A trajetória da companhia Makki no teatro infantil

Isaías Rheinheimer*

Ele já morou debaixo da lona de um circo. Saiu de casa no início da fase adulta em busca da tão sonhada formação acadêmica. Chegou a concluir o curso de Administração e Serviços, pensando em trabalhar no ramo turístico-hoteleiro. Não teve jeito: sua relação com as artes cênicas falou mais alto. Voltou a atuar. Casou, comprou casa e, cansado de viver de freelancer, montou sua própria companhia de teatro em uma cidade do interior gaúcho. 

A história de vida de Cássio Alberto Schonarth pode ser a história comum de qualquer artista, que experimentou diferentes oportunidades ao longo da vida, que viveu uma fase aventureira na adolescência, que prometeu tomar juízo ao frequentar a faculdade – que à época era pré-requisito para obter uma boa colocação no mercado de trabalho -, que constituiu família e, por fim, cansado de servir aos outros, decidiu montar seu próprio negócio.  

Mas, não. No script da história de vida de Cássio há um tópico que o difere de muitos outros artistas do Rio Grande do Sul: ele já esteve em mais de 400 das 497 cidades do Estado com sua companhia de teatro, a Makki Produções. Não que este índice seja métrica de sucesso, mas para uma companhia de teatro pequena, que decidiu se instalar em Estância Velha, cidade sem qualquer tradição neste nicho cultural e que fica a 45 quilômetros de Porto Alegre, este é um feito que merece, ao menos, ser contado e reconhecido.

Nesta entrevista, além de falar brevemente sobre sua história até o surgimento da Makki, Cássio também opina sobre outros assuntos relacionados à cultura. Ele fala sobre a importância das leis de incentivo, analisa a conjuntura política que impacta o setor e não deixa de responder sobre um recente episódio de censura sofrido por um grupo de teatro após um político da sua cidade questionar o teor de uma peça teatral infantil apresentada na Feira do Livro de Estância Velha. Confira a entrevista:

A Makki é uma companhia de teatro infantil que está sediada em uma cidade, digamos, interiorana. O que te motivou a criar a Makki, quais os propósitos da companhia? O fato de estar em Estância Velha, relativamente distante do principal centro cultural do RS, que é Porto Alegre, é um problema pela distância?

Cássio Schonarth – Fundei a Makki em 2008, com minha esposa, Ana, e isso tem muito a ver com os propósitos de vida. Já fazia teatro na minha cidade natal, Ibirubá, e cheguei a viver em um circo-teatro com um grupo de amigos, logo depois do Ensino Médio, mas não deu certo. Foi quando decidi vir morar em Estância Velha, para fazer faculdade na Feevale. Cheguei em 2001 e logo, pelos contatos que tinha, comecei a fazer teatro com grupos de Porto Alegre. Não adianta, quando a gente é picado pelo mosquito da cultura… (risos). Em 2004, conheci a Ana nos festivais, e no ano seguinte começamos a namorar. Em 2007, a gente passou a morar junto e, na sequência, fundou a Makki. 

Cansamos de trabalhar de forma freelancer, com diferentes grupos. Queria construir meus próprios espetáculos, com minha linha de pensamento, de pesquisa, com nossa identidade, sabe? Nosso propósito é muito claro: é fazer teatro para crianças de todas as idades, em todos os lugares. Partimos do pressuposto que se é criança ou já se foi criança um dia, e entendemos que para uma apresentação teatral não precisamos de uma formação tradicional, de palco italiano, como a gente chama. Pode acontecer na rua, em um CTG, em cima de uma carreta-palco, em qualquer lugar. 

O fato de estar localizado em uma cidade como Estância Velha, descentralizado de Porto Alegre, nunca inviabilizou nosso trabalho. Na verdade, aqui é nosso endereço fixo, mas somos cidadãos do mundo, tanto que realizamos apresentações em todo eixo sul do Brasil. Claro, a gente atua fortemente em todo o RS. Dos 497 municípios gaúchos, a Makki já se apresentou em mais de 400, o que é muito representativo, mostra nossa força e, por que não, a nossa reputação.

A Makki nasceu em um momento da história política brasileira em que o governo efetivamente investiu em Cultura, mas também viu depois um presidente recém-eleito transformar o Ministério da Cultura em uma secretaria especial dentro do Ministério da Cidadania. As decisões de Brasília afetaram de alguma forma a Makki?

Cássio Schonarth – Essa questão da valorização da cultura sempre nos leva a refletir sobre algumas coisas. Um povo que não conhece a sua identidade cultural, que não conhece a sua história, é mais fácil de ser manipulado, e parece ser o que querem fazer quando deixam de investir em cultura e na educação. Desde o surgimento da Makki, vivemos um período de grandes transformações e investimentos e, mais recentemente, um desmonte daquilo que havíamos avançado e conquistado.

Num primeiro momento, a gente não se sentiu afetado diretamente, pois 90% das vezes éramos contratados pelo Sistema S, em especial pelo Sesc e pelo Sesi. Porém, a partir de 2018, e depois fortemente em 2019, a gente sentiu nossa agenda definhar e os boletos continuarem vindo. Atribuo essa queda de apresentações ao desmantelamento das políticas públicas para a cultura. Então, a gente procura uma nova ocupação e o teatro passa a ser uma segunda opção, ser nosso segundo emprego. A gente faz isso por segurança. Preciso fazer uma ressalva: o desmonte da cultura no Brasil talvez impactou menos a categoria no RS, pois tivemos, na contramão da extinção do Ministério da Cultura, a volta da Secretaria Estadual de Cultura, o que dá um novo gás, um novo momento para a cultura aqui no Rio Grande do Sul, com editais nunca abertos anteriormente, com prêmios, com circulação, a própria lei de incentivo estadual, que é uma lei de fomento fortíssima, com dinheiro nunca investido em outros tempos. Então, isso possibilitou um outro momento, um outro aquecimento.

Durante o período da pandemia de Covid-19, o setor cultural foi um dos mais prejudicados devido à necessidade de medidas sanitárias que impediram a realização de eventos com aglomeração de pessoas. Foram quase dois anos de cortinas fechadas. Como a Makki, sendo uma companhia de teatro pequena e do interior, sobreviveu a este período?

Cássio Schonarth – Nossa salvação foi o fato de eu e a Ana estarmos empregados, e as pessoas que trabalham diretamente conosco também serem profissionais liberais, e que tiveram a possibilidade de dar sequência nos seus trabalhos. Aproveitamos o momento para gravar dois dos nossos espetáculos, sem recorte, sem edição, e comercializamos por um preço mais baixo, mas comercializamos para monetizar um pouco daquilo que a gente fazia. Aí surgem as possibilidades da Lei Aldir Blanc, tanto de atuação direta, como também pelo conhecimento técnico, como avaliador e responsável técnico de projetos em editais. Trabalhei no edital da Fundação Marcopolo – Diversidade da Cultura, em parceria com o governo estadual, quando a gente produziu materiais para o FAC Digital, desenvolvido em parceria com a Feevale.

Então que a Makki promoveu espetáculos on-line com lei de incentivo? Como foi esta experiência? A produtora aproveitou o período crítico da pandemia para produzir algo novo?

Cássio Schonarth em espetáculo. (Foto: Arquivo pessoal)

Cássio Schonarth – Foi uma experiência desafiadora, mas valiosa. Como referi acima, gravamos dois espectáculos e isso foi muito bacana. Sobre novas produções, a gente chegou a receber uma proposta de um projeto, cujo espetáculo seria sobre a pandemia e exclusivamente para o vídeo. Desenvolvemos um texto e chegamos a ensaiar, estava em fase de produção, mas foi bem naquele momento que começaram a liberar algumas coisas, no ano passado. Então, esse trabalho encomendado para o on-line, na verdade, não aconteceu. Acabou que apresentamos no formato tradicional, de forma presencial.

Qual a importância das leis de incentivo para a Makki e para a cena cultural como um todo?

Cássio Schonarth – Para nós e para muitos outros artistas, a Lei Aldir Blanc, especialmente, foi muito importante. Ela nos possibilitou, não apenas para a Makki como para tantos outros artistas de Estância Velha, receber um recurso para entregas posteriores, o que nos ajudou a colocar algumas contas em dia, como o pagamento de impostos que a gente optou, naquele momento da pandemia, ficar devendo. Por isso, a Lei Aldir Blanc, não digo que foi a salvação, mas foi um respiro que possibilitou que artistas atravessassem esse período, uma sobrevivência. Mas, assim, a gente ainda tem um período em que vai sofrer para ver novas produções e grupos surgirem. Diria que por um ou dois anos, até o refortalecimento da área.

Agora em outubro, uma polêmica envolvendo uma peça teatral, curiosamente, após uma apresentação na Feira do Livro de Estância Velha, cidade onde a Makki está sediada, reacendeu um debate forte sobre a censura. A peça “Alice – Além da Toca do Coelho” esteve no centro do debate, após internautas e um vereador da cidade questionarem o fato de a peça ter um ator com barba que se veste de Alice. Além de questionar isso, o parlamentar insinuou que a peça fazia uso de linguagem neutra e tratava sobre ideologia de gênero. Após a polêmica, a Prefeitura de Campo Bom decidiu tirar a referida peça da sua programação da Feira do Livro. Qual sua avaliação sobre o caso? A Makki chegou a se posicionar após a polêmica?

Cássio Schonarth – É um pouco delicado a gente falar, e não é se eximir, não é se isentar da situação, mas é delicado, pois, quem estava lá? Quem assistiu? Uma coisa é “eu ouvi falar”, “recebi prints e imagens”, mas em que contexto isso está inserido? Um espetáculo não é jogado simplesmente em cena, tem muita pesquisa, e é isso que as pessoas precisam entender. O espetáculo “Alice – Além da Toca do Coelho” é premiado, com atores conhecidos do cenário gaúcho, inclusive tem pessoas cursando mestrado ou doutorado na área de história e de teatro. 

Volto a uma afirmação anterior: o teatro está ali para questionar, não está ali para afirmar nada, aí penso no que acontece pós-espetáculo. Não se conversa com as crianças? Não se possibilita uma discussão, um diálogo? O que choca é o que eu vejo ou o que eu tenho de pré-conceito de determinada coisa? O que eu julgo, aquilo que não quero ver? Ou o que estou julgando? Ou quero apenas gerar engajamento, polemizar, pra ser o foco da atenção? Qual é o meu papel perante isso? Então, são vários questionamentos. Já tinha assistido ao espetáculo em uma Feira do Livro on-line, e confesso que não vi nada demais. 

Acho que isso deveria servir como ponto de partida para uma discussão aberta, plausível, com foco nas diferentes configurações familiares e que sim, qualquer ser humano, qualquer criança, pode ser o que quiser. A criança não tem esse olhar maldoso do adulto. A criança brinca de ser árvore, ela brinca com carrinho, brinca com boneca, e isso não significa em nada se vai optar ser menino ou menina no futuro. Às vezes brinco: “Não é por usar uma camiseta rosa que vai cair o pinto de um menino”. 

A gente tem que parar de pensar e sexualizar tudo que é visto, ainda mais para uma criança, que é uma simplicidade, um olhar lúdico sobre experimentar. Para mim, não tem o certo e o errado. Tem a questão de valores, de diálogo, da construção em cada família, em cada criança, em cada lar, grupo social, tribo, enfim. Acho que a gente tem que ter menos opinião e mais atitude para discutir, construir ideias, e não criar bloqueios.

Tu e a Makki estão preocupados com os ataques de conservadores em relação à arte e à Cultura? Já sofreram algum tipo de censura?

Cássio Schonarth – A frase que melhor resume: a ignorância escraviza, a cultura liberta. Liberdade de expressão passa pelo caminho de respeitar o outro. A tua opinião é a tua opinião e ela não é, necessariamente, a opinião da maioria. É o teu ponto de vista. Outros terão outros pontos de vista para a mesma situação. Atacar a arte e a cultura é um retrocesso de ignorar a nossa própria história e consequentemente o nosso futuro também. A arte é questionadora, provocadora, ela não entrega nada pronto. Ela é o ponto de partida para discussões, debates, não se quer afirmar nada, e sim provocar. 

E aí que está o x da questão: os mais conservadores querem ignorar o que o mundo apresenta, confundem fé com religião, classe com falta de classe, liberdade com libertinagem, política com politicagem, ideia com ideologia. É mais fácil ter uma sociedade de pensamento raso, sem desenvolvimento intelectual. Quando não se questiona, não se pensa, não se conhece nada, a mentira passa a ser verdade e simplesmente se replica e compartilha. A Makki, felizmente, nunca sofreu censura direta, mas já fomos questionados sobre temáticas, do que se trata, como nós levávamos isso pra cena, o que de certa forma é uma espécie de censura velada. E isso está mais evidente de 2018 para cá.

O que tu projetas para o futuro da Makki?

Cássio Schonarth – É bem difícil a gente pensar nessa perspectiva, se é que é possível projetar alguma coisa, porque a gente já vive um período mega nebuloso. A gente vive numa expectativa de possibilidade de terra arrasada. É preocupante, mas, ao mesmo tempo, esperamos que, apesar de tudo, a arte e a cultura saiam fortalecidas, independente do cenário político. Que seja um cenário possível, melhor do que está estabelecido, para que possamos colher bons frutos daqui pra frente.

*Estudante de Jornalismo da Unisinos. Essa entrevista é uma parceria do Nonada com a Beta Redação, portal experimental do curso de Jornalismo da Unisinos, e foi realizada sob supervisão dos professores Débora Lapa Gadret e Felipe Boff.

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Editoria de cultura da Beta Redação - Agência de jornalismo experimental da Unisinos