Foto: Prefeitura Municipal de Nova Santa Rita/divulgação

Maestro Sepé Teixeira defende música como política pública

Laura Blos*

Para o músico Sepé Tiaraju Teixeira, a música interage com a segurança pública, com a saúde pública, com a gestão pública, com a educação e com outras áreas da sociedade. Sepé é um dos grandes nomes em regência e música no estado do Rio Grande do Sul. Sempre presente nos eventos de bandas e na organização de cursos e workshops da área musical no Estado, tem grande experiência no setor de bandas, tendo estudado nos Estados Unidos, lar das “Big Bands”, famosas por filmes como “Drumline“.

O maestro, que é formado em Ciências Humanas e Sociais pela UFRGS, vê na música um meio de construir uma sociedade com maior bem-estar, segurança, saúde e educação. O músico é servidor público de Porto Alegre e atua como contramestre de música da Banda Municipal da capital. É diretor técnico do departamento de bandas e fanfarras da Ordem Brasileira dos Músicos no Rio Grande do Sul (OBM-RS) e um dos idealizadores da Associação Gaúcha de Bandas e Fanfarras (AGB), nos seus primórdios, em 1997.

Em entrevista concedida no dia 10 de outubro, na Escola de Música Acordes, em Sapiranga, onde dá aulas de trompete, o professor contou suas histórias na música, falou da importância desta na vida do ser humano e da necessidade de, para além das bandas, pensar o desenvolvimento de uma cultura musical no país, como um todo.

Em que sentido, de que maneira, as bandas se diferenciam das outras formas de fazer música?

Vou fazer uma comparação. Uma orquestra sinfônica tem uma estrutura orgânica, física, muito mais complexa, ela tem uma seção de cordas muito grande. A banda sinfônica até tem uma seção de cordas, mas muito mais reduzida e, em compensação, a seção de sopros é muito maior do que a de uma orquestra sinfônica. Então, essa complexidade muitas vezes torna inviável que uma orquestra sinfônica tenha a abrangência e possa ter a penetração que uma banda tem. 

Em geral, principalmente aqui na América Latina, e na Europa também, as orquestras sinfônicas desenvolvem repertórios do clássico erudito. A banda também pode tocar uma peça de erudito, mas no mesmo espetáculo ela pode tocar jazz, MPB, rock, pop, enfim, é uma infinidade de repertório, e tu consegue mais naturalmente, porque as bandas já têm isso aí no DNA. Durante muito tempo, elas tiveram que fazer as vezes de uma orquestra e em muitos lugares. Porto Alegre até 1957 não tinha uma orquestra sinfônica, ela só foi nascer em meados de 1957, a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre. 

Em compensação, a Banda Municipal de Porto Alegre já existia desde 1925. Então a banda tem uma abrangência de público muito maior, tem essa capacidade, inclusive, essa atribuição de poder desenvolver vários tipos de repertório, e tu pode modificar esse repertório segundo o teu público, com mais flexibilidade, já na orquestra sinfônica é mais difícil tu conseguir fazer isso. 

Então dá pra dizer que as bandas são um meio mais acessível de fazer e consumir música, um meio mais voltado para o popular e a diversidade?

Sim, dá para dizer que as bandas são um meio, digamos assim, mais direto de consumo de música, mas não só voltado para o popular e não só voltado para a diversidade do popular. Até porque tem muitos concertos que a gente considera um concerto temático, uma audição temática. Então, sim, ela é um acesso, entre aspas, mais fácil para o consumo de música, mas não só voltado ao popular, porque ela entra também no erudito, como falei.

Você teve um período nos Estados Unidos, nas Big Bands (termo norte-americano que se refere a um grupo com grande número de músicos, inicialmente com foco no Jazz), certo?

É, mas não foi só big band. Uma das vezes que eu fui pra lá, eu fui no Midwest Clinic, que é na verdade um grande seminário, só que ele é mais que um seminário, ele tem feira, ele tem exposição. O Midwest é a conclusão do curso que é dado pela WAMSB [The World Associaton of Marching Show Bands], que é a Associação Mundial de Marching Show Bands. Quando tem o Midwest nos Estados Unidos, eles reúnem tudo. O Midwest é uma loucura, eles têm tudo, tudo que tu possa imaginar pra banda, tem lá naquela feira. Uniforme, calçado, instrumento, isso é o básico, métodos, livros, tudo que tu possa imaginar de banda, para qualquer tipo de banda. Então, uma das coisas que eu fui fazer lá, foi fazer esse curso.  E um dos caras com quem eu tive a oportunidade de estudar lá foi com o Wynton Marsalis, aquele trompetista norte-americano. O Wynton trabalhou com as Big Bands, como é que é a formação e tudo, ele contou a história. 

Aqui no Brasil, tem algo parecido?

Não, não. Nós não temos. Assim, a primeira coisa que a gente tem que entender é que nós não temos cultura de banda. Esse é o problema, a gente pensa que tem, mas a gente não tem. Porque lá, por exemplo, tu estuda banda, estuda banda desde que tu entra na pré-escola, na tua pré-escola já vai ter noção de musicalização e de uma série de coisas que tu só vai encontrar aqui, raramente, no ensino privado. Depois, tu vai pra uma escola de ensino fundamental, tem uma bandinha, qualquer coleginho tem uma banda. O coleginho lá da cidade tal tem 70 alunos, 50 tocam na banda, é assim a coisa. Tu vai entrar em uma universidade, por exemplo, tu pode financiar e pode pagar com a tua atividade. Aqui no Brasil chega muito aquela coisa “Ah, o cara é jogador de beisebol, jogador de futebol americano”, não, mas tem várias atividades, para músico é a mesma coisa.

Sepé acredita que o ensino de música nas escolas deve vir de um grande projeto nacional para a fomentação da cultura musical no país (Foto: Sergio Pacheco/divulgação)

E por que tu acha que a cultura de bandas não cresce aqui?

Primeiro, porque tu não estuda. Não vem de dentro da escola. Segundo, é porque em casa tu não tem incentivo, porque teu pai e tua mãe também não estudaram. Então eles não conhecem. Aquilo que uma pessoa não conhece ela vai estranhar, entende? E a música interage com todas as outras ciências. 

Eu só fui entender isso lá fora, eu pensei que eu entendia, quando eu voltei de lá, “caiu os butiá do bolso”. A primeira vez que eu fui, eu pensei assim: “A gente tá uns 20 anos atrás”. Quando eu voltei, eu disse “Bah, vou ser bonzinho, estamos uns 60 anos atrás”. Em termos culturais, não é que a gente não tenha bons músicos, nós temos. Nós temos material humano em maior quantidade, porém em muito menor qualificação. Por quê? Porque, justamente, a gente não tem aquela cultura, ela não é estudada enquanto ciência. Porque a música é arte, mas ao mesmo tempo ela é ciência, e uma ciência muito exata. 

Por exemplo, tu pode estudar matemática através de música. Tu tem que estudar história, para entender como era o momento social que vivia, por exemplo, Tom Jobim, ou Johann Sebastian Bach. Tem que estudar e entender o que aquele cara tá fazendo, porque que ele fez a música dele daquele jeito, o que levou ele a fazer daquela forma, tem que entender qual era o mundo em que aquele cara tava vivendo pra ver a produção. Quanta coisa a gente precisa estudar. Tu enquanto instrumentista precisa ter uma noção muito boa de física e de química para entender as variações e até as limitações do teu instrumento musical. Por exemplo, o som do metal, como ele é composto, que ele é feito de uma liga metálica, tu tem que saber, tem que conhecer minimamente para poder desenvolver o instrumento. Tu não vai ser nenhum expert em física ou química, não é necessário isso tudo, mas tu tem que ter uma noção muito boa disso. Por quê? Porque tu vai precisar disso pra lidar tecnicamente com o teu instrumento. 

Então a gente tá falando de ciências, que estão interligadas umas às outras, estão ali juntas e são necessárias umas às outras para que elas possam se complementar. E a música faz esse link, ela é a corda que amarra todo mundo. A música transita em todas essas. Tem que ter um entendimento um pouco de cada coisa pra poder entender muitas vezes o que é que tá acontecendo dentro da música, e na banda não é diferente.

É uma problemática muito séria que nós temos no Brasil, porque se tu atravessar a fronteira e ir para o Uruguai, é outro planeta. Ali tu entra na Europa das bandas, inclusive em termos tecnológicos, e ninguém dá nada. É uma coisa nossa aqui, que não é uma culpa externa.

Tu vê futuro, acha que o Brasil consegue desenvolver essa cultura de bandas?

Consegue. A primeira coisa que a gente tem que ter é um programa homogêneo, assim como tu ensina língua portuguesa, história, geografia, matemática em sala de aula. Ensinar música, com a mesma seriedade e com o mesmo grau de importância. Os gregos situavam a música no mesmo grau, eles diziam que a formação do ser humano vinha do corpo e da mente. Sócrates já dizia que a música é o complemento da alma humana. A gente precisa de música, porque ela é o alimento da alma. Beethoven dizia isso, tu precisa daquilo ali, inclusive, porque a música estimula a serotonina e outros hormônios de satisfação, equilíbrio, calma, tu vai te sentir bem.

Em algum momento nós perdemos essas coisas e perdemos a noção da importância disso. Para que no Brasil  tenha a verdadeira cultura musical, é necessário ter um programa nacional muito forte. Uma coisa muito grande, muito abrangente, e que venha tratar com muita seriedade. Se não, a gente vai continuar patinando ainda em algumas áreas, principalmente na área cultural, sem saber o que fazer. 

Se tu for ver hoje a música, tecnicamente, a música brasileira em geral, não tô me reportando a um tipo só, em geral decaiu muito a qualidade. Por quê? Nós estamos produzindo muita música, em grande quantidade, para o consumo, simplesmente pra isso. Isso não é uma coisa que tá acontecendo de hoje, já vem desde antes da década de 1970. Vem com essa cultura da melodia chiclete, que compõe alguma coisa e tu não tira aquilo ali, então tu tem algumas combinações harmônicas, melódicas e rítmicas que tu faz esse tipo de coisa e deu, pega. Só que a gente tá levando ao extremo, estamos levando a nossa qualidade cair, como diria o gaúcho, “lá nos pés da égua”.

Entre tantos projetos, tu idealizou e montou a Banda e Biblioteca de Música de Nova Santa Rita. Como foi esse projeto?

Eu sou servidor público de Porto Alegre, sou contramestre de música da Banda Municipal de Porto Alegre. Eles queriam fazer um projeto lá em Nova Santa Rita, e eu fui convidado na verdade para dar uma consultoria para eles, pra ir lá explicar como é que faz. Chegou na segunda reunião, a prefeita que estava na época, Margarete Ferretti, disse: “Tu não quer vir de mala e cuia pra cá?”. Eu fiquei assim na época, [disse para ela] “Olha, eu tenho uma condição. Eu quero montar uma biblioteca de música”. Porque dizem que a gente tem que ter um filho, escrever um livro e plantar uma árvore. Bom, filho eu já tenho, plantar uma árvore, eu já plantei umas quantas, e livro eu não tenho capacidade pra escrever.

A banda, na verdade, era a banda principal, a escola de música (o laboratório, como a gente chamava, que era aberto a todos os alunos da rede do município) e a biblioteca municipal de música. E não era simplesmente uma escola de música, ela trabalhava em todos os níveis do conhecimento, desde o fundamental, iniciante, até aqueles que já estavam se graduando, justamente para dar esse suporte, porque muitas vezes tu vai te graduar em universidade e tu não tem onde desenvolver as técnicas. Foi um projeto muito bom. Ali eu trabalhei cinco anos e meio, um pouco mais. Depois eu voltei para Porto Alegre, porque na verdade eu estava emprestado e essa cedência tem um tempo limite. Eu até já tinha estourado esse tempo limite, já tinha ultrapassado ele, e aí eu tive que ser devolvido para Porto Alegre e segue o baile. Mas foi um projeto muito querido, muito bom.

E o projeto segue?

Infelizmente, pelo o que eu sei hoje, não. A pandemia está com costas largas, ela tá levando culpa de um monte de coisa que são problemas de gestão, problemas de gestores que não querem se mexer da cadeira pra sair dali e trabalhar, porque isso dá trabalho. Eu não vou  dizer que não dá, isso dá muito trabalho, muito trabalho.

Como você vê, principalmente aqui no Rio Grande do Sul, o cenário das bandas com a pandemia?

Primeira coisa, a pandemia não teve o efeito que se diz, ela foi muito pior. Ela foi  devastadora, teve banda que fechou para nunca mais. Infelizmente. A grata notícia é que teve uma e outra aí que surgiu das cinzas, porque o pessoal começou a ficar entocado dentro de casa e começou a participar pela internet e se encontrou, e muita gente se reencontrou. 

Agora, quanto às entidades que se dizem representar as bandas no Rio Grande do Sul, olha, eu não consigo ver essa aglutinação para representar, porque o que mais preocupa, em geral, essas entidades são as competições, campeonatos, concursos, competições em geral que são promovidos. E isso tem que ser uma parte. Por exemplo, a AGB, ela já veio pra ser uma proposta diferente, as primeiras atividades que ela fez, na verdade, foi no sentido de formação. O primeiro foi um grande workshop que a gente fez na escola Santa Catarina, em Cachoeirinha. E de lá pra cá as coisas foram diminuindo, virou só em competição. Eu vou lá pra ver tua banda, tu vai lá pra ver a minha, cada um ganha um trofeuzinho e deu. Então isso, particularmente, eu não vejo como sendo representar o segmento, o setor. Acho que pra ti dizer que tu representa o setor tem que fazer muito mais do que isso. Tem que realmente representar esse setor em todas as atividades, em todos os meios, e não só em uma hora. 

E tu vislumbra um futuro para as bandas no Estado, ou tu acha que não  vai melhorar muito do que está?

Tudo depende do setor. Então depende de nós hoje que estamos na frente das bandas. Nós estamos ainda com uma visão muito provinciana da coisa, tu tem a tua entidade eu tenho a minha e cada um quer saber só do seu probleminha, fazer o seu campeonato e acabou, seu concursinho e já era.

Acha que o poder público tem como mudar isso de alguma forma?

Teria, mas daí tu tem que ter inseridos profissionais que tenham o mínimo de conhecimento e zero interesse, que já tenham feito o que tivessem que fazer, porque o que a gente vê hoje em dia são muitos interesses pessoais que são colocados à frente de um bem coletivo. Tu não vê um entendimento entre eles, e nem dentro das próprias entidades, tu vê muita gente “desertando” dentro da própria entidade, briguinhas internas que não levam a nada. Nós não profissionalizamos a atividade, nós temos que ter uma visão profissional, e a gente não tem isso, e muita gente se escora em “é um trabalho social”. É, ok, mas não vem com essa retórica de novo, tu tem que profissionalizar, tem que vender a coisa. Por exemplo, se tu quer apaziguar um bairro nos Estados Unidos, os caras vão lá, montam uma associação e montam uma banda, e a coisa ameniza, tem programas da própria polícia de Nova Iorque que faz isso em bairros lá, não sou eu que estou dizendo, os caras fazem isso.

A música, então, não deixa de ser uma política pública de segurança e saúde?

Sim, sim. Ela também interage junto com essas atividades. A música interage também com a segurança pública, com a saúde pública, com a gestão pública, com a educação, com a formação intelectual, com a formação cognitiva e com a formação do caráter do ser humano, para dizer pouco. 

*Estudante de Jornalismo da Unisinos. Essa entrevista é uma parceria do Nonada com a Beta Redação, portal experimental do curso de Jornalismo da Unisinos, e foi realizada sob supervisão dos professores Débora Lapa Gadret e Felipe Boff.

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