais de 3 mil territórios quilombos reconhecidos, entretanto, não são certificados oficialmente, e cerca de 1800 têm processos abertos para receber a titulação. 

No final de agosto, o governo publicou nota normativa determinando que a titulação de terras quilombolas só será realizada caso haja recursos disponíveis no orçamento.  Outros decretos do governo já haviam determinado que a Fundação Cultural Palmares poderia decidir que quilombolas que não moram em suas comunidades não teriam direito à Bolsa Permanência.

Em nota publicada em 31 de agosto, a Conaq criticou a atuação de Bolsonaro e o uso de decretos para barrar os direitos do quilombolas “Ainda candidato, o então presidente prometeu retirar direitos das populações quilombolas e vem cumprindo sua promessa desde os primeiros dias de seu mandato. O discurso governamental racista de perseguição e negação de direitos das comunidades vem sendo materializado na edição de atos normativos sem consulta às comunidades em total ofensa ao Princípio do Consentimento Prévio, livre  e Informado, garantia constitucional recepcionado na Convenção 169 da OIT”, diz a coordenação.

*Esta reportagem foi financiada por recursos do projeto Bolsodata, da Associação Brasileira de Imprensa em parceria com a plataforma Metamemo.

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Nortista vivendo no sul. Escreve preferencialmente sobre políticas culturais, culturas populares, memória e patrimônio.
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