Foto: Areal do Futuro/reprodução

Areal do Futuro: bloco de carnaval forma crianças sambistas no coração de um quilombo de Porto Alegre

Porto Alegre (RS) — “A gente dá oito giros pra direita, e oitos giros pra esquerda”, explica Antônia Astigarraga, de 9 anos, sobre o movimento que faz segurando o estandarte. Ela diz que não cansa o braço quando ergue por tanto tempo a bandeira. O sorriso que a menina estampa do início ao fim do ensaio confirma o que diz. Parece não pesar, ao contrário, parece flutuar ao balançar a saia rodada e vestir a camiseta amarela escrita ‘Areal do Futuro’.

É quinta-feira à noite e dezenas de pessoas observam das janelas de suas casas o ensaio do bloco. Outras dançam na batida da bateria e se aproximam conforme hits de diferentes gerações, como Vermelho, de Gloria Groove, e Ana Júlia, de Los Hermanos, começam a tocar. São meninos e meninas, de 4 a 15 anos, que orquestram a festa na estreita rua sem saída no bairro Menino Deus, em Porto Alegre, onde também fica o quilombo Areal da Baronesa, um dos 11 quilombos urbanos da cidade.

Titulado oficialmente pela Fundação Palmares em 2013, o Areal da Baronesa tem história no Carnaval de rua de Porto Alegre. O bloco do Areal marcou época entre as décadas 1930 e 1940 e ajudou a fundar os pilares do carnaval na cidade. A Imperadores do Samba, uma das grandes campeãs da capital, é exemplo derivado do bloco do quilombo. É da comunidade também a origem do primeiro Rei Momo negro de Porto Alegre. Adão Alves de Oliveira, o Lelé (1925-2013), reinou de 1949 a 1952, e ficou conhecido como “Rei Negro”.

Ensaio do Areal do Futuro (Foto: Anna Ortega/Nonada)

No início dos anos 2000, quando a prefeitura inaugurou o Porto Seco, sambódromo da cidade, as escolas de samba tiveram que deixar as regiões centrais da cidade, como a Ilhota, berço porto-alegrense do samba, e migrar para a zona norte. Mas alguns brincantes se recusaram a sair de seu território, um processo que também ocorreu no Areal. Enquanto a tradicional escola de samba da comunidade, a Integração do Areal da Baronesa, foi para o Porto Seco, um novo bloco nasceu no quilombo.

Cleusa Astigarraga, Mestre Paulinho, e mais um grupo de pessoas decidiram permanecer na comunidade e criar uma escola formada apenas por jovens artistas. Em março deste ano, completa 20 anos que o bloco Areal do Futuro existe, formando crianças e adolescentes da região com aulas gratuitas de instrumentalização e dança. De lá para cá, as oficinas iniciam em abril e encerram em dezembro de todos os anos.

No início, decidiram criar um projeto que era para ser apenas de ensino de percussão e sopro. “Fomos comprando, ganhando, e montando aos poucos uma bateria”, conta Cleusa, atual presidente, enquanto essa mesma bateria começa a se preparar para o ensaio do lado de fora da sede do Areal. O som das batidas vai aumentando, enquanto a voz de Tia Cleusa, como é chamada por todos, se mistura a do tambor. “Depois, surgiu a ideia de colocarmos uma bandeira para esse projeto. Foi surgindo assim o mestre-sala, e porta bandeira, as estandartes, os passistas mirins.”

Antônia, Laura Yasmin e Cibele se divertem como porta-estandartes do bloco (Foto: Anna Ortega/Nonada)

A participação no Areal atravessa diferentes gerações da família de Cleusa. É o bisneto, que é mestre-sala. A bisneta Antônia, que é porta-estandarte. As duas filhas que já foram porta-bandeira e estandarte. “É uma emoção cada vez que eles pisam na avenida. Eu até nem venho com eles porque eu tenho até medo de fiasco”, brinca. “Certo ou errado, eles estão sempre fazendo acontecer. E eles têm a alegria que é fundamental.”

Cleusa chega a se arrepiar quando fala do privilégio que é acompanhar as crianças crescerem. São muitas histórias de crianças que começaram com 4 ou 5 anos no Areal e hoje já estão vivendo suas vidas. “É um trabalho que fazemos o ano inteiro. Para mim não tem preço. Eles dão amor para a gente e a gente passa para eles. E o carnaval é isso. Samba, suor, alegria e amor. ”

Mas a Tia Cleusa está sempre por perto. No ensaio, é ela quem faz os últimos ajustes no figurino de Antônia e Cibele, estandartes do bloco. Ela relembra as coreografias e faz movimentos com os braços, embalada com as músicas, para coordenar as meninas durante o ensaio. “O único momento em que eu fico com vergonha é quando é para entrar para dançar, mas depois passa. Desde os três anos eu sinto esse frio na barriga”, confessa Cibele Oliveira, de 12 anos, que também faz parte do trio de estandartes. “O que eu mais gosto no Areal é das roupas, da tia Cleusa, de tudo”, resume a menina.

Cada uma das porta-estandartes entra em sequência, uma depois da outra, passa na frente da bateria e se posiciona ao lado em uma coreografia própria. Antônia, Cibele e Laura Yasmin se divertem a cada música que toca e, entre um intervalo e outro, reúnem-se para cochichar sobre o desempenho do grupo. Quando percebem que estão sendo vistas, riem de canto envergonhadas, e logo voltam à postura segura da dança.

Ao som de novos rumos

Não é coincidência que “futuro” seja parte do nome do bloco. O projeto construiu novas possibilidades para que crianças pudessem pensar em serem artistas. Tiago Kovalsky hoje é empreendedor, mas aprendeu, desde moleque, a se dedicar aos ensaios do Areal com os puxões de orelha de Mestre Paulinho. “Se a gente errava, o Paulinho nos chamava atenção – mas na amizade mesmo. Puxavam bastante a gente no colégio, pediam nosso boletim. Tinha que ir bem na escola para ir nas apresentações”, conta ele, que entrou no Areal em 2002.

Tiago, à esquerda, e Gustavo se formaram no Areal do Futuro e hoje integram o grupo principal do bloco (Foto: Anna Ortega/Nonada)

Os meninos crescidos voltam para tocar com o Areal, porque estar ali é estar em família. Tiago e Gustavo Menezes, de 27 e 26 anos, são os mais velhos presentes nesta noite de ensaio para a apresentação que farão em Santa Cruz do Sul. Ele conta que aprendeu não só sobre música no Areal, mas sobre humildade, comunidade, dedicação. Gustavo concorda: “Quando eu era mais novo, o Areal era onde eu me distraía, porque eu vinha para cá ensaiar. Fui gostando e aprendendo vários instrumentos.”

Faz 30 anos que Mestre Paulinho forma crianças e adolescentes. Ele não sabe dizer quando começou o dom de ensinar, mas lembra que quando ele era menino, o pai o “trancava” em uma sala de instrumentos da Imperadores do Samba, para que ele não ficasse correndo por lá. Deve ter começado aí a afinidade em puxar a bateria, que ele, com orgulho, fala que leva todos os anos para a rua, desde o tempo da antiga escola de Samba. Paulinho olha para cada um que está ali, já no fim do ensaio, e lembra de todos quando eram pequenos. Em um segundo, abre o celular e mostra a foto de vários, tocando no início dos anos 2000. “Olha aqui, esse é o Mikael pequeno, já na bateria”, mostra.

Mikael já conhece o bumbo desde pequeno e hoje toca repinique no bloco (Fotos: Anna Ortega/Nonada)

Repinique é um dos instrumentos que Mikael Juan da Rosa, de 13 anos, aprendeu no Areal. Ele é da “nova geração” e, assim como eles, se dedica e não perdem nenhum ensaio. “Eu estou aqui desde pequeno. Gosto de tocar todos os instrumentos, vou em todas as barcas. Venho sempre nos ensaios”, diz ele, que não fica nervoso quando se apresenta porque já está acostumado.

“É gratificante para nós ver os menores tocando, porque a gente vê que não deixou morrer”, reflete Gustavo. “A gente vê eles como se fosse nós todos lá atrás”. Um momento marcante para os dois amigos foi quando o Areal abriu o desfile de Carnaval de Porto Alegre, no Porto Seco. “É de geração em geração. Começou com os nossos pais, vem vindo nossos irmãos, primos, sobrinhos. A gente pode não morar mais aqui, mas abandonar o Areal a gente não vai”, resume Thiago.

Mestre Paulinho explica que um dos aspectos que mais lhe traz orgulho é formar músicos qualificados que, mesmo no início, quando tinham poucos recursos de estrutura, “já faziam o show”. Hoje, a escola vive um momento de consolidação enquanto projeto social. Com apoio, e inscrevendo-se em editais de fomento à cultura, o Areal entrou em uma nova fase, em que consegue remunerar todos os músicos nas apresentações e incentivar, cada vez mais jovens a seguirem neste “caldeirão cultural” – como o Mestre define o Areal.

“Passamos muito tempo, desses 20 anos, vivendo ‘nós por nós’. Quando começamos, a gente não sabia trabalhar com cultura. A gente sabia fazer, mas não estruturar. Agora estamos ganhando vários editais, muitos em primeiro lugar. É um reconhecimento do trabalho que durante muito tempo foi feito sem nada”, reflete Paulinho. Depois do ensaio, Gustavo e Tiago voltam para suas casas, agora não mais na rua do Areal. Mas uma certeza eles sempre têm: voltam o mais breve possível, porque não querem viver longe do som da bateria do Futuro.

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Repórter do Nonada, é também artista visual. Tem especial interesse na escuta e escrita de processos artísticos, da cultura popular e da defesa dos diretos humanos.
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