Como os falantes de línguas africanas e originárias do Brasil contribuíram para a formação da Língua Portuguesa? Em Latim em Pó, lançado recentemente pela Companhia das Letras, o professor e tradutor Caetano Galindo convida o leitor para um verdadeiro passeio pela história do Português, reconstituindo a sua história desde os primórdios, começando pela Europa e pelo latim. O título da obra é inspirado na música Língua, de Caetano Veloso. “Flor do Lácio /Sambódromo /Lusamérica / Latim em pó / O que quer / O que pode esta língua?”, canta o tropicalista.
Ao longo do livro, vamos compreendendo que o principal idioma falado no Brasil, como qualquer outra língua viva, está sempre mudando. “O tempo todo surgem modos alternativos de dizer alguma coisa, formas mais velhas vão desaparecendo, destronadas por novas variantes. E essa mudança, assim que começa a ocorrer, é sempre percebida como desvio, como aberração a ser evitada a qualquer custo. Mas o fato incontornável é que muito do que hoje é tido como refinado, elevado e sofisticado em algum momento foi visto como um desvio simplório e grosseiro da norma padrão”, avalia.
Capítulos como o “Pretoguês” – nomeado a partir do conceito de Lélia González – mostram que os negros escravizados, falantes de línguas como o iorubá e o quimbundo ajudaram a consolidar o Português, contribuindo para uma maior estabilidade em sua propagação pelo território. Segundo o autor, vários pesquisadores da área apontam que os falantes africanos em terras brasileiras teriam sido os responsáveis pela formação e difusão do português brasileiro.
Como ele revela no livro, a transmissão e a aquisição da aprendizagem de um idioma é sempre “imperfeita”, isto é, cada geração, ou cada indivíduo, acaba desenvolvendo uma versão ligeiramente diferente da língua falada antes. E isso ganha uma proporção mais intensa quando um grande contingente, como foi o caso dos africanos, precisa aprender um novo idioma – ainda mais em condições terríveis como a do período.
O autor cita o censo de 1872 como fonte e para evidenciar que o Brasil nunca foi um país branco. “É um absurdo supor que um grupo majoritário da população tem grande probabilidade de influenciar mais o futuro do idioma do que um grupo minoritário”, escreveu.
Outra passagem interessante da obra é o capítulo “Gerais” sobre as pouco conhecidas línguas gerais, que, segundo o livro, eram basicamente uma versão da língua tupi, apropriada pelo mecanismo colonial europeu. Conforme Caetano, à medida em que os colonizadores iam convertendo essa língua em um instrumento de comunicação na época, acabavam também alterando o idioma no cotidiano da fala.
Ele escreve: “Ainda que tenham se apropriado dessa língua para os próprios fins, com propósitos de catequização, aprisionamento e colonização, os portugueses de fato estavam empregando uma língua local, sem impor a sua de maneira imediata. Esse desvio, essa nova forma daqueles idiomas originários, foi se tornando uma verdadeira língua nativa do Brasil”.
Como exemplo, uma derivada do tupiniquim de São Vicente e do litoral paulista, ficou conhecida como língua geral do sul, ou paulista. A outra, derivada do tupinambá paraense, é a nheengatu, que continua sendo falada, e recebeu o estatuto de língua oficial do município de São Gabriel da Cachoeira, em 2002, no Amazonas. O autor pondera, entretanto, que a visão sobre essas “línguas brasileiras” pode ser vista de maneira muito diferente por muitos representantes dos povos originários, justamente por terem sido utilizadas como instrumentos de opressão.
Caetano aborda a trajetória do idioma sempre com uma linguagem didática e mais informal, lembrando uma conversa. “O que a tradução, e atuação fora da universidade acabou me dando foi uma preocupação muito grande em ser capaz de falar com públicos mais amplos. E uma capacidade de desenvolver melhor esse tom de ‘conversa”. Para ele, isso também é uma preocupação política. “Pois eu quero que o que a gente discute na universidade seja conhecido por mais gente, acho que isso é parte da minha responsabilidade como professor”, aponta.
O autor, que também é professor na Universidade Federal do Paraná, conta que o livro começou a ser escrito no dia 12 de abril do ano passado. “Foi depois de voltar da semana de comemoração do Dia Internacional da Língua Portuguesa, no Museu da Língua Portuguesa, onde eu dei a aula inaugural e acompanhei todas as atividades da equipe do Felipe Hirsch [diretor de teatro e cinema], que estava recolhendo material para o que viria a ser o documentário Nossa Pátria Está Onde Somos Amados”, diz.
Hirsch e Galindo se conheceram quando o diretor resolveu fazer uma peça a partir da música Língua Brasileira, de Tom Zé (e que depois acabou originando o documentário citado). “Comecei a me dar conta que talvez eu pudesse contribuir para esse projeto lindo com uma coisa mais minha”, diz. A primeira versão da obra foi escrita em apenas onze dias, mas o processo de edição e revisão foi mais longo.
Começando pela Europa e pelo latim, com especial atenção a Roma, passando pela Reconquista e pelo colonialismo na África e na América Latina, o autor traça um panorama amplo e compreensível da nossa língua materna. “Eu estou completando 25 anos de docência dessa disciplina na UFPR, e acabei meio que destilando o modelo do curso que estou dando hoje”, diz.
Nesse período, foi sentindo a necessidade de dar mais atenção aos ‘apagamentos’ da história do Português. “A pesquisa é o acumulado de leituras em todos esses anos. O que de fato mudou mesmo é a constatação da necessidade política de uma atuação mais direta, a percepção mais nítida de uma responsabilidade de cidadania, de responder a certos apagamentos e a certas simplificações que, hoje eu vejo muito melhor, decorrem de uma história muito embranquecida, e muito eurocêntrica, que a gente por vezes aceitou sem pensar, durante muito tempo”, conta.
Políticas e diversidade linguística
Para o autor, é importante que o governo tenha políticas de valorização da diversidade linguística no País. “Isso tem frutos, gera consequências. Parâmetros curriculares, compras de livros no Plano Nacional do Livro Didático (PNLD), fomento a iniciativas de pesquisa, revitalização e ensino de línguas indígenas e quilombolas. Tudo isso faz parte do repertório de possibilidades. Além disso, o reconhecimento de línguas indígenas e de línguas de herança, de migração, como línguas oficiais de municípios, por exemplo, que já vem acontecendo, tem capacidade sim de alterar a penetração dessas línguas na sociedade”, diz.
Estima-se que, atualmente, são faladas mais de 200 línguas no Brasil, e alguns pesquisadores já citam a presença de 300 línguas. A partir dos dados levantados pelo Censo IBGE de 2010, especialistas calculam a existência de pelo menos 170 línguas faladas por populações indígenas – muitas delas com grandes chances de desaparecer.
E se a língua está sempre mudando, é possível que ela venha a incorporar permanentemente a linguagem neutra, utilizada como ferramenta de inclusão de não-bináries? “É cedo pra saber. Hoje por hoje ela talvez pareça mais um sinal dos tempos, e de tempos de mudanças velozes e talvez passageiras. Acho que, como bandeira de uma causa e como sinalização ideológica, demarcador de posição, ela é muito eficaz, e é mesmo necessária hoje”, diz o autor.
Ele destaca que as alterações causadas no Português pela linguagem neutra são um fato como “discurso”, mas ainda estão longe de alterar a estrutura do idioma. “Acima de tudo, é bom lembrar que não existe, até onde se tenha podido verificar empiricamente, uma relação causal determinada entre formas linguísticas e realidade social. Há línguas sem marcação de gênero, como o turco, que são hoje empregadas por sociedades com imenso grau de discriminação. Há línguas com gêneros firmemente determinados, como o alemão, que são usadas em situação de inclusão um pouco maior. Daí eu dizer que a importância da linguagem neutra é discursiva. Ela mostra uma posição. E sinaliza pertencimento. E isso é muito importante. Mas ela, por si só, não tem (como nada mais tem) o poder de alterar de fato estruturas cruéis e encruadas”, explica.