Foto: reprodução/Youtube

Em Sobrevidas, Abdulrazak Gurnah investiga os impactos do colonialismo na África oriental

Sobrevidas é o livro mais recente do escritor Abdulrazak Gurnah, nascido em Zanzibar, na costa da Tanzânia. O autor foi laureado com o prêmio Nobel de Literatura em 2021, sendo o quinto escritor africano a ganhar a honraria. Os outros são os sul-africanos­ ­­Nadine Gordimer e J.M. Coetzee, o nigeriano Wole Soyinka e o egípcio Naguib Mahfuz. Sua indicação e vitória, segundo a academia sueca, se deu devido a sua obra ter uma “penetração firme e compassiva nos efeitos do colonialismo, e o destino dos refugiados no abismo entre culturas e continentes”. 

É exatamente o que Gurnah trabalha em Sobrevidas, continuando seu projeto literário, em que busca investigar as consequências do colonialismo no leste da África, uma região que foi disputada por diferentes países europeus – e devastada – por eles ao longo do tempo. 

O autor tem uma voz narrativa consolidada e trabalha muito bem com os personagens neste romance, justamente porque o foco é jogar luz sobre as consequências da violência e da opressão que o colonialismo lançou sobre os indivíduos e o lugar em que viviam. Então, estamos localizados mais no micro, nas narrativas dos personagens, que acabam refletindo todo esse conflito.   

E, por isso, o autor passa um bom tempo nos apresentando e esmiuçando os personagens principais, fazendo eles se encontrarem ao longo da trama, que se estende por décadas. O título, aliás, já sugere, no original “Afterlives”, depois da vida em tradução literal, representado a situação de reconstrução depois de traumas, caso aqui, a meu ver, principalmente contemplado pela história de Hamza e de Ilya. 

São trajetórias sobrepostas que se complementam, justamente porque a história oficial da guerra colonial imposta nesses países também é cheia de “buracos”, isto é, a falta de registros. Cabe também à ficção redirecionar esse imaginário. 

Mas quem são esses personagens principais? O livro começa apresentando um pouco da história de Khalifa, filho de uma africana e de um indiano, que conseguiu sair de casa cedo para estudar e perdeu os pais repentinamente. Ele acaba se casando com a filha do mercador para qual vai trabalhar. Outro personagem é Ilya, que conhece Khalifa ao também procurar a sua família. Ele foi sequestrado ainda muito jovem por um soldado da Schutztruppe, uma espécie de força de proteção alemã formada por diferentes tipos de pessoas, mas sobretudo de muitos nativos africanos, treinados pelos militares. 

Ainda há Afiya, a irmã perdida que Ilya encontra quando vai procurar por sua família. Mais tarde, o destino dela também passa por Khalifa e por Hamza, que volta ferido e traumatizado de uma das guerras – ele também fazia parte da Schutztruppe. 

O romance se concentra na vida das pessoas durante o período de conflitos entre as nações europeias pelo domínio dos países da África, sendo que o foco aqui é muito no período alemão de colonização. Gurnah consegue criar todo esse mosaico através da constituição de costumes locais e as falas nas diferentes línguas que povoam o continente. Ilya é um personagem importante, apesar do pouco tempo em que aparece, porque sua ausência permeia boa parte da obra. Ele acaba entrando por vontade própria na Schutztruppe, uma vez que sente uma admiração grande pelo povo alemão, já que foi criado por eles. 

Trata-se de um personagem que acaba sendo colonizado inclusive no pensamento, um dos efeitos mais nocivos dessa verdadeira violência, que não se restringe apenas ao corpo. E ele faz isso pouco tempo depois de reencontrar a irmã, que então passa a voltar a morar com uma família abusadora, por sua vez, também sofrendo violência física apenas por saber ler. Ela acaba conseguindo morar com Khalifa e sua esposa Bi Asha, amigos de Ilya, se tornando praticamente da família. 

Foto: Dennis deCaires

Paralelamente a isso, Hamza acaba entrando na Schutztruppe, muito mais por uma falta de perspectiva do que admiração, e acaba sofrendo consequências devastadoras que o traumatizam pela vida. Na volta, seu destino acaba cruzando com Khalifa e, consequentemente, com o de Afiya, com quem vai se relacionar. 

Interessante notar alguns pontos na história de Hamza, que ao meu ver, é o protagonista do livro – ou, por pelo menos, por boa parte dele. Ele é um personagem quieto, escuta muito mais do que fala, talvez por estar acostumado a receber ordens, quando criança foi vendido pelo seu pai para servir – como escravo – a um mercador. Ao entrar na tropa alemã, acha que vai ser forte e independente como os askari pareciam ser, mas há toda uma hierarquia alemã por trás. Ele acaba sendo subordinado a um dos oficiais que o submete a uma espécie de violência traumática, em formato de assédio mental e quase que sexual também. 

Há uma tensão que paira no ar, causando um estranhamento sufocante também para o leitor. Esses capítulos talvez sejam alguns dos melhores momentos do romance. Hamza é inteligente, aprende rápido o alemão que o oficial insiste em lhe ensinar, e tem sensibilidade o suficiente para se interessar por livros e por música, como é mostrado depois. 

Gurnah humaniza todos esses personagens, principalmente aqueles que conseguiram manter suas vidas mesmo com tanta desgraça acontecendo ao redor. Khalifa é um coadjuvante de respeito, em primeiro momento parece um ser rabugento, mas é aí que nasce a sua graça. No fundo dessa aparente personalidade resmungona, há um coração caloroso. 

Ele também representa algo que vejo com muito interesse em Sobrevidas: a estrutura da informação, aqui bem representada nas conversas entre as pessoas, os encontros com amigos, viajantes, mercadores, que estão sempre falando sobre as novidades, e colocando o papo em dia. O autor chega a utilizar o termo fofoca algumas vezes. Em uma época com pouca tecnologia e em uma região complicada e oprimida, a informação via boca a boca era crucial, e uma verdadeira fonte de conhecimento. 

Ilya é uma ausência muito sentida pela irmã, pois depois de ir à guerra pela tropa, é quase um duplo, porque o filho dela com Hamza acaba ganhando o mesmo nome. Há toda uma estrutura no ato final de se investigar a própria história da família e que consequentemente acaba refletindo todo o horror da colonização. Infelizmente, essa parte é um tanto quanto um pouco corrida, o que não chega a atrapalhar toda a conclusão da obra, mas se sente vontade de entender um pouco mais do trabalho de apuração que é realizado por um dos personagens. A discussão de recontar a própria história e os seus efeitos torna Sobrevidas uma leitura essencial para entender um período tão complexo e ainda desconhecido da história.

Obra é tema de episódio do Põe na Estante

Sobrevidas foi tema de novo episódio do podcast Põe na Estante, que analisa a literatura de países africanos nesta sexta temporada.   A jornalista Gabriela Mayer, mediadora da conversa, recebeu a doutoranda em literatura Katria Galassi, pesquisadora de literaturas africanas, e nosso editor Rafael Gloria. O podcast é uma produção da Rádio Guarda-chuva.

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Jornalista, Especialista em Jornalismo Digital pela Pucrs, Mestre em Comunicação na Ufrgs e Editor-Fundador do Nonada - Jornalismo Travessia. Acredita nas palavras.
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