Amanda Wolff*
Os ventos da literatura e das viagens de moto trazem inspiração para Estevan Benacchi falar de amor, dor, paixão, sofrimento e das demais contradições da vida em sua música. Da literatura estrangeira, despertam sua inspiração nomes como Oscar Wilde, Kafka, Dostoievski e Ítalo Calvino. Dos nacionais, Machado de Assis, Jorge Amado e a acidez de Eduardo Bueno.
Estevan encara a arte como um instrumento de transformação individual e coletiva. “Quando componho, sinto que coloco todos meus anseios e tormentos para fora”, destaca. Nesse momento, Pierre-Joseph Proudhon, Mikhail Aleksandrovitch Bakunin, Lev Tolstoi e Piotr Kropotkin se juntam ao turbilhão de ideias que se tornam canções no seu novo projeto.
O álbum irá contar com seis canções, sendo a sexta canção uma “bônus track”, e cada uma terá duas versões, uma acústica e uma plugada (ou seja, versão de estúdio). O nome do álbum, o primeiro de Estevan, é “O Silêncio Acabou”. As gravações ocorreram de março a setembro deste ano, nos estúdios da TH Audioworks, em Parobé, com produção musical de Tiago Henrich. O lançamento está previsto para dezembro.
O músico se confessa um roqueiro assumido, mesmo que esse não seja o estilo de suas músicas. Do irmão mais velho, veio a influência da Legião Urbana. Aos 13 anos, formou sua primeira banda, e as duas décadas seguintes de estrada o levaram ao atual projeto solo, com marcas do folk e do pós-punk. Por influência do pai, Estevan cresceu escutando Bob Dylan, Neil Young, Johnny Cash, Paul Simon e Garfunkel, The Smiths e The Cure. E a figura do Renato Russo – que encarna em covers de Legião, a convite, em eventos e bares – se faz presente no timbre e nas referências suavemente melancólicas das composições, misturadas com o amargo do café que sempre o acompanha nas composições. A carreira musical é dividida com o trabalho de assessor de imprensa, onde chegou também pelo prazer da leitura. Confira a entrevista:
Além da música, você sempre manteve outros trabalhos…
Eu já fui professor de história, já fui barbeiro, body piercing, encarregado de logística, já fui muitas coisas. Hoje eu trabalho com assessoria de imprensa na prefeitura de São Leopoldo. Comecei a fazer a faculdade de Jornalismo e de Fotografia por uma questão pessoal, para conhecimento. Eu tenho uma fixação por leitura e café. Eu tenho mais de mil livros na minha vida. Sempre acreditei que quem quer escrever precisa ler e quem quer cantar precisa escutar. Então, além música, que é o carro-chefe da minha vida porque eu não vivo sem ela – eu pelo menos tento pegar meu violão todo dia e brincar um pouco com ele, cantar, desestressar -, também trabalho com assessoria de imprensa, que eu acho que tem tudo a ver porque na assessoria, ainda mais política, quando a gente caminha pela cidade vê muita coisa, é bagagem, é material para que isso me inspire, para que eu consiga escrever novas coisas. Então, os dois trabalhos para mim estão muito ligados. As duas coisas são arte, uma de absorção e outra de colocar para fora aquilo que eu absorvo vendo o cotidiano das pessoas.
Que instrumentos você toca?
Eu toco violão, guitarra, baixo, bateria, cajón, teclado, violino, triângulo, e canto. Toco viola, viola caipira, banjo, mandolin e bandolim. Me considero autodidata, toco tudo aprendendo como funciona. Principalmente instrumentos de corda eu consigo dominar bem, porque estou desde os seis anos tocando, e toda vez que eu quero expressar alguma coisa eu escolho um instrumento diferente. Acho que fala diferente, me transporta para um mundo diferente, tem um recado diferente, então eu sempre uso desse subterfúgio para gravar as coisas, e procuro também não instrumentos, mas sons. Som da chuva, de passos, de risadas, isso para mim também faz parte da musicalidade e eu tento colocar sempre nas minhas músicas.
Quem ensinou você a tocar?
Aprendi a tocar sozinho, autodidata. Tive uma aula de violão só. Sei muita teoria musical, porém eu sempre vou mais pelo sentimento, para onde tá me levando. Não tento usar uma métrica, uma escala, vou no feeling do que estou vendo e a música vem vindo. Para mim a música está pairando no ar, no silêncio, e a função do músico é captar esse silêncio e transformar em som. A música já está ali, a gente só transporta ela para o mundo real. Então, eu tento ter essa pegada assim não tão padronizada, mais sensitiva.
Que sentimentos tem quando toca as músicas da Legião?
Quando eu toco Legião Urbana, eu toco o mais íntimo que existe em mim, que alguém pode me trazer. O Renato Russo tinha um poder inigualável como letrista e como cantor para multidões, ele tinha o dom de tocar as pessoas como se estivesse falando diretamente com cada um. Muitas músicas da Legião Urbana tocam num íntimo meu muito profundo que só eu sei. Então, quando eu canto essas músicas, tenho uma peculiaridade de sempre cantar com os olhos fechados, porque mergulho em mim nesse universo e me transporto para outro lugar.
Quando estou tocando Legião Urbana, pode ser uma música romântica, uma música calma, que é bem característico deles, mas estou gritando para o mundo aquilo que estou falando, as palavras que estão saindo. Estou dizendo como cita “Sereníssima”: “Sou um animal sentimental, me apego facilmente ao que desperta o meu desejo”. Sabe, estou dando um spoiler meu, dizendo que aquilo que despertar o meu desejo vai chamar a minha atenção, porque sou um animal sentimental. A razão, às vezes, passa longe, o sentimento me domina. Então, assim, cada palavra, cada acorde, quando eu toco Legião Urbana, tem um sentido gigantesco para mim.
Ali, às vezes, eu estou cantando coisas da minha infância, coisas da minha adolescência, minhas angústias de agora, felicitando minhas vitórias de toda a minha vida, coisas que tenho uma prospecção para o futuro. Então as canções da banda abraçam a minha vida no passado, presente e futuro, formam um laço bonito quando estou entregando para as pessoas.
E qual a diferença de sentimentos quando toca a sua música, composições próprias?
A diferença é que Legião Urbana é uma coisa que veio externa, me exemplificando e me abrindo os olhos e a mente para algo. Já as minhas músicas são algo que nasceu de dentro do silêncio e do vazio que existe em mim. Então, quando externalizo isso, não tenho como mostrar mais a minha verdade do que aquilo.
Quando estou cantando as minhas músicas, as pessoas que estão ali podem ver através da minha alma se tiverem sensibilidade para isso. Estou cantando aquilo que de mais íntimo, mais puro, mais inquieto, mais vergonhoso existe dentro de mim e estou colocando isso pra fora nas minhas músicas. É como se eu, em vez de receber esse presente com o laço bonito da Legião Urbana, é como se eu explodisse esse presente pra fora e tentasse tomar conta de todos os espaços, de todas as pessoas. Dizendo o que eu penso. Quem concorda? Quem vem comigo? Quem se conecta com isso? Quem discorda? Por que discorda? Eu quero gerar conexão e debate com a minha música.
Quais bandas ou músicos tem como inspiração?
Minha maior inspiração é o Renato Russo (como é perceptível), Oswaldo Montenegro, Cazuza, Raul Seixas, Cartola, . falando dos nacionais. Dos internacionais, com certezaBob Dylan, Morrissey, Cedric Smiths, The Cure, Jesus and Mary Chain, Paul Simon, Garfunkel, Elvis, Johnny Cash, Neil Young, toda essa galera mais subversiva. Eles sempre me encantaram muito, assim, essa coisa de viva um dólar por dia. Como Kurt Cobain, morra jovem, porém, permaneça eterno e belo.
São essas coisas limítrofes, o risco, o perigo do rockstar, que é contraditório, que é um anti-herói, essa é minha grande inspiração. Eu vou falar de amor nas minhas músicas, mas eu não vou falar de amor manso, calmo, chorando, vou gritar aquilo, colocar para fora, e vai ser na porrada. Não levo desaforo pra casa, né?
O que eu tenho que falar, eu falo, defendo a minha razão, defendo as minhas bandeiras, não interessa se eu tô no meio de uma multidão que é contrária a mim. Então, esses caras me ensinaram isso desde pequeno, a não temer, a defender, e principalmente a fazer a minha vida valer a pena. Um grande cara que me ensinou isso, que é do underground brasileiro, é o Nenê Altro da banda Dance of Days.
Como é para você o processo de criação de uma música nova?
A música, pra mim, ela nasce, eu não sento e vou escrever. Algo me incomoda a tal ponto que quase crio uma crise de ansiedade. Até que eu me ligue, isso pode durar dias, semanas, e vou prestar atenção no outro dia. E, de repente, vejo que é uma música que está querendo surgir.
Aí sim eu sento e começo escrever o que estou sentindo, e normalmente as minhas músicas vêm de uma vez só, claro que depois faço pequenas correções para o tempo verbal, encaixar na métrica e na melodia. Mas elas simplesmente nascem porque ficam me atormentando nesse silêncio, parece uma “nuvenzinha” em cima da minha cabeça.
Ficam ali me atormentando até que boto elas pra fora, são sempre inspiradas em algo que vivi, que vi, que senti, coisas externas que reverberam dentro de mim, vão me incomodando até o ponto que preciso fazê-las virar algo material, sonoro. O processo de criação é esse, através do caos, através do incômodo, e depois passa como um alívio quando tá no papel e tá musicado já.
Dos três singles no Spotify (“Campos Elísios”, “Tanto pra Falar”, “Aos Rejeitados”), qual é o mais importante para você?
Os três singles que eu tenho no Spotify – tenho mais outros que vão ser lançados ainda durante o ano, enfim, vai sair o álbum – meus filhos, mas o mais importante para mim é “Campos Elísios”. Eu tinha recém relido pela quarta vez a trilogia da “Divina Comédia” do Dante Alighieri e eu tava com o livro “Inferno” na cabeça, que é o primeiro livro da trilogia. Eu tava numa noite de insônia e comecei a pensar, eu fico com esses pensamentos, planejando coisas para o futuro antes de dormir, e aí durmo e no outro dia de manhã eu acordo pensando “Nossa, isso tudo foi besteira, tenho que trabalhar”, sabe, então entro em um cilada e você simplesmente acorda e não quer mais nada com a sensação que sua vida foi roubada.
Os pensamentos de antes de dormir estão em uma cilada, e ela vem dizendo muito assim sobre quem eu sou, como eu vejo a vida, como eu lido com as coisas, o refrão fala “essa vida planejada já não importa mais, eu quero alguém que seja muito mais do que oi, tudo bem, tanto faz”. A gente passa a vida procurando amigos, relacionamentos afetivos, relacionamentos interpessoais, que não seja só “oi”, “tudo bem”, “tanto faz”, todo mundo é carente dentro de um poço de solidão, claro, dentro da sua magnitude, da importância que cada pessoa dá para isso, mas nós queremos sim pessoas perto da gente, que nos deem ouvidos, que deem bola para gente, que conversem, que nos abracem, que se importem com a gente, e a gente às vezes não tá disposto de ser essa pessoa para o outro, e é isso que a música fala.
Lembro do tempo e do sonho que ficou preso no dia, que não voltou a ser tão fugaz, ou seja, será que eu tô interessado em ser maravilhoso para alguém? Ou eu só tô querendo que alguém seja maravilhoso para mim? Então essa música diz muito sobre como eu vejo a vida, e eu acho que por isso é a música mais importante para mim, é a que toca mais fundo em mim, é a que mostra a minha maior verdade.
O que quer passar através das suas letras?
Eu quero passar através das minhas letras, das minhas músicas, que somos uma unidade que faz parte de um coletivo e que por mais problemas sociais, políticos, religiosos que nós tenhamos, a gente consegue dar jeito. Sempre há um lugar pra gente recomeçar e ser feliz, tudo tem um jeito. Desistir não pode ser uma opção. Podemos até pensar em desistir milhões e milhões de vezes por dia, mas isso não pode ser uma opção viável, temos que continuar. A dor também faz parte da vida. Só que temos que colocar a felicidade dentro da nossa vida também, mesmo que as músicas às vezes não pareçam felizes. Eu tento transmitir para as pessoas que a gente pode sempre continuar mais um dia.
Como foi para você gravar o álbum?
Não existem pontos finais pra nós. Apenas vírgulas.Temos que continuar e temos que buscar. Se não está bem hoje, amanhã vai ficar melhor. Temos força, e é inteligente. Às vezes não damos conta sozinhos, procuramos as pessoas, nós precisamos de amigos, de pessoas boas perto da gente e que a gente seja assim também. É isso que eu quero dizer com a minha música, dizer que tá tudo errado, mas que pode ficar tudo bem e tem que ficar tudo bem. E gravar um álbum pra mim foi a cereja do bolo.Muito fácil hoje, para o artista independente, gravar single por single. E gravar um álbum, nossa, foi um reconhecimento gigante do meu trabalho, pude falar como um todo, entre capítulos, o que é cada single, passar uma mensagem maior.
Enfim, eu nunca pensei que eu pudesse gravar um álbum como eu gravei. Achei que talvez tivesse que um dia pagar para gravar um álbum, e não foi isso que aconteceu, apostam no meu trabalho. Tenho bastante assessoria pra isso e gravar o álbum foi uma coisa gratificante demais, um marco de vitória pra mim. Tenho certeza que esse álbum vai ser lançado e não sei se vai fazer sucesso, não é isso que me interessa, mas que muitas pessoas vão se conectar com ele, isso eu tenho certeza.
E essa sensação é a sensação mais gostosa que a gente pode sentir. Até hoje eu não senti nada tão saudável, tão bom e tão feliz na minha vida, de gravar esse álbum e saber que ele vai pra rua e foi feito com muito carinho, com muita dedicação e está com uma qualidade enorme. Então, ter isso gravado já é um sucesso na música. Aquele molequinho de seis anos quando pegou violão pela primeira vez, quando eu gravei o álbum, aquele molequinho festejou e disse assim: “Eu consegui!”
*Estudante de Jornalismo da Unisinos. Essa entrevista é uma parceria do Nonada com a Beta Redação, portal experimental do curso de Jornalismo da Unisinos, e foi realizada sob supervisão dos professores Débora Lapa Gadret e Felipe Boff.
