Araxane Jardim (Foto: arquivo pessoal)

Teatro do Oprimido e a mudança da realidade dos marginalizados

Tai Mauê*

A liberdade do artista está em poder dizer o que se quer sem temer a ninguém, incentivando o pensamento crítico sobre a realidade de nossa existência. A reflexão é feita por Araxane Jardim, 54 anos, ator, diretor de teatro e agente cultural. Registrado como Giovani Raimundo Jardim Lopes, a escolha do seu nome artístico é só mais uma forma de expressar essa liberdade e cultuar a existência dos povos originários do país. Os arachanes eram povos indígenas que viviam no litoral do Rio Grande Sul.

Contestador desde sua juventude, Araxane foi um dos fundadores, junto com seus companheiros, da Federação Anarquista Gaúcha, e foi com essa ideologia que entendeu o teatro como forma de expressão política e como ele poderia transformar a realidade dos marginalizados. O Teatro do Oprimido foi desenvolvido pelo dramaturgo e diretor teatral carioca Augusto Boal (1931 – 2009), no início dos anos 70, e nasceu da necessidade de fazer teatro que retratasse a realidade da época. A base do método são questões sociais e políticas que retratam as relações entre opressores e oprimidos e busca criar uma linguagem que traduza o falar, sentir e pensar sobre temas latentes da sociedade. O espectador é a quarta parede, que observa e transforma a cena representada. Assim, o protagonista é livre para poder recriar outra perspectiva da vivência no palco. Segundo Boal, todo mundo é ator e espectador, todo mundo é teatro.

Na perspectiva dos multiplicadores deste método, o teatro pode não ser tão revolucionário em si mesmo, mas ele é um ensaio para a revolução. E foi por medo dessa revolução que o atual governo extinguiu o Ministério da Cultura, perseguiu e ainda persegue a classe artística, faz cortes orçamentários, apoia seus gestores fazendo citações nazistas, tenta de todas as formas censurar e silenciar a arte. Desde a concepção dos métodos de Boal, o país não havia enfrentado situação similar e, felizmente, pessoas como Araxane não deixam a arte sucumbir.

Na virada do século, em 1999, Araxane teve a oportunidade de ter aulas com o próprio Boal, em Porto Alegre, possibilitando levar para as periferias da região metropolitana os métodos criados pelo dramaturgo. Atualmente, com a 11ª turma,  ministra um curso com a metodologia do Teatro do Oprimido junto com Déia Alencar e Jaqueline Lepsen. No curso, os alunos são apresentados aos exercícios e jogos dramáticos do Teatro do Oprimido, técnicas de estética do oprimido, criação de cena para o Teatro Fórum e mostra cênica.

Ara, como é chamado por seus alunos, nos recebeu no Ponto de Cultura Biguá, que fica na periferia da cidade de Guaíba (RS), numa manhã ensolarada de sábado. Na área externa do centro cultural, aproveitando o vento que assobiava entre as árvores, conversamos sobre sua descoberta como artista, contato com o Teatro do Oprimido, com o dramaturgo Augusto Boal e sobre o que espera para os próximos capítulos da cena cultural da cidade e país.

Quando você se percebeu artista?

Araxane – Foi quando participei de um presépio na igreja quando eu era criança. Fiquei segurando uma ovelhinha e não fiz nada (risos). No colégio, eu achava uma maneira de botar algum tema original, nunca de copiar texto de alguém. Já na fase adulta conheci o pessoal anarquista e a gente começou a fazer agitação e propaganda. Fizemos um ato rápido ali, era o final da ditadura e abertura democrática, então foi por aí que entrei. A gente pensava que era melhor fazer alguma coisa do que entregar panfleto para o pessoal jogar fora. Vendo o ato, bate algo internamente e a pessoa pensa. Depois fui percebendo que eu tinha que ter muito mais conhecimento e fazer um trabalho mais interior, mais revolucionário de mudar a mim mesmo do que fazer para os outros.

E como foi essa revolução interior?

Araxane – Tentei vencer várias contradições minhas, tentei ir para o mundo, viajei. Porque a gente quer mudar uma estrutura, mas se não trabalharmos na gente nada ocorre. Acredito que acontece do micro e vai crescendo para o macro. E assim, eu até nem gostava de teatro, né? Achava que era (Araxane cantarola uma ópera exagerada) aquela coisa assim, outra realidade, uma coisa que é para burguês. Mas quando vi um teatro crítico, que fazia pensar…comecei a fazer oficinas e alguém usava algum jogo do Boal. Fui aluno da Descentralização da Cultura de Porto Alegre. Era um projeto maravilhoso! Tinha acesso a peças de teatro de graça. Eu não tinha nenhuma influência de teatro, foi uma coisa que foi me ganhando. Na Descentralização tive acesso a vários grupos e isso tudo foi me alimentando. Quando tinha festivais de teatro de rua, eu sempre escolhia aquelas peças que achava que iam falar alguma coisa pra mim. 

Foi através do teatro de rua que conheceu o Boal?

Araxane – Eu fazia teatro de rua. O primeiro grupo que participei foi em Canoas e um amigo me deu um polígrafo com textos do Teatro do Oprimido e outras poéticas. A partir daí comecei a estudar. Fiquei fascinado! Pensei em tentar fazer os exercícios, os jogos. Arrisquei em iniciar uma turma aqui em Guaíba com o pessoal marginalizado e a ideia era oferecer um teatro acessível. 

O que o Teatro do Oprimido representa para a comunidade?

Araxane – É uma outra possibilidade de ter relações sociais com as outras pessoas, de uma forma diferenciada, onde a gente busca ser mais consciente, de como que está afetando o outro, de que forma a gente encontra mais uma igualdade de ações, de direitos, e que a gente pode fazer diferente. Dentro do processo, fomos descobrindo várias coisas. Por exemplo: tem dias que a gente se encontra, fica sábado inteiro juntos. Chega a hora do almoço, de repente todo mundo traz carne, e a pessoa que não come carne fica lá sem ter o que comer. Então temos que pensar em incluir o outro ali, não pensar só no umbigo. É essa socialização. 

É também um teatro político, que vai muito para decisão de organização. Sou multiplicador, então tenho meu papel ali de professor, mas ao mesmo tempo é preciso dar autonomia aos alunos. Digo “ó, faz o roteiro, tem que ser uma coisa de vocês”, porque se a gente passar dessa para uma outra a multiplicação fica por aí. Dar oportunidade para o descobrimento da potencialidade artística que todo mundo tem. Favorecer que todos tenham contato tanto para assistir como para participar encontrando sua teatralidade. Esse fazer teatral é mexer com outras coisas e isso move as pessoas a se moverem.

Como foi a experiência em ter aulas com o próprio Augusto Boal? 

Araxane – Fiquei sabendo que o Boal estaria em Porto Alegre dando aula para oficineiros, gente do teatro. Escrevi uma cartinha de intenção e fiquei naquela espera, não sabia se ia ser aprovado. Quando fui selecionado, fiquei super feliz. Porque o Boal influenciou tanto! Fiquei super feliz, tive trocas com ele. Eram duas peças. A minha era um ônibus e a gente tinha um monte de mochinho, então um mochinho era a roleta, os bancos eram mochinhos e direção também no mochinho. Foi isso bem básico, tudo pintado, acho que era de amarelinho. 

Depois teve a descoberta do Boal da estética, que isso alimenta os neurônios, as sinapses… tem encantamento ali também do artista, da atuação, da escrita, do teatro imagem. Alguns nomes de peso do teatro fizeram o curso, mas não chegaram até o fim, e eu ali pobre, meio desconhecido, no teatro segui, até o fim. O curso teve três fases: jogos e roteiro, montagem e, por último, a apresentação, que foi no Teatro Renascença. Foi uma apresentação só e lotou o Renascença. A base do curso que eu dou é dessa experiência, mas claro, fiz outras formações também. 

Algumas das finalidades do Teatro do Oprimido é a conscientização social e a transformação da realidade. Como você acha que a interação, tanto dos atores quanto do público, transforma essas realidades?

Araxane – A vida real é muito mais complexa e mais difícil, mas aquela tentativa ali, ela já propõe uma outra mudança de postura. Às vezes, a pessoa não se acredita, ela vê em cena alguém tentando resolver a situação, que é o dia a dia dela e pensar, ou de ver que aquilo ali é uma coisa muito batida, que já está amortecida e está até aceitando. Mas essa questão é no diálogo e nem sempre se resolve só no diálogo. Por exemplo, uma vez um rapaz da plateia chegou e abraçou a pessoa que estava em cena e conseguiu contagiar de uma forma afetiva. 

Como os movimentos sociais impactaram o Teatro do Oprimido?

Araxane – Os movimentos sociais, claro, impactam. Também se discute dentro dos movimentos essas contradições que a gente vive, que também há opressão dentro desses movimentos, o movimento negro, LGBTQIA+, o feminismo. Nesse sentido, a gente trabalha de não ser nem um oprimido, nem um opressor, de encontrarmos um equilíbrio nas relações. Os próprios movimentos acabam tendo contato com o Teatro do Oprimido. Ou, o Teatro do Oprimido acaba trabalhando com as pessoas e elas vão buscar o ativismo, procuram esses direitos que estão contemplados nos movimentos sociais. 

O Boal trabalhava com seus multiplicadores de que a gente deve buscar ações concretas e continuarmos na sociedade para que tenhamos justiça social. As pessoas aqui na cidade até perguntam como nossos alunos são tão participativos nos movimentos. Tem essa participação política, social que a gente tem que fazer dentro da comunidade para que haja mudança na saúde, na educação.

O projeto Teatro de Fato retoma agora, em sua 11ª edição, após dois anos parado por consequência da pandemia. Percebe alguma mudança nos temas expostos pelos alunos nesse retorno?

Araxane – Aumentou muito o grau de ansiedade e depressão. Tanto que, em uma aula, a gente não fez os jogos, não fez nada, porque vieram relatos como “ah, eu tô me sentindo mal, estou deprimido”. Então a gente parou e falou sobre isso. Tentamos botar eles no máximo para cima e dizer que eles tinham que reagir. Isso foi um problema que observamos. Ainda bem que passou essa fase. Ficamos super preocupados, né? Porque não adianta atropelar, não é empurrar um método. É sempre escutar. É diálogo. Outra coisa que voltou com mais força são os relatos de violência doméstica, da violência contra a mulher e contra a criança. Também tem a questão da repressão policial, e esses temas são recorrentes por causa desse período. Deram carta branca para eles…

A oficina é oferecida para todos os interessados a partir de 16 anos, atores ou não. Como é feita a condução de um grupo tão diverso?

Araxane – Cada ano tu pega uma turma diferente com qualidades e características diferentes. Tem gente que vem da arte e que se acham isso e aquilo e aí temos que dar uma interferida “olha, tu tá oferecendo para os outros, tá querendo ajudar os outros”. Às vezes eu tenho que puxar quando a galera tá bagunçando. Tentamos ao máximo que todos consigam participar. Tentamos resgatar essa característica, porque o teatro nasceu do povo, né? Nasceu da rua, nas manifestações tanto afro, quanto indígenas. É uma integração de todos os elementos artísticos reunidos.

Quais são os projetos do Grupo para o ano que vem?

Araxane – A gente não sabe, está bem difícil aqui. Mudou de gestão na prefeitura de Guaíba e a gente não consegue falar com o secretário. Tudo muito moroso e desgastante, bem complicado. Talvez a gente faça micro turmas aqui no Biguá. Queremos encerrar primeiro o processo, mas precisamos ter um parceiro que seja firme com os compromissos assumidos, que consiga ter diálogo também. Neste ano não fomos muito bem atendidos, então nesse sentido não sabemos.

O presidente eleito Lula afirmou que irá recriar o Ministério da Cultura e criar comitês de cultura em cada capital do país a fim de descentralizar a arte, que hoje é basicamente Rio-São Paulo. O que você espera dessa retomada?

Araxane – O Ministério da Cultura favorece as ações de participação e de reconhecimento como agente cultural em cada um. Porque não se faz se não acreditarmos. Eu, periférico aqui, poderia pensar “ah, cultura não é pra mim, teatro não é para pobre.” Um monte de coisas que está no pensamento. Cultura é uma maneira que tu faz qualquer coisa. É aquilo que tu cultiva. Faço gosto que a gente tenha essa retomada de novo. A gente como ponto de cultura e também como ativista. Agora é artivista, né? Antes era atuador porque atua na arte. Não é só ator e atriz, mas tem um papel de levar adiante. O desenvolvimento, o crescimento de todos. O Ministério, ele tem um baita de um papel.

*Estudante de Jornalismo da Unisinos. Essa entrevista é uma parceria do Nonada com a Beta Redação, portal experimental do curso de Jornalismo da Unisinos, e foi realizada sob supervisão dos professores Débora Lapa Gadret e Felipe Boff.

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