Amador e Jr. Segurança Patrimonial LTDA (Foto: Everson Verdião)

Seguranças-artistas quebram quarta parede de espaços de arte e evidenciam trabalho precarizado

Dois homens negros, vestidos de terno preto e gravata azul marinho, descansam em um sofá estofado. As pernas deles estão esticadas, os pés para cima. Eles estão descansando. Entram, então, no mesmo espaço, duas mulheres brancas. Elas olham a cena, e prontamente uma diz para outra, assustada: ‘Ih amiga, acho que a gente entrou no lugar errado, vamos sair daqui’. 

Mas elas estavam no lugar certo. As visitantes foram até aquele espaço, a Pivô, associação cultural em São Paulo, para conhecer os ateliês dos artistas residentes na instituição. Os dois homens que viram são Jandir Jr e Antônio Amador, artistas do Rio de Janeiro, que desde 2015 atuam juntos realizando performances de longa duração como seguranças de espaços culturais. 

Vestidos como vigilantes, eles não cumprem os códigos feitos para esses trabalhadores no museu. Subvertem, nas performances, regras que – ditas ou não ditas, marcam a rotina de um segurança, como olhar sem desviar para as obras de arte, tirar foto dos visitantes quando solicitado, manter-se sempre a postos. No conjunto de gestos que elaboraram nesses mais de 8 anos, eles criaram uma espécie de “contra-manual”. Enquanto seguranças, durante aberturas, ou dias de exposição, permanecem de olhos fechados; posicionam-se dentro de uma poça de água dentro do museu; pedem a visitantes que tirem uma foto deles em frente a uma obra de arte; participam de coffee breaks; ou então, simplesmente, colocam os pés para cima em público – relaxam. 

É na criação e execução destes gestos que a Amador e Jr. Segurança Patrimonial Ltda, como definem suas ações performáticas, atua. Eles tornam evidentes relações de poder e trabalho do setor cultural, atravessadas por raça e classe. “Eu entendo que ali nos ternos, na segurança das instituições culturais, a gente tem um símbolo que corresponde a toda uma cadeia de trabalhadores/as da cultura que se veem em posições precarizadas e, até diria, racializadas”, explica Jandir, em entrevista por chamada de vídeo ao Nonada Jornalismo. 

Foto: Everson Verdião

“Tem uma linha de performance muito difundida através da Marina Abramovic, que fala das performances de longa duração por um viés talvez mais ‘transcendental’. Estamos cientes desse legado, mas nossa performance de longa duração vem embasada pela experiência do corpo trabalhando em posições cansativas e exaustivas”, comenta Jandir, artista e educador. 

Para Antônio, a escolha de atuar como esses profissionais têm relação com o desejo da dupla de refletir sobre as hierarquias, violências e relações comuns aos espaços de arte. “Qualquer Museu ou Centro Cultural, na experiência que a gente tem, vai ter um segurança. Nem todo lugar vai ter monitor, mas todo lugar vai ter essa pessoa que a gente identifica que pode pedir informação, por exemplo. Foi uma forma que encontramos de pensar o que pode ser o comum a todas essas instituições culturais”, reflete Antônio, que é também Doutorando em Artes da Cena na Escola de Comunicação pela UFRJ. 

Um dos serviços da Amador e Jr. Segurança Patrimonial LTDA oferece é colocar, com muita ironia e criticidade, relações entre instituição, visitante, trabalhador e sistema de arte em evidência. Confira a entrevista completa:  

Nonada –  Como aconteceu o encontro de vocês para formarem a dupla? 

Jandir – Eu e Antônio, apesar de termos feito o mesmo curso universitário, não começamos nossa convivência lá. Foi no trabalho. A gente trabalhou juntos no Museu de Arte do Rio, como estagiários, educadores, em posições próximas, porém diferentes. Esse foi o contexto que fez a gente se aproximar e acho que também forma muito a energia que a Amador e Júnior carrega, no campo Institucional, formada pelo trabalho de base. Ali, inclusive, muito conectada com a experiência que nós mesmos tivemos desde o Museu de Arte, e outros espaços institucionais, de conviver com vigilantes e se ver, por muitas vezes, trabalhando em funções análogas – como segurança patrimonial ou educação patrimonial. 

A primeira vez que trabalho foi um tempo depois, em 2015. Mas antes, teve um evento estopim que fez a gente começar a pensar a performance, quando aconteceu aquele lance na Casa Daros. A gente estava fazendo um curso para jovens artistas, na Casa Daros, que não existe mais no Rio. Em uma das dinâmicas, começamos a pensar sobre as posições que os seguranças ali ocupavam. 

O que ficou, de fato, desse momento foi uma piada entre nós dois sobre a possibilidade de chamar alguma coisa de ‘objeto interativo’. Ter ela em exposição e com dois agentes, como dois seguranças do lado, e na hora que algum visitante chegasse para interagir esse segurança ia falar ‘não, por favor. Não toque na obra’. E a gente entendia que esta seria a interação com o trabalhador. Um ano depois surgiu uma chamada para duplas de artistas de ativações da Pós-Graduação da UFRJ e aí conversamos para fazer este trabalho como uma performance. Esse foi o pontapé desnorteante, porque a gente não tinha ideia que ele se tornaria algo programático feito durante esses anos todos.  Mas, nesse dia, quando nos vestimos de terno e fomos lá, a gente percebeu essa tônica – eu diria – racial, e que também está entre raça e classe e que junta nossos corpos e que faz alguma coisa acontecer quando certas pessoas usam terno em um espaço como esse. 

Croqui do trabalho artístico realizado pela dupla (Foto: divulgação)

Nonada –  Quais especificidades vocês observam desses corpos vigilantes em Instituições de arte? Nos desenhos que vocês fazem, por exemplo, onde há muito da ironia, e de uma espécie de contra-manual, vocês dialogam com questões relacionadas às instituições de arte, que que embora talvez coincidam com o trabalho de vigilantes de outros espaços, são muito específicas dos museus. Como vocês chegam nestes gestos? 

Antônio – A maioria das nossas performances, quando a gente pensa e elabora elas, vem da nossa experiência de trabalho – uns 95% das performances que a gente já fez ou quer realizar vêm disso. Ou de longas horas em um espaço expositivo ou de acontecimentos que possam ter acontecido durante mediações, visitas, ou até mesmo em experiências em colaboração com outro vigilante no espaço. A gente vive e tenta elaborar isso como uma coisa a ser realizada. Tem uma vontade de evidenciar coisas que já existem nesses espaços, só que de alguma maneira reelaborando ela em uma prática de performance. A gente tenta, de alguma maneira, reorganizar esse gesto de que evidenciam a situação irônica no trabalho da segurança patrimonial. A gente pensa como determinados gestos dizem muito mais sobre a relação entre instituição, visitante e sistema de arte do que necessariamente a relação laboral. Mas é a partir da relação laboral que as relações de classe e racial são evidenciadas. 

Para dar um exemplo, eu estava vendo vídeos de um professor de matemática ensinado equação (risos), e tem uma parada que é colocar em evidência para conseguir resolver. Acho que tem um gesto nosso que é pegar ações mínimas dos seguranças como a gente ficar de olhos fechados, enquanto a [obrigação] é que o segurança não tire os olhos da obra de arte. Então a partir da ideia da vigília e do fechar o olho a gente coloca em evidência toda uma relação que se faz a partir de um gesto que é perpetuado e diz sobre outros assuntos. 

Nonada – Vocês costumam ter um tempo fixo para permanecer nos espaços durante as performances ou isso varia? 

Jandir – A gente prefere fazer performances em longa duração, quando podemos. Ou seja, tomar um dia inteiro de trabalho, desde a abertura até o fechamento da instituição – tirando uma hora de almoço como o trabalhador regular faria. Mas em tantas outras vezes a gente costuma fazer nas aberturas das exposições que a gente participa. A gente flerta com a performance de longa duração, a ideia de que é corpo ali, em prova, cansando, ao mesmo tempo que se torna também se torna objeto de interesse para ação artística-performática. 

Curioso porque tem uma linha de performance muito difundida através da Marina Abramovic, que fala das performances de longa duração por um viés talvez mais ‘transcendental’, ‘místico’, de algo que se libera do corpo e faz novas percepções para quem performa e quem assiste. Entendo que nossa performance de longa duração está ciente desse legado, mas ela vem muito embasada pela experiência do corpo trabalhando. Pela experiência que tivemos trabalhando e, que por consequência, é a experiência de muitas pessoas racializadas trabalhando usando o próprio corpo em posições mais cansativas, exaustivas 

Foto: divulgação

Nonada – Fiquei pensando na ideia que o Antônio trouxe sobre colocar relações institucionais em evidência. Como tem sido a relação do público com o trabalho nesses anos? Existe um estranhamento, por exemplo, quando vocês se colocam dentro de uma poça de água no museu. Ou quando seguram por horas um assento. Ou vocês, enquanto vigilantes, pedem para o/a visitante tirar uma foto de vocês com uma obra de arte. Como as pessoas reagem?  

Antônio – Isso varia muito. É muito louco, porque como imagem do Instagram, parece que os nossos trabalhos são muito evidentes, mas a grande maioria deles é muito invisível – no sentido de que não parece óbvio que você vai entrar, ver um segurança erguendo uma cadeira, e vai perceber ‘isso aqui é arte’. Na maioria das vezes, vai passar batido e acho que isso diz muito. 

Mas as relações são muito variáveis. Dependem muito da performance, da nossa proposição e como os públicos (no plural) são variados e vão responder. Quando a gente segura o assento, quase ninguém se importava. A gente ficava parado e vinham perguntar  ‘onde é a entrada da livraria?’. E a gente segurando uma cadeira. ‘onde é o banheiro?’. E a gente segurando uma cadeira. Eu respondia, onde era entrada, o banheiro, explico onde está tendo exposição. Isso aconteceu constantemente. 

A poça, por exemplo, já era um caminho diferente, porque é uma intervenção no espaço completamente forte. ‘Tem um homem ali no meio da água, vou perguntar o que ele está fazendo ali’. Aí era engraçado porque eu respondia ‘Estou aqui para que as pessoas percebam que está molhado’ e a pessoa só agradecia e ia embora. 

Jandir – Não tem uma instrução certa, cada um de nós pode responder de um jeito. Na performance da poça, tinha gente que me perguntava e eu respondia ‘me mandaram ficar aqui, senhor, não sei’. As crianças adoravam essa performance, foi grande o público dela. 

Antônio – Tem essa reação que é múltipla do público. Eu acho que também tem uma coisa forte que é pensar também em todas as relações de racismo que podem acontecer. É uma relação racista, de preconceito com quem você está enxergando ali como subalterno. Ao mesmo tempo acontecem coisas engraçadas, cômicas, meio The Office, mas também acontecem violências com relação aos públicos. Parece ser bobo, no sentido de ser impossível pensar que não é uma performance, mas normalmente isso não é uma performance, só depois que eu me dou conta. É muito forte isso. 

Jandir – O caso mais recente que me vem à cabeça é a performance da fotografia, que chamamos de ‘Por Gentileza’. Realmente, causou bastante estranheza. Uma das pessoas que eu abordei era uma mulher um pouco mais velha, estrangeira, branca, que falava espanhol. Eu vi uma fotografia na exposição da obra Trabalhadores, da Tarsila Amaral. Eu pensei que queria tirar uma foto perto dessa obra. Peguei o meu celular e perguntei para senhora se ela poderia tirar. Ela disse: ‘Claro, deixo eu tirar uma foto. Essa é a Tarsila do Amaral, ela é brasileira. Eu disse: ‘Ah, tá bom’. Não dei muita trela. Depois que ela tirou foto de mim, ela parou o primeiro funcionário da instituição que ela viu e disse para ele que eles precisavam orientar melhor as pessoas que trabalhavam lá. Ela disse para ele: ‘porque o segurança acabou de falar comigo dizendo que a Tarsila era espanhola’. E eu só tinha pedido para tirar uma foto. Foi um caso extremo, e muito curioso. Ela não estranhou, mas muitas pessoas estranharam essa abordagem da performance ‘Por Gentileza’. 

Nonada – Esses diálogos acabam revelando muitas violências sobre essas relações. Fico pensando que muitas vezes isso também aparece com outros trabalhadores, como os/as mediadores culturais do espaços. E nesse caso que você contou, ela também supôs que você não sabia quem era Tarsila. 

Jandir – Acho que o que mais vai me causa assombro nesse caso não é nem ela ter suposto que eu não sabia quem era Tarsila, ou coisa assim, mas é a despeito de ir falar com outro funcionário como se ele fosse quase a extensão da vida dela, como se a instituição como um todo fosse quase a extensão do ambiente privado em que ela vive. E ela não é um exemplo isolado. Isso me surpreende muito nesse perfil de visitante, que tem a coisa pública e as instituições culturais, e a cultura por consequência, como quase o quintal delas – e por consequência os trabalhadores também. 

Nonada – É um desejo de vocês que a discussão deste trabalho parta da atuação dos seguranças e vigilantes, mas que se estendam para outros trabalhadores da cultura, do dia a dia do museu? 

Jandir – Sim, eu entendo que a gente começou a usar os ternos não exatamente para tratar especificamente dos trabalhadores de segurança. Até porque a gente tem uma proximidade relativa em relação a isso, nunca exercemos essa profissão. Fazemos em aproximação por performance, e uma aproximação que se dá também por raça e classe. Eu entendo que ali nos ternos, na segurança das instituições culturais, a gente tem um símbolo que corresponde a toda uma cadeia de trabalhadores/as da cultura que se veem em posições precarizadas e, até diria, racializadas. 

São situações de trabalho que são quase heranças do período escravocrata. Eu vejo dessa forma, e isso toca outros setores da sociedade. A Amador e Júnior é uma forma de a gente tocar na situação de trabalho que atravessa certas pessoas da classe trabalhadora. 

Antônio – Quando a gente escolheu essas imagens, também foi muito uma relação de um senso comum. De pensar que, qualquer Museu, Centro Cultural, nessa experiência que a gente tem, vai ter um segurança em uma instituição. Nem todo lugar vai ter monitor. Mas todo lugar vai ter essa pessoa que a gente vai identificar que pode pedir informação, por exemplo. Acho que teve essa nossa vontade de pensar o que pode ser o comum a todas essas instituições culturais. Que é essa pessoa que está ali para salvaguardar os objetos, tomar conta do espaço. Não necessariamente das pessoas. Talvez por conta disso a gente opte por esses códigos, como o terno, a gravata. Mas tem muita coisa que é voltada para a relação da mediação cultural, porque, querendo ou não, é mais uma função que todo trabalhador que está ali no espaço exerce – mesmo que inconsciente. 

Nonada – Vocês recentemente fizeram uma performance no espaço Pivô em São Paulo, em que vocês apenas relaxam no momento de intervalo. Poderiam comentar sobre a elaboração disso? 

Jandir – Na Pivô, o que bateu primeiro foi nossa indisponibilidade de estar a todo tempo na Residência. Em segundo lugar, foi o questionamento de como as pessoas ocupam o ateliê porque as pessoas ocupam massivamente produzindo obras, e a gente não sabia o que fazer ali. Ficamos nos perguntando como ocuparemos as paredes e até colocamos alguns desenhos nossos. Mas acho que a ocupação foram esses três meses de convivência com o espaço, com as pessoas, mas também de tentar encontrar o que seria um espaço de ateliê para os seguranças. 

Então, pensamos na sala de descanso – que geralmente instituições culturais têm, espaços bem menores que aquele, mas com elementos muito parecidos. Uma mesa, uma televisão, um rádio, alguns cabides. Isso foi norteando como fomos ocupando o espaço. Muito do que usamos era da Pivô mesmo, que a gente deslocou para nosso lugar para criar um ambiente similar a uma sala de descanso. 

Antônio – Partiu de um desafio, porque nosso trabalho não se desenvolve nesse espaço de ateliê convencional. Nosso trabalho se desenvolve muito a partir de conversas e vivências no trabalho. Foi uma coisa bem maneira de exercitar o que seria um espaço de desenvolvimento no campo do trabalho. E veio à tona a ideia da sala de descanso, que é o lugar do encontro. 

Jandir – Acho que para gente foi abre uma divisa muito massa que é a de criar os ambientes para as performances também. Foi a primeira vez que nos vimos criando um ambiente para performar. A experiência institucional, do Pivô Pesquisa, também foi disruptiva para alguns visitantes. Eu lembro de um dia que eu estava ali descansando, com os pés para o alto e duas pessoas entraram, olharam o espaço e disseram ‘Ih amiga, acho que a gente entrou no lugar errado, vamos voltar aqui’. Tinha muita estranheza, ninguém parava o olhar. Raras pessoas. A maioria passava batido, se sentia incomodado. E essa disposição corporal mudava, não é comum, porque os ateliês da Pivô são feitos para serem visitados, observados. 

Nonada – Parece uma quebra de quarta parede, como cinema e no teatro, quando o espectador recebe o olhar de volta, uma quebra de expectativa. E no caso das instituições de arte, é como se essa parede estivesse muito sedimentada, são lugares feitos para serem ‘neutros’.

Jandir – O Antônio é doutorando em artes da cena. Foram muito importantes essas instituições que ele está envolvido porque nas conversas que a gente teve para construir o espaço de descanso foi ele que lembrou, muitas vezes, que existia uma quarta parede que poderia ser quebrada. 

Antônio – Tem muito a ver com a relação da cena, porque tem uma coisa que acontece nas performances que é a gente se coloca em relação com os públicos. Muitas vezes as nossas performances convocam o visitante a reagir com relação a cena. Como quando a gente coloca a cabeça na quina da parede, por certo tempo, para impedir que a parede caia. Essa cena que você vai se deparar te convoca a fazer alguma coisa perante o que você vê. Na teatralidade, é uma noção de resposta. Na relação sociológica da performance e da arte, tem a ver com essa construção de relações. 

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