Foto: Museu Bispo do Rosário/reprodução

De Bispo do Rosário a Grada Kilomba: conheça abordagens diversas sobre saúde mental na arte

A arte pode colaborar para que entendimentos mais humanizados e generosos surjam em relação às temáticas relacionadas à saúde mental. Para além de pensar em clássicos europeus, como Van Gogh ou Egon Schiele para acessar imagens sobre diagnósticos, podemos olhar para artistas contemporâneos que trazem novos retratos sobre esse tema. 

Em artigo publicado na Revista Observatório Itaú Cultural #31: Cultura, saúde mental e bem-estar, a psiquiatra Silvana Ferreira aponta que a saúde mental voltou a ser assunto de maior destaque na sociedade no século XXI, depois de um longo período de estigmatização. Ela diz que não há apenas um conceito de “saúde mental” possível. “A ideia ou sensação de ‘bem-estar’ pode variar de indivíduo para indivíduo e, mais ainda, ser diferente nas diversas culturas, com formas singulares de ver e entender o mundo. Assim como a arte, a saúde mental pode ser considerada uma expressão do sujeito em sua cultura, um fenômeno complexo, rico e multideterminado”, explica na publicação.

A partir da fotografia, das artes visuais, da escultura, da performance, artistas abordam ou tangenciam o tema. Além disso, surge uma pergunta: qual a fronteira entre arte e arte terapia? Ela existe? Foram questões que em vida fizeram a artista Lygia Clark e a psiquiatra Nise da Silveira, que lutou para que o tratamento de eltrochoque no hospital em que trabalhava fosse substituído por ações de terapia ocupacional – com a arte como protagonista entre as linguagens.  

No que diz respeito à arte e psiquiatria, não há, para Silvana, uma “arte dos pacientes psiquiátricos”, já que ela é de todos. “A conexão interpessoal provocada pela arte pelo reconhecimento comum de signos daquela cultura reforça a sensação de pertencimento dos indivíduos, combatendo o estigma e servindo de instrumento de inclusão social”, diz. 

Mário Pedrosa responderia, nos anos 40: “As imagens do inconsciente são apenas uma linguagem simbólica que o psiquiatra tem por dever decifrar. Mas ninguém impede que essas imagens e sinais sejam, além do mais, harmoniosos, sedutoras, dramáticas, vivas ou belas, enfim constituindo em si verdadeiras obras de arte.” 

Selecionamos 8 trabalhos artísticos que abordam a saúde mental, seja como atravessamento na vida dos retratados, como no livro da fotógrafa Isabella Lanave; seja como contexto de surgimento, caso do artista Bispo do Rosário; ou como pesquisa e reflexão história, social e política a partir da psicanálise e da arte, a exemplo do que faz a escritora Grada Kilomba. 

Eu preciso destas palavras escrita, Arthur Bispo do Rosário (1909-1989)

Foto: acervo museu Bispo do Rosário

Arthur Bispo do Rosário, com sua agulha e linha, nas descosturas de uniformes, e na costura dos seus conhecidos mantos e estandartes, tornou-se uma das presenças mais importantes quando se fala de arte e saúde mental.  Durante 50 de seus 80 anos, Bispo viveu em manicômios, em um período pré conquistas da luta antimanicomial, em que os métodos para pacientes ainda eram extremamente violentos e nada humanizados.  “Decide, por sua conta, trancar-se por sete anos numa das celas para, com agulha e linha, bordar a escrita de seus estandartes e fragmentos de tecido. As linhas azuis, desfiava dos velhos uniformes dos internos, e objetos tais como canecas, pedaços de madeiras, arame, vassoura, papelão, fios de varal, garrafas e materiais diversos que ele obtinha em refugos na Colônia”, como consta no site do Museu Bispo do Rosário.

A primeira vez que expôs uma de suas obras foi em 1982, na mostra “Margem da Vida”, no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro, única mostra coletiva que ele participou em vida. Ele não se considerava um artista. Desde 2000, o museu é uma instituição de referência em pesquisa e conservação da obra de Bispo, além de abrigar exposições temporárias que se relacionam à sua obra.

Estruturação do self, Lygia Clark (1920-1988) 

Foto: acervo Lygia Clarck

Sacos de plástico, conchas do mar, saquinhos de chá, tubos de borracha, canos de papelão, meias, eram alguns dos objetos relacionais utilizados por Lygia Clark. Durante toda sua vida, Lygia se interessou pelos modos de aproximação com os “outros” e questionou a perspectiva, até então hegemônica na arte brasileira dos anos 60 e 70, do espectador passivo. Em Estruturação do Self, ela convida o espectador a deitar no divã, ao longo de várias sessões, e experimentar um método que ela considerava terapêutico. Em contato com os objetos relacionais, a intenção da artista era de que sensações e memórias pudessem ser ativadas no corpo do participante. 

Museu de Imagens do Inconsciente, de Nise da Silveira (1905 – 1999) 

Obra de Adelina Gomes (foto: acervo do Museu de Imagens do Inconsciente)

Nise da Silveira foi uma das maiores ativistas na luta antimanicomial no Brasil. Em 1946, criou os ateliês de terapia ocupacional do Centro Psiquiátrico Nacional, no Rio de Janeiro, tendo sido defensora da arte como terapia em processos psicoterápicos. Nise combinava teorias artísticas e psicanalíticas de Jung, defendendo o fazer artístico como uma forma de cura. Muitas das produções foram exibidas em instituições de arte, como o Ministério da Educação e o  Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), que organizou “9 artistas de Engenho de Dentro do Rio de Janeiro”, em 1949. As obras receberam a crítica de Mário Pedrosa, na época colunista do Correio da Manhã, que as considerou “verdadeiras obras de arte”. Em 1952, Nise criou o Museu de Imagens do Inconsciente, que existe até hoje no Rio de Janeiro. O acervo abriga obras criadas pelas pessoas atendidas pela psiquiatra.

Leve a sério o que ela diz (2022), de Isabella Lanave 

Foto: editora Lovely House

A aproximação da artista Isabella Lanave com as temáticas relacionadas à saúde mental começou na série fotográfica Fátima, onde ela fotografa sua mãe, uma pessoa neurodiversa, e a relação das duas. Leve a sério o que ela diz é uma reformulação de uma frase que Isabella ouviu de pessoas durante a vida, que buscavam descredibilizar aquilo tudo que dizia sua mãe. 

No fotolivro, lançado em 2022 pela editora Lovely House, ela apresenta uma reunião de imagens feitas com pessoas que convivem com diagnósticos de neuro diversidades, não só ouvindo o que dizem, mas os encontrando e construindo de forma colaborativa o livro. Além das fotografias, realizadas em um processo de mais de 3 anos, há entre as páginas cartas, e desenhos, feitos pelas pessoas retratadas. “Devolvidas à correnteza dos dias, as imagens nos convidam a abrir mão de qualquer rigidez e a acolher a mobilidade inevitável dos papéis: quem é são, quem é insano; quem fala, quem escuta”, diz a pesquisadora Maria Helena Bernardes sobre o livro. 

Tentativas Operatórias no Tratamento de Certas Psicoses (2022), de Bruno Claro 

Foto: divulgação

Até os anos 70, especialmente na Europa, a Lobotomia era considerada uma “cura” de diagnósticos como esquizofrenia e transtorno obsessivo-compulsivo (TOC). O procedimento consistia na realização de uma intervenção cirúrgica no tecido cerebral, e na visão biologista das doenças mentais. Demorou décadas, para que cientistas e médicos percebessem os efeitos devastadores da cirurgia e parassem de realizá-la. No fotolivro Tentativas Operatórias no Tratamento de Certas Psicoses, o artista Bruno Claro recria a narrativa sobre a cirurgia. Como ponto de partida, em combinações de imagens que remetem a uma ficção, ele revista o surgimento da Lobotomia e o lugar heróico dado a Egas Moniz, seu criador. “Criador e invenção sustentam-se em uma narrativa heróica de prestígio controverso”, afirma. 

Os usos da raiva (2019), de Ana Clara Tito  

Foto: divulgação

Em sua pesquisa, Ana Clara Tito parte dos estados emocionais e mentais, a partir de trabalhos que  cruzam fotografia, performance e instalação. Usos da Raiva é uma instalação fruto do trabalho performático da artista, que em uma coreografia molda o metal e o transforma em escultura. “Os usos da raiva explora o registro e a potência do momento e a intelectualidade dos sentimentos, a partir de ideias de permissão e de possibilidade”, diz a artista.  

Ruído Retórico _1 (2021), de André Komatsu

Foto: Galeria Vermelho/reprodução

A produção do artista André Komatsu se desdobra sobre os sistemas de controle e poder do mundo contemporâneo. O espaço urbano, a arquitetura e a concretude aparecem em seus trabalhos que, por vezes, utilizam materiais como tijolos e tapumes. Foucault é uma das referências do artista. 

Memórias da Plantação (2008), de Grada Kilomba 

Memórias da Plantação é uma compilação de episódios cotidianos de racismo, escritos sob a forma de pequenas histórias psicanalíticas. Escritora, artista, pesquisadora e psicóloga, Grada trabalha de forma interdisciplinar e referencia nomes como Franz Fanon e bell hooks. Em sua obra, a saúde mental é entendida como uma esfera que só pode ser pensada em uma análise sócio-política. O livro foi publicado no Brasil em 2019, pela editora Cobogó. 

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Repórter do Nonada, é também artista visual. Tem especial interesse na escuta e escrita de processos artísticos, da cultura popular e da defesa dos diretos humanos.
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