Cárcere ou por que as mulheres viram búfalas (Foto: Rick Barneschi/Divulgação)

Conheça artistas que refletem sobre maternidade e tensionam expectativas sociais

Pense na imagem do rosto de uma mãe. Olhos, boca, nariz? Artistas responderiam diferente: Por que uma mãe não pode ter o rosto de uma búfala? Ou uma face meio humana e meio cobra? Ou de uma monstra? Ou um rosto-engrenagem? 

Essas são imagens criadas por artistas brasileiras – incluindo mulheres cis, pessoas trans e não-bináries – que pautam a maternidade em seus trabalhos artísticos. Talvez não seja coincidência que artistas de várias linguagens – audiovisual, teatro, pintura, fotografia – proponham uma nova ideia de rosto, já que a maternidade também é um processo de identidade. 

A historiadora da arte e curadora Carolina Rodrigues é especialista no tema e estuda as maternidades negras no campo das artes visuais. Ela se tornou mãe logo no início da graduação, mas demorou um tempo para tornar a maternidade uma pesquisa. Quando foi convidada para montar uma exposição sobre o tema, percebeu que encontrava apenas artistas brancas. 

“Quando você coloca a maternidade no pacote, todas as questões de classe e raça se tornam ainda mais díspares. Percebi que as mulheres que conseguiram ser mães e continuar produzindo arte eram majoritariamente mulheres brancas”, explica a pesquisadora. Inconformada em abrir uma exposição sem a presença de artistas negras, Carolina iniciou uma vasta pesquisa que atualmente é seu campo de estudo. 

O contato com trabalhos de artistas como Mariana Maia e Thaís Basílio trouxe a ela perspectivas ampliadas sobre a maternidade.“É uma ideia de maternagem que transcende o espaço físico, corporal e temporal. Não é só o parir, é o cuidado que está no campo subjetivo também.” 

Entre as exposições que já realizou sobre o tema está Dentro-Fora-Entre: o corpo da mulher (não) é uma casa, na Galeria Desvio, em 2019, no Rio de Janeiro. Em março deste ano, assumiu a curadoria de Maternagem: percepções sobre o nascer, uma exposição que reúne artistas com narrativas contra-hegemônicas sobre a maternar, aberta até junho, no Sesc Duque de Caxias, no Rio de Janeiro. 

A pesquisadora enxerga a maternidade como uma ponte de reflexão para outros temas, como o trabalho, a mecanização, o luto e as relações étnico-reais. E não apenas as mães tratam do tema, como é o caso da artista Bárbara Milano, que integra a exposição Maternagem. Como filha, ela convida a mãe Nazaré para criarem juntas uma obra que reflete sobre a partida da irmã, vítima de feminicídio. No estudo de Carolina, o que se percebe é que a construção de imagens sobre maternidade feitas por mulheres não-brancas costumam ser diferentes. 

“Tanto na cultura popular, quanto nas religiões afro, as figuras da mãe e da tia são figuras de poder intelectual, enquanto na cultura ocidental e colonial, a maternidade significa a perda de poder sobre o próprio corpo e direito de ir e vir”, explica. Estudar maternidade significa, então, estudar maternidades. 

O Nonada Jornalismo selecionou indicações de trabalhos de artistas que abordam a maternidade e que, cada uma à sua forma, tensionam expectativas sociais. A partir do audiovisual, tratando do luto pouco compartilhado de mães que perdem seus filhos durante a gestação.  Ou a partir do teatro, onde mãe e tia encontram forças na espiritualidade para viverem os dias. E nas artes visuais, indicamos artistas que lembram que mãe tem direito ao choro e ao gozo. 

Confira abaixo: 

Coroação (2020), de Mariana Maia 

A partir da performance, a artista Mariana Maia sustenta sua ancestralidade no Orí (cabeça). O registro transforma-se também em objetos e fotografias exibidos no espaço expositivo, e que mostram  a subversão de um um pano em um objeto de coroação, com tecidos e fitas sagradas. A pesquisa tem como inspiração a própria mãe da artista, Sonia Regina, uma mulher que trabalhou como lavadeira durante a vida. A homenagem à mãe e à própria ancestralidade é para Mariana como refazer os próprios passos e estabelecer uma ligação também espiritual que constitui a maternidade. 

Mães também gozam, de Bruna Alcântara 

Foto: divulgação

A escolha da bandeira como suporte para a frase “Mães também gozam” é uma escolha acertada, porque diz que este trabalho é também um manifesto. A artista e jornalista Bruna Alcântara reivindica o direito à sexualidade materna, vista como tabu socialmente. O mote para a artista foi a própria gestação, e a vivência de uma episiotomia durante o parto, um procedimento considerado como violência obstétrica se feito desnecessariamente. A perda do corpo e da autonomia quando se torna mãe, e o gozar não só como orgasmo, mas também como o gozo de direitos e prazeres é o manifesto do trabalho. O rosto que se reivindica aqui é de que mesmo mãe, ainda se é pessoa, mulher. 

Mãe Monstra, de Malu Teodoro 

Foto: divulgação

O rosto coberto de massinha de modelar verde é da artista Malu Teodoro, cuja investigação poética é ligada à experiência da maternidade. A brincadeira de ser uma “Mãe Monstra” surgiu com a filha Inaê, durante a pandemia, e tornou-se uma reflexão sobre ser uma mãe cansada, exausta, sem recursos, com medo, raiva, e também amorosa.  O projeto conta com cerca fotografias e textos, em que Malu desromantiza o ideal em torno da maternidade e, como em outros trabalhos da artista, evidencia uma mãe cujo corpo faz intervenções. Em outras séries, como “Você Está Morta”, Malu já havia bordado frases como “O seu feminismo acabou com nosso casamento” que marcam estas expectativas sociais em torno da maternagem.  

Cárcere: Ou Por que as mulheres viram búfalas, de Dione Carlos 

Foto: divulgação

Com texto da atriz e dramaturga Dione Carlos, Cárcere: Ou Por que as mulheres viram búfalas evoca Iansã, Rainha Oyá, deusa guerreira dos ventos, das tempestades e do fogo, como a grande Mãe que protege, acolhe e guia a vida de outras duas mães, as personagens Maria dos Prazeres e Maria das Dores. O espetáculo da Companhia Teatral de Heliópolis, em São Paulo, conta a história de uma mãe e tia que têm suas vidas marcadas pelo encarceramento dos homens da família. No microcosmo apresentado no palco, as mulheres buscam romper os ciclos de opressão e amparar seus modos de existir nos saberes ancestrais. 

Cadê a mãe dessa criança, de Priscilla Buhr 

Foto: divulgação

A artista recifense Priscilla Buhr entrevistou 44 mulheres mães sobre como elas se imaginavam se não tivessem sido mães.  O projeto começou após uma experiência da artista, quando recebeu o diagnóstico ‘Não Reagente’, de que não poderia ser mãe. Ali, inaugurou uma série de questionamentos sobre as imposições para as mulheres cis, dentro da lógica heternomativa e patriacarl. No meio da pesquisa, Priscilla teve seu filho e também começou a questionar-se sobre a inclusão de crianças nos espaços de artes, como protagonistas.

Incompatível com a vida, de Eliza Capri

Foto: divulgação

O documentário “Incompatível com a vida”, dirigido pela jornalista e cineasta Eliza, conta histórias de mães que receberam o diagnóstico de uma gestação em que os bebês não sobrevivem fora da barriga. A cineasta conta a própria história e de outras mulheres que precisaram enfrentar lutas emocionais e institucionais para encontrar o amparo legal para a interrupção da gravidez.

Colo, de Thais Basilio

Foto: divulgação

Thais Basilio pinta a mãe-maquina e reflete sobre a automatização da maternidade e as obrigações que, assim como as máquinas, espera-se que as mães realizem. Até mesmo o colo, ou a ideia de uma docilidade e amorosidade, é tratado com uma das funções que precisam ser perfeitamente e periodicamente cumpridas. A obra faz parte de uma série em que a artista pesquisa o acúmulo de tarefas domésticas e profissionais, assim como as cobranças estéticas ao corpo dessas mulheres. Ela evidencia essa mãe-maquina que nunca para de funcionar, que tem um manual a seguir, que precisa performar com eficiência e sempre produzir. É também uma crítica aos sistemas, como o capitalismo, que se beneficiam deste modo de ser. 

Nunca mais serei a mesma, de Alice Lanari 

Quatro mulheres do México, Honduras, Brasil e Argentina, encontram-se no documentário de Alice Lanari. A cineasta conta as histórias de mulheres, três delas mães, que tiveram suas vidas marcadas pela violência de gênero. Lorena, Brandy, Ana e Cecília têm suas estratégias de sobrevivência, uma a partir de origens, idades e cores de peles distintas. O filme Nunca mais serei a mesma trata das lutas feministas e das redes de cuidado que se formam para proteger as mulheres, seja em uma favela do Rio de Janeiro, ou no centro de Buenos Aires. 

Desperta, de Nazaré Soares  

Foto: Bárbara Milano/divulgação

O trabalho da artista visual e professora cearense Nazaré Soares traz para perto as bonecas Abayomis, símbolos de resistência, que em Iorubá significam ‘encontro precioso’. A espécie de véu remete a uma leveza flutuante própria da infância. A obra foi criada em meio a um luto pela perda de Beatriz, filha de Nazaré, vítima de um feminicídio. A performance é um movimento de cura, em que busca compreensão e acolhida para atravessar a dor de perder uma filha. As fotografias são de Bárbara Milano, também sua filha, que une-se à mãe em diversos trabalhos para criarem juntas. 

MÃE, de Bárbara Milano 

Foto: divulgação

Também como tentativa de elaboração de uma perda, a irmã e artista Bárbara Milano trança o cabelo da mãe, e depois ela faz o mesmo, em uma performance intitulada MÃE. O gesto de carinho é uma constante no trabalho da artista, que apesar de não ser mãe, tem a maternagem como tema no qual se debruça. Mais recentemente, ela investiga também a Terra, na obra Cy, palavra tupi guarani para mãe primordial, abordando temáticas relacionadas à sustentabilidade e as sabedorias originárias.

Metamorfose, de Ilana Bar  

Foto: Ilana Bar/divulgação

Ilana Bar já se auto retratava desde o início de seu trabalho fotográfico. Em Transparências do Lar, a artista retrata sua família incluindo-se nos enquadramentos. Quando descobre a gravidez, ela passa a registrar o próprio corpo, brincando com os espelhos e com uma espécie de surrealismo que rondam suas imagens. Ilana documenta a transformação física e emocional de uma gestação durante a pandemia. 

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Repórter do Nonada, é também artista visual. Tem especial interesse na escuta e escrita de processos artísticos, da cultura popular e da defesa dos diretos humanos.
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