Marcos Kaingang: “Nunca existiu um Estado Democrático de Direito para nós”

*Atualização em 25/05/2023: Marcos Kaingang é atualmente Diretor de Mediação de Conflitos do Ministério dos Povos Indígenas.

Marília Port*

Natural do município de Nonoai, na região norte do Rio Grande do Sul, Marcos Kaingang é bacharel em Direito. Como tantos outros indígenas, para quem recuar não é uma alternativa, tem sua jornada marcada por otimismo e resiliência. Formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Marcos pertence a uma geração que desbravou o mundo ocidentalizado para lutar por garantias fundamentais, historicamente negadas aos povos originários e a outros grupos marginalizados na sociedade brasileira. 

Marcos é colaborador da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e do Conselho de Missão entre Povos Indígenas (FLD/COMIN). Em entrevista por videoconferência, Marcos aborda questões contemporâneas, permeadas por cultura, política, direitos indígenas e mudanças climáticas, sob a ótica de uma história ancestral.

“O que buscamos é fortalecer uma luta existencial, pela manutenção de vida própria que, antes de tudo, é a raiz e a base da nossa formação social. Não adianta uma comunidade ter direitos e territórios já demarcados, enquanto outra do lado está na beira da estrada. Defender as formas de vida dos povos indígenas é defender também um pouco da nossa história e do nosso pertencimento social”, defende.

Marcos também comentou sobre a importância da educação indígena e os obstáculos que os estudantes ainda enfrentam. “Quando saí para estudar fora, fui mal recebido pelos colegas não-indígenas. Questionavam a nossa identidade, faziam piadas de que a gente era canibal, o porquê de não andarmos pelados… uma série de questões que nos desconforta e nos inquieta. Esse é um dos fatores que fazem a gente iniciar as séries ou o ano letivo fora da comunidade e logo depois já retornar e nunca mais voltar.”

Confira a entrevista:

Tivemos duas deputadas federais indígenas eleitas este ano. Qual o papel das políticas públicas, dentro desse formato de governo gerido pelos brancos, na garantia dos direitos indígenas e na manutenção do conhecimento ancestral?

Marcos Kaingang – Participei de toda a campanha da Sônia [Guajajara]. Tirei 30 dias de férias e fui ajudar ela lá em São Paulo. Ficamos muito felizes com o resultado. A APIB, que é composta por várias organizações de base, fez uma mobilização muito intensa para lançar a Bancada do Cocar, que era ter candidaturas indígenas se colocando no pleito eleitoral. Os indígenas não viram opção senão se colocarem à disposição no pleito eleitoral e apresentarem alternativas possíveis. As candidaturas [indígenas] foram recordes. Tivemos a eleição da Sônia Guajajara (SP) e da Célia Xakriabá (MG). Já tínhamos no Congresso a Joênia Wapichana (RO), ela infelizmente não foi reeleita.

A gente diz que dobrou a bancada. Antes, tínhamos a Joênia, agora temos a Sônia e a Célia. Isso é muito importante para a representatividade. Começamos a ter participação política de diferentes grupos que sempre estiveram excluídos, à margem da sociedade. Todas as políticas públicas para indígenas, até então, sempre foram pensadas por não-indígenas.

Então, acho importante termos agora duas indígenas, e que são mulheres. Na perspectiva de gênero é importante fazer esse recorte. São duas mulheres que são referência no movimento social indígena. E isso é importante para a sociedade brasileira como um todo, que vai ter duas parlamentares indígenas extremamente qualificadas, lutando por pautas que beneficiam a todos, não só aos povos indígenas, agora com maior repercussão neste espaço.

Qual o papel da educação na sua vida, como um todo? Por que escolheu o Direito?

Marcos Kaingang – Estudei da primeira à quinta série dentro da comunidade indígena. Na época, tinha que sair da comunidade para concluir as demais séries, depois o ensino médio, até chegar ao ensino superior. A minha trajetória é marcada por várias dificuldades, como de outros colegas indígenas. O papel da educação é essencial nesse processo, porque no meu povo [Kaingang], culturalmente temos princípios, valores, modelo e prática educacional voltados ao nosso próprio modo de vida. Muitos ensinamentos são transmitidos através da oralidade, do fazer no dia a dia, da transmissão da língua, das formas de viver e existir no mundo enquanto Kaingang e enquanto indígena. Tudo é passado de geração para geração. 

Temos no Brasil 305 formas distintas de ensino e aprendizagem entre os povos indígenas. Passamos a acessar a educação como uma ferramenta para acessar mais conhecimentos e potencializar a luta das nossas comunidades. Passamos a adotar e adaptar o modelo de ensino e aprendizagem ocidentalizado. Nossas lideranças mais antigas idealizaram o processo de nos inserirmos e nos formarmos profissionais nas mais variadas áreas e campos do conhecimento. Lá, é muito comum que a gente conclua até a oitava série no máximo, e dentro da comunidade, porque se sente mais à vontade, mais seguro e acolhido. 

Quando saí para estudar fora, fui mal recebido pelos colegas não-indígenas. Questionavam a nossa identidade, faziam piadas de que a gente era canibal, o porque de não andarmos pelados… uma série de questões que nos desconforta e nos inquieta. Esse é um dos fatores que fazem a gente iniciar as séries ou o ano letivo fora da comunidade e logo depois já retornar e nunca mais voltar.

Nos é ensinado desde criança que vamos enfrentar discriminação, violência, repressão, invisibilidade, questionamentos da nossa identidade, mas que é necessário porque, antes de tudo, tem uma comunidade e um povo que precisa de vocês e vocês agora têm essa responsabilidade e esse compromisso. Carregamos isso muito forte conosco.

A Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) tem um processo seletivo em que são dez vagas por ano. Mesmo sendo pouco, digo que foi uma conquista do movimento social indígena que pleiteou e demandou essas vagas. Não foi uma oferta ou iniciativa das universidades públicas. São, por exemplo, uma para Medicina, uma para Odontologia, uma para Enfermagem etc. E eu passei em uma dessas vagas para Direito na UFRGS e cursei. Mas a minha escolha do Direito tem a ver também com a negligência e falta de acesso a direitos fundamentais. Nasci debaixo de lona, em retomada, passando as necessidades mais básicas que se imagina no mundo. O que nasci presenciando foi um processo de luta.

A nossa comunidade não entendia o que era uma reintegração de posse, por exemplo. Não entendíamos o português direito. Nós sempre estivemos naquele território ancestral, então chega um papel e um aparato militar lá de 500 policiais e usam da violência e da repressão e nos tiram de lá. Decidi que iria fazer Direito e ajudar as comunidades indígenas, assim como outros colegas do campo da saúde, do campo da educação, que passam a ter mais afinidade para pensar essas outras áreas a partir das realidades que eles experienciam. 

Na saúde indígena, ninguém quer atender, ninguém sabe como dar um atendimento mínimo, muitas vezes. Tendo acesso à informação, ao conhecimento, a outros elementos que as nossas comunidades e lideranças não têm, já está um passo à frente para dar esse retorno. Não esperei me formar, sempre estive ao lado do movimento e das nossas lideranças apoiando paralelamente esse processo. Costumo dizer que a minha formação no campo do Direito é um dever ético e moral de dar esse retorno coletivo, porque a conquista foi coletiva. A gente vira tudo, a gente trabalha em todos os campos para tentar auxiliar, porque são muitas as demandas.

Alguns pesquisadores que estudam as mudanças climáticas citam a “ausência de um mundo comum” como a mentalidade ocidental que separa o homem da natureza e também separa os próprios homens entre si, como se não houvesse espaço para todo mundo. Então, como o seu povo pensa esse mundo comum e compartilhado?

Marcos Kaingang – Falo com mais propriedade do meu povo, mas é algo muito similar e compartilhado entre outras etnias no Brasil e na América Latina. É ensinado que não há essa dissociação entre seres humanos e natureza. Praticamos isso, o que se reflete nos nossos territórios hoje – os maiores índices de preservação de fauna e flora no país estão em territórios indígenas. Na nossa cosmologia, todos somos partes de um contexto em que somos mutuamente dependentes. Tenho o nome Marcos porque o mundo ocidentalizado me exige uma documentação e os cartórios não autorizavam registros civis com nomes que não fossem ocidentalizados. 

Em Kaingang, nossos nomes são de plantas e animais, para nós não nos diferenciarmos dos demais. Todos têm uma conexão. Temos essa perspectiva de parentesco porque nós, ditos seres humanos, tratamos diferente alguém quando não tem um vínculo mais próximo. Temos mais empatia, respeito e sensibilidade, muitas vezes, por causa disso. Quando trabalhamos nessa perspectiva, temos essa relação distinta com o meio ambiente também. Isso tem a ver com a própria questão de saúde mental e espiritual do que propriamente física, porque dependemos daquele espaço. 

A Constituição da Bolívia, por exemplo, trata os rios, os lagos e as matas como sujeitos de direito. Aqui no Brasil, só conseguimos ampliar esse direito aos animais, e só a alguns animais ainda. Para nós e outros povos indígenas, essas relações mantêm a conexão entre nós e os nossos modos de vida. Sem nossas práticas culturais, adoecemos também como povo. Acho que a pauta ambiental ganhou muito destaque nos últimos anos. Nós, povos indígenas, temos ganhado espaço nesse debate, a nível nacional e internacional.

No país, temos um debate invertido. Historicamente, questionam nosso modo de vida no sentido de “os indígenas só querem terra e área para deixar criar mato, não querem trabalhar” etc. Para nós, é ótimo quando uma área cria mato, porque é dali que conseguimos retirar os derivados para a manutenção da nossa cultura, medicina, cantos, danças, produção de material, artesanato e mais uma série de fatores. É outra lógica. No mundo externo, lá fora, hoje veem que os povos indígenas são um modelo de vida necessário para a existência das futuras gerações. Estamos na pauta global sobre as mudanças climáticas, ponto em que acredito que os povos indígenas têm se destacado, mas que no Brasil sempre foi silenciado e invisibilizado, como se fôssemos um atraso ao desenvolvimento econômico pelo nosso modo de vida, de relação íntima, proteção e preservação ao meio ambiente.

Falamos bastante em “lugar de fala” – esse direito de expressar a própria vivência e, mais do que isso, reivindicar seu espaço. Mas, quando não há uma presença indígena, como os não-indígenas podem se tornar aliados que ecoam a voz da ancestralidade?

Marcos Kaingang – Alguns entendem que tem que ser um indígena para falar sobre pautas indígenas. Tem questões em que são essenciais a nossa presença e a ocupação do espaço. Mas para falar sobre direitos indígenas, pauta climática, defesa da igualdade racial e justiça social, todos podem fazer esse papel e multiplicar essas vozes. Falar pelos povos indígenas é uma coisa; agora, falar em favor dos povos indígenas é outra. 

Temos uma sociedade multicultural e plural, mas que não está presente nos espaços mais variados. Em todas as conquistas que tivemos ao longo dos 520 anos desde a invasão do Brasil, vemos que sempre tivemos aliados e aliadas não-indígenas. Buscar espaço não quer dizer que deixamos de precisar deles. Até a Constituição de 1988, não podíamos reivindicar certos direitos, porque éramos considerados sujeitos incapazes pelo Código Civil. Depois disso, mudamos a lógica e passamos a ter voz. E vamos continuar sendo sujeitos de fala, mas precisamos amplificar a luta e trazer mais aliados e aliadas à pauta. Não são só os povos indígenas que têm o direito, o dever e a obrigação de falar sobre a defesa dos territórios, das comunidades indígenas, dos povos originários, das comunidades tradicionais, dos povos quilombolas. A sociedade precisa se engajar. 

Não lutamos só por nós, mas como um todo, pela população brasileira, que também tem direito a um meio ambiente saudável para as futuras gerações, por exemplo. É só uma questão de entenderem que é importante ter indígenas nos espaços. Isso enriquece o debate e a construção do diálogo, ter indígenas, negros, quilombolas, pessoas LGBTQIA+ e outros tantos grupos. Nosso protagonismo não deve inibir, mas sim somar outros. Precisamos nos aliar, porque temos a responsabilidade compartilhada de debater esses temas. Acho que esse é o caminho.

Tu esteve presente nas manifestações em Brasília, na época em que o Marco Temporal seria julgado. Não foi julgado, foi novamente adiado. Podemos dizer que o Marco Temporal sintetiza a série de atrocidades e retrocessos cometidos continuamente contra os povos indígenas?

Marcos Kaingang – Sempre estive em todas [as manifestações], na verdade. Acompanhamos a tese do Marco Temporal desde que surgiu. Atrelamos cenários a um único candidato, governo ou partido, mas no cenário recente agravamos algumas questões profundas. O Marco Temporal ganhou notoriedade e visibilidade porque mexe em uma estrutura crucial, econômica e cultural. Ele se transformou em um elemento de narrativa e de discurso político-eleitoral. Em 1988, passamos a ter juridicamente os mesmos direitos que os não-indígenas. Isso é muito recente. Lá também passamos a ter direito sobre os nossos territórios originários, tradicionalmente ocupados. Isso está contemplado no Art. Nº 231 e 232.

Passamos a ter outra relação entre o Estado brasileiro e os povos indígenas, porque até então a ideia era nos integrar de maneira forçada. Na prática, isso significava acabar com a pluralidade étnica que se tinha no Brasil, generalizando sob o termo “índio”.

Isso foi rompido em 1988. O Marco Temporal é uma tentativa de inviabilizar os direitos garantidos na Constituinte. É um movimento bem organizado de um setor econômico muito ligado ao agronegócio. Alegam que somos um risco ao seu direito de propriedade. De fato, boa parte dos territórios indígenas que reivindicamos são territórios espirituais ancestrais de onde fomos retirados, pela Ditadura Militar, pelo Império, e pela colonização que se deu no Brasil. Éramos retirados dos nossos territórios à força, e colocados, vários povos indígenas, em um mesmo local, chamado de aldeamento. 

Daí surge o termo “aldeia”. Eu caracterizo o aldeamento como um campo de concentração, onde colocavam vários povos indígenas em um mesmo local e restringiam sua circulação e liberdade. Existia um movimento antes de 1988, mas era mais difícil, porque não tínhamos legitimidade jurídica para pleitear direitos. O Marco Temporal ganha força especialmente a partir do julgamento da [terra indígena] Raposa Serra do Sol (RO), em 2009. Eles alegam que só teríamos direito à demarcação dos nossos territórios originários, garantidos pela Constituição de 1988 e conquistados pelo movimento social indígena e apoiadores e apoiadoras, caso estivéssemos em posse desses territórios na data da promulgação da Constituição, em 5 de outubro daquele ano. 

Fomos retirados desses territórios, colocados em campos de confinamento, como esses ditos aldeamentos, passamos por grilagem, emissão de títulos de terra para terceiros. Fica difícil comprovar, então usam um argumento sorrateiro. Quando voltamos a uma área, não é do nada. É porque temos vínculo, onde depois é feito um estudo antropológico, encaminhado via Fundação Nacional do Índio (Funai), Ministério da Justiça, até chegar ao presidente da República para, enfim, concluir que é uma área de muito recente presença indígena. São vários processos até a homologação da área, para ir para os registros de bens, porque a terra indígena se torna um patrimônio público da União. 

A bancada do agronegócio é composta por cerca de 251 a 253 deputados. Isso é uma força política muito forte, que usa essa ferramenta de pressão sobre a presidência da República, Ministério da Justiça e Funai. A demarcação de territórios indígenas e quilombolas sempre foi uma moeda na negociação entre a presidência da República e o Legislativo. Hoje, então, são duas teses que estão em disputa: a Tese do Indigenato, que diz que somos detentores desses territórios muito antes da Constituição brasileira; e a Tese do Marco Temporal.

No momento da entrevista, ainda não temos um resultado definitivo das eleições. Quais as suas expectativas e receios em relação ao próximo mandato presidencial?

Marcos Kaingang – Não podemos nos desesperar. Eu não me assusto, assim como vários outros indígenas. Viemos de 520 anos de repressão e violação de direitos fundamentais. Nunca existiu um Estado Democrático de Direito para nós. Até hoje as violências continuam, só ganharam novas roupagens. Vislumbro um cenário extremamente difícil para os próximos anos. O presidente que se eleger vai ter que negociar com um Congresso eleito extremamente conservador. Lula está defendendo a criação de um ministério indígena. E Bolsonaro explora muito bem isso, diz que vão começar a demarcar todo o Brasil, impactar os agricultores nos municípios, desabrigar as pessoas. É um discurso de caos e medo, mas viemos denunciando as fake news na Justiça Eleitoral. 

Temos uma parcela da sociedade que é conivente, conservadora nos seus princípios morais e religiosos, preconceituosa, homofóbica e racista. Então, precisamos continuar, junto com quem está com a gente na luta contra o discurso de ódio. Teremos uma dificuldade imensa para avançar em políticas públicas voltadas à efetivação de direitos, principalmente para os povos indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais, pautas LGBTQIA+, pautas sobre aborto.  Sou otimista porque só a luta social e coletiva vai dar algum resultado. A gente vive de esperança, é o nosso combustível para manter a luta e mobilizar mais aliados e aliadas. Nós da APIB iremos a Brasília após as eleições para debater sobre esse cenário. Vemos que não estamos sozinhos e isso nos motiva muito a seguir adiante.

*Estudante de Jornalismo da Unisinos. Essa entrevista é uma parceria do Nonada com a Beta Redação, portal experimental do curso de Jornalismo da Unisinos, e foi realizada sob supervisão dos professores Débora Lapa Gadret e Felipe Boff.

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Editoria de cultura da Beta Redação - Agência de jornalismo experimental da Unisinos

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