Calígula/divulgação

Uma conversa com a dramaturga Maria Madureira, em cartaz com “Calígula”

Lucas Proença*

Pode-se dizer que a vida e obra de Maria Luíza Madureira se misturam simbioticamente desde que ela se conhece por gente. Frequentadora de teatro desde os nove anos de idade, a dramaturga porto-alegrense está à nova montagem de seus espetáculo Calígula. Na obra, o público é convidado a participar de um diálogo cujos protagonistas são o Calígula histórico, imperador tirano, e seu homônimo, homem comum contemporâneo, personificado, não por acaso, por uma mulher.

“Feliz de mais com a quantidade de público nos primeiros dias”, Maria sente-se honrada pela recepção à sua obra, pois enxerga o teatro como ” uma arte meio anacrônica, meio demodê.”. Apesar da opinião, também quer que mais pessoas tenham contato com sua mais recente produção: “O sucesso nos empolgou, achamos que mais gente precisa ter oportunidade de ter a experiência desse trabalho”, conta.

O gosto pelo teatro começou de maneira bastante familiar: o pai Mário levava o irmão João Pedro para aulas no Teatro do Museu, em Porto Alegre, nos anos 90, enquanto Maria ficava assistindo – provavelmente com o mesmo brilho no olhar que fala da peça que ela e sua equipe dão vida atualmente.

Na sexta série, no Colégio Americano, a então aspirante a dramaturga dirigiu uma montagem do clássico Mágico de Oz, pela qual ganhou um prêmio. “A maior emoção da minha vida até então”, ela conta aos risos. Em 2008, ingressou de fato no universo do teatro ganhando o Prêmio Myriam Muniz, marcando sua profissionalização pela vai! cia de teatro  —  organização da qual foi uma das criadoras e que hoje está desativada.

Maria conversou conosco sobre sua carreira na dramaturgia, o momento político-social do Brasil inerente à sua obra e sobre seu processo artístico, destacando de maneira contundente sentimentos e ideais que permeiam seu trabalho.

Quando assisti a Calígula, em 2019, a peça não poderia corresponder mais ao momento político-social pelo qual o país passava. Atualmente, a peça segue muito contemporânea. O que você pensa sobre essa atemporalidade?

Maria Luíza Madureira – Acho bem intrigante. Calígula foi escrita durante o ano de 2017 e finalizada em março de 2018. Realmente, às vezes me espanto com a atualidade e até com certas frases que parecem descrever coisas bem concretas da nossa realidade atual. Trechos que soam como alusão a acontecimentos posteriores à escrita da peça! 

Infelizmente, isso é reflexo de um triste processo que, de algum modo, apareceu para mim lá em 2017. Certamente, preferiria estar constatando que minha leitura em 2017 estava completamente errada. Fico satisfeita, no entanto, de ter conseguido escrever alguma coisa que segue falando e dizendo. Um texto que é, ao mesmo tempo, um esforço enorme de elaboração poética, atemporal, e uma discussão de temas que seguem tocando o que é relevante agora, mesmo com a passagem do tempo. E quem assiste vê isso.

Houve algumas pequeníssimas alterações para essa montagem: retirei a referência direta à Marielle Franco, importantíssima, mas que hoje me parece até desnecessária, já que poderíamos dizer que grande parte da peça fala dessa tragédia, que é política, que é marcada por raça, que é a milícia, o crime em condomínio com a teocracia, que é o fracasso da civilização, da democracia.

No hiato entre as duas temporadas da peça, houve uma pandemia. O que mudou para se fazer teatro nesse período? 

Maria Luíza Madureira – As coisas já estavam terríveis antes da pandemia na cultura no Brasil. Desde o golpe, em 2016. Houve até a extinção do Ministério da Cultura pelo Temer! A Usina do Gasômetro foi fechada em seguida do golpe, o Teatro de Câmara já estava interditado há anos. Os investimentos, os prêmios em dinheiro de montagem, de circulação de espetáculos, já tinham rareado também. 

A pandemia foi uma tragédia para quem vive de cultura porque não era mais possível sequer fazer e apresentar. Teatro é encontro de corpos, não era possível por causa do risco sanitário. O que não houve, o que foi criminoso, foi não haver ação eficaz do estado para dar auxílio que oferecesse dignidade aos profissionais impedidos de trabalhar. Isso no quadro maior da desassistência, das medidas pífias do poder público para garantir a sobrevivência do trabalhador brasileiro em geral.

Como idealizadora de uma peça de teatro, como é, para você, o processo de montar e escolher a equipe que vai dar vida ao teu texto?

Maria Luíza Madureira – Eu geralmente quero trabalhar com gente extraordinária. Não tenho vontade de fazer as coisas só para fazê-las: eu adoro excelência. Se não fosse uma equipe dos sonhos, pra mim, não faria de jeito nenhum. Me honra estar ao lado de Marcos Contreras e Lisandro Bellotto.

Você já afirmou que não se considera uma pessoa do teatro, mas sim alguém que “encarna os donos do palco” enquanto dramaturga. Ainda se sente assim e, a partir disso, como funciona o teu processo criativo?

Maria Luíza Madureira – Eu disse que o que eu consigo é encarnar nos donos do palco, que são os atores que, dizendo meu texto, carregam meu espírito para a cena. Eles me levam junto para o palco, como se eu fosse um espectro, uma assombração.

O meu modo de criar um texto para o teatro sempre foi marcado por processos com atores em que o desejo deles como artistas, aquilo que os motivava e suas propostas fosse o ponto de partida. Com Calígula não foi diferente. Depois de quase um ano nesse bate bola com um ator, ele abandonou o projeto. Aí pela primeira vez me vi resolvendo, fechando um texto por minha conta. Dei a forma final para um calhamaço de umas cem páginas escritas no processo, e o resultado foi o texto da montagem atual, que já é muito mais correspondente ao meu desejo não apenas como criadora, mas representa uma visão de mundo muito particular minha.

Mas quando os donos do palco estão em cena, já não sou só eu quem fala. É mágico.

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Editoria de cultura da Beta Redação - Agência de jornalismo experimental da Unisinos