Obra de Mitti Mendonça/reprodução

Mitti Mendonça transforma herança afetiva em arte através do bordado

Laura Rolim*

Com obras que retratam ancestralidade, afeto e questões ligadas à negritude, Mitti Mendonça leva adiante a técnica de bordado presente há 100 anos nas mulheres da sua família. Seu projeto Mão Negra começou em 2017 e a motivação surgiu pelas histórias das mulheres da família de Mitti, que remetem a uma memória afetiva e carregada de potência feminina. 

Quando tinha apenas 12 anos, a ilustradora, artista-têxtil, arte-educadora e produtora cultural não imaginava que o bordado poderia se tornar arte. “O bordado [na minha família] nasceu com a minha avó Castorina lá em 1922, e nunca foi um hobby. Ela sempre empreendeu, fazia enxoval de casamentos”, conta. 

Influenciada pelas obras do artista Bispo do Rosário, aos 32 anos Mitti encontrou uma forma de representar a força da mulher negra através de retratos inspirados nos álbuns de família e de escritoras negras. “Eu bordo desde os meus 12 anos de idade, e até então nunca tinha visto nenhum artista que bordasse. Quando eu vi o Bispo, vi essa relação de proximidade pela técnica”, revela a artista.

Natural de São Leopoldo (RS) a artista já expôs em espaços como a SP Arte e a Casa do Brasil de Lisboa, em Portugal. colaborou criativamente para editoras e grandes empresas.. Recentemente, a Mão Negra esteve presente na exposição Presença Negra no Museu de Artes do Rio Grande do Sul (Margs), com mais de 70 artistas negros e negras.

Em entrevista por videoconferência, Mitti Mendonça fala sobre sua trajetória, a herança afetiva presente na família e sobre as dificuldades de ser artista no Brasil, além de compartilhar um pouquinho sobre o seu processo de criação e objetivos para o futuro da Mão Negra.

Mitti Mendonça borda desde os 12 anos. (Foto: Arquivo pessoal / Mitti Mendonça)

Quem é a Mitti Mendonça? Quando surgiu a Mão Negra?

Mitti Mendonça – Eu criei o projeto Mão Negra em 2017, motivado pela história das mulheres da minha família, que eram bordadeiras do carnaval da cidade de Jaguarão, fronteira com o Uruguai. Meu lado materno é todo de lá e o meu lado paterno todo de São Leopoldo.

O Mão Negra fala muito dessa relação da mão que borda com a mão negra nessa construção da cultura do Brasil, da escravidão, colonização. Essa mão negra que constrói, mão de obra. Eu me lancei como artista em 2017, depois que eu fiz um curso de ilustração, na época em 2015, e também fiz uma formação de mediadores da Bienal do Mercosul. Comecei a entrar em contato com discussões da história da arte, conhecer um pouco mais dos artistas do Brasil, e refletir mais sobre essa questão da  comunicação, da arte podendo ser uma voz. 

Essa foi minha grande virada, um pouco antes de eu lançar a Mão Negra, nesse sentido de eu também estar entendendo e entrando em contato com mais leituras relacionadas a escritoras negras, outras referências, feminismo negro. Então, acho que eu também criei o Instagram com essa intenção de falar um pouco, de compartilhar esses retratos que na época eu fazia de escritoras negras. 

O meu grande interesse são retratos. Principalmente de mulheres da minha família, dos meus álbuns de família, fazendo essa relação com a ancestralidade, com afeto através do bordado. Quando eu fiz o curso de mediadores da Bienal, comecei a frequentar museus, exposições, galerias, qualquer exposição eu já estava ligada para visitar. Então fui percebendo suportes. Tem a galera que pinta na tela, tem a galera que usa o tecido como suporte, ou tem instalação, objetos de artes, tem vários tipos de suportes e superfícies possíveis de pensar o objeto obra de arte. 

Então, me deparei com a obra do Bispo do Rosário e essa questão do bordado. Eu bordo desde os meus 12 anos de idade, e até então nunca tinha visto nenhum artista que bordasse. Quando eu vi o Bispo, vi essa relação de proximidade pela técnica. “Ah, o que eu faço desde os 12 também pode estar no Museu?”, posso criar uma arte contemporânea. 

De onde surgiu o teu interesse pelo bordado?

Mitti Mendonça – É muito essa relação com essas questões de memória e afeto. Essa técnica circula na minha família há 100 anos. Nasceu com a minha avó Castorina lá em 1922, e nunca foi um hobby. Ela sempre empreendeu, fazia enxoval de casamentos. As encomendas chegavam para ela no boca a boca, as pessoas indicando. A minha mãe desenhava os riscos de bordado para a minha avó bordar. Toda a sororidade, tudo o que minha mãe contava, também me incentivou a conhecer um pouco mais dessa minha avó que eu nunca tive contato. 

Mas cada artista tem o seu ponto de partida. Algo que realmente fale de si, das suas histórias pessoais. A arte é esse grande canal de múltiplas pessoas. E não tem essa questão de saber desenhar certo ou errado. Quando tu percebe que não tem que seguir uma norma, consegue construir a sua linguagem. A sua forma de construir suas questões pessoais. Eu estou pouco a pouco me deixando sem tanta cobrança. Cada obra é um desafio, mas perceber que esse é o tempo das coisas. 

Tu foi a única que continuou com o trabalho de bordado dentro da tua família?

Mitti Mendonça – Minhas tias bordavam fantasias de carnaval. Quando eu ia para o interior passar as férias da escola, caía sempre no carnaval, elas estavam bordando as fantasias. Uma era porta-bandeira, outra era rainha da bateria. Meu tio bordava também, e era o mestre-sala. Elas começavam lá no inverno, eram fantasias gigantes, de lantejoulas. E aí essa lembrança delas bordando. Eu sou a única que borda. Minhas tias são mais do crochê, tricô, e minha mãe nunca gostou.

Tu se imaginava fazendo o que faz hoje? Quais foram as tuas influências dentro da arte?

Mitti Mendonça – Quando eu comecei, em 2017, foram essas influências [as mulheres da minha família e artistas negras] e o Bispo, quando eu percebi que dava para criar esse diálogo por meio do meu trabalho. Por que temos essa questão também de que durante a história da arte, as pessoas negras foram representadas por esse olhar do colonizador, do europeu, das pessoas que vinham de fora, e acabavam colocando essas figuras negras sem dedicação, nesse estereótipo de submissão, de exótico. E ajudou a propagar esse racismo, essa linguagem do exótico. Eu acho que, como artista, mulher negra, poder me representar em alguns autorretratos também é uma forma de disputar com essa política. 

A artista procura misturar cores e texturas em suas obras. (Foto: Arquivo pessoal / Mitti Mendonça)

Qual foi o momento mais marcante até agora na tua carreira?

Mitti Mendonça – Acho que foi este ano, a gente expôs na exposição no Museu de Artes do Rio Grande do Sul, principal museu daqui. Foi uma exposição histórica, foram mais de 70 artistas negros e negras, tanto contemporâneos como mais velhos, que vieram antes. Então, poder também estar nessa exposição disputando essas narrativas aqui no Sul, poder levar esses vários artistas negros com suas áreas poéticas e perceber a pluralidade, diversidade e a potência de estar no meio dessa exposição… Acho que foi um momento marcante de estar com obras inéditas e essa possibilidade de entrar para o acervo da instituição e de percorrer vários tempos. 

Gostaria que tu comentasse um pouquinho dos teus processos de criação para algumas marcas que tu trabalhou. Como foi pra ti trabalhar com marcas tão importantes? Como isso impactou dentro do teu trabalho?

Mitti Mendonça – Geralmente eu uso meu Instagram de uma forma estratégica, publicando sempre, e essas marcas acabam entrando em contato. Da Hershey’s eu fiz uma imagem da minha tia Nilva. Para Youcom eu fiz uma camiseta, que parte da verba iria para mulheres empreendedoras. E o Boticário foi para a campanha do Dia do Gaúcho. Quando chegam esses convites, geralmente, eles são bem livres. Eles dão um briefing da marca, o que a marca trabalha, como ela pensa. Foi um dia todo de gravação. Foi bem legal, porque aborda bastante o meu trabalho enquanto ilustradora. É um canal de comunicação para outras pessoas que chegam até o meu trabalho. 

Eu começo pensando nas cores. Esse impacto das cores, que é o que eu tenho como assinatura, características de alguns trabalhos. Então eu acabo trazendo tanto para os trabalhos de ilustrações como bordados, eles têm isso em comum. De ter essas padronagens, um pouco de padronagens africanas, das cores fortes. São coisas que eu tenho influência, dos tecidos africanos. Eu gosto de trazer muito essas padronagens das cores contrastantes, cores fortes. Às vezes, quando a marca tem alguma paleta de cor eu também sigo. 

Um objetivo que tu busca alcançar com a Mão Negra?

Mitti Mendonça – O desafio de ir para as obras maiores. Este ano eu estou para fazer uma obra de seis metros de arte têxtil. Ver o meu trabalho em maior formato. Já fiz algumas exposições fora do Brasil, mas com envio de trabalhos digitais. Seria legal ir pessoalmente e expor obras pessoalmente. Ou aqui fora do eixo do sul. Transitar o meu trabalho, esse movimento de ver ele crescendo em outros lugares, seria bom. O sonho é continuar fazendo o que eu faço, conseguir continuar chegando nas pessoas, acho que o trabalho não existe sem isso. Poder fomentar a trajetória de outras mulheres artistas também, de alguns projetos que eu sou curadora, produtora. 

Obra chamada de “Texturas que moram em mim”, produzida em 2020 pela Mitti. (Foto: Arquivo pessoal / Mitti Mendonça)

Como é ser uma artista no Brasil?  

Mitti Mendonça – É muita estratégia. Tem que ter muito essa questão do tempo. De perseverar nessa área. Acho que cada artista sente as direções que quer tomar com a carreira. Tem gente que [pensa] “Ah, eu só quero produzir minhas coisas, fazer minhas encomendas”. Ou artista que atua mais como professor, tem outras áreas paralelas. 

Acho que é difícil trabalhar apenas produzindo as obras e focar totalmente na produção das obras. É um privilégio enorme poder fazer isso. Eu como artista sinto que é quase como umas mãos de polvo, tu faz um pouco de tudo para continuar fazendo o que quer. Uma produção autoral, nesse sentido. Faço um pouco de encomendas, mas que não tem nada a ver com a minha poética, porque tem outras coisas que dão suporte para minha produção autoral. Acho que é uma estratégia de conseguir se articular e, como artista, se colocar nos ambientes. Se tem uma  abertura de exposição, ir atrás para saber quem tá organizando, quem são os artistas. Eu acho que como artista aqui no Sul, e como no Brasil todo, o desafio é realmente pensar estrategicamente onde é possível se inserir. Saber dos editais. Propor projetos. Eu, como artista, tenho essa pegada. 

Tu tem algum ritual para começar a criar? Antes de começar a criar do zero? E o que tu faz quando está com algum bloqueio criativo?

Mitti Mendonça – Eu escrevo antes. Escrevo poesia. Então, geralmente, eu alinho as ideias pela escrita. Por exemplo, tipo essa campanha da Youcom, a frase “sou porque elas vieram antes”, essa frase já estava escrita em outras ideias, em outras poesias, e aí eu pensei na frase, pensei na imagem, uma figura de duas mulheres juntas, falando sobre essa relação de conexão, ancestralidade e pluralidade. Imagem de rostos com várias cores, vários tipos de textura de ponto. É um processo de escrita. Começo alinhavando essas palavras-chaves para trazer um impacto visual. Penso nas cores, nos elementos que vão estar presentes. Pode ser uma arte mais abstrata, mais figurativa, mas sempre relacionando essa questão da cor e das formas, uma coisa mais geométrica. 

Tomo café, tomo bastante café. Incenso também é uma coisa que me ajuda. Acho que é isso. Mais essa relação com a palavra. Eu escuto bastante podcast também. Coloco os que eu mais gosto de ouvir. E música. Os meus trabalhos são com música.  

*Estudante de Jornalismo da Unisinos. Essa entrevista é uma parceria do Nonada com a Beta Redação, portal experimental do curso de Jornalismo da Unisinos, e foi realizada sob supervisão dos professores Débora Lapa Gadret e Felipe Boff.

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