Vinicius Theodoro/Alfaguara

Livro da escritora Jamaica Kincaid reflete sobre a diáspora africana nas ilhas caribenhas

Ter perdido a mãe no momento em que veio ao mundo é o fato que dá origem ao livro A Autobiografia da minha mãe (Alfaguara, 2021), da escritora caribenha Jamaica Kincaid. A coincidência entre nascimento e morte funda a história de Xuela Claudette Richardson, uma mulher negra, filha de mãe caribenha e pai escocês e africano, que vive na ilha de Dominica.

Lançado pela primeira vez em 1996, e tardiamente traduzido no Brasil, o livro da professora de Harvard nascida em Antígua e Barbuda e radicada nos Estados Unidos reflete sobre a Diáspora Africana e as heranças da colonização francesa na história de alguns países caribenhos. Xuela, protagonista e narradora, se divide entre os “vencidos” e os “conquistadores”, como uma cisão que permanece no tempo e que não serve para os países, mas às próprias pessoas, principalmente, as que integram seus núcleos familiares e afetivos.

A obra trata de uma menina que torna-se mulher a partir de uma coleção de perdas e ausências.  Sente-se aprisionada e não oculta seus desejos mais íntimos, de prazer, de ira, de vingança, porque foi isso  – o que está apenas visível para si, que lhe restou. Xuela guarda como um tesouro e, descobre durante a narrativa, que é o que tem a salvaguardar.  Se enquanto criança não teve quem a cuidasse, já que mudou de casas e tutores diversas vezes, teve que olhar por si, desenvolvendo uma autonomia que, pelo menos em suas relações, poderia ser transgressora. Não receberia ordens, seria dona do próprio desejo. 

A narradora segue em uma busca do que nunca viu, como o rosto da mãe – que, a partir da Diáspora Africana, pode ser pensado de forma ampla, como a terra-mãe, ocultada da visão. Em sonho, consegue vê-la, mas apenas um pedaço, apenas seus calcanhares. A autora, volta e meia, repete que perdeu a mãe ao nascer, como se quem lesse estivesse escutando pela primeira vez. O retorno ao que se sabe parece uma escolha textual, tornando esta uma “prosa cantante”, mas também uma lembrança de que aquela memória atravessava todo e qualquer acontecimento de sua vida. Algo do qual não consiga desfazer-se. 

Eles se despediram e voltaram para sua casas, onde tomariam uma xícara de chá inglês, embora soubesse muito bem que nada parecido com esse chá crescia na Inglaterra, e mais tarde, naquela noite, antes de irem para cama, tomariam uma xícara de chocolate inglês, embora soubesse muito bem que nada parecido com cacau crescia na Inglaterra

O livro, segundo romance da autora traduzido para o português, é também repleto de perguntas, que facilmente viriam da boca de uma criança: “O que faz o mundo girar?”, ”O que é o amor?” “O que faz o mundo voltar contra mim?”, “De que cor é a noite?”.  Ao crescer, a narradora se depara com a falta de referências sobre amar, inclusive do pai, que embora vivo, é incapaz de preencher este lugar. O pai, inclusive, é um desconhecido, um enigma. 

De todas as pessoas que um dia foram responsáveis por cuidar da menina, Xuela teve como constante o desamor e a opressão. Nestes desencontros, é reconhecível que a autora fala de uma colonização que está espalhada nos gestos, nas posições dentro das relações, nos desafetos e na conquista que, continuamente tentam fazer, do único território que seria seu – o corpo. 

A narradora é uma criança, depois menina, depois mulher, habituada com a noite e com o que chama de procissão de tristeza. Nada a assusta o suficiente para barrá-la de seguir vivendo e este, talvez seja um dos pontos mais cativantes do livro. O formato da narrativa, sem diálogos diretos, traz a sensação de que estamos entranhadas em seu pensamento – um longo pensamento. É uma narrativa silenciosa e, ao mesmo tempo, profundamente barulhenta, na qual só temos acesso aos acontecimentos a partir de uma única lembrança, de uma única voz. É também como se, ao passar das páginas, sua fala ficasse mais firme, mais certa de si. 

“Ver o meu rosto era o que me confortava. Comecei a me cultuar. Meus olhos pretos, em forma de meias-luas, me encantavam. Meu nariz, metade achatado, metade não, como se feito meticulosamente dessa forma, eu acha tão que o considerava um padrão que o nariz de gente que eu não gostava era incapaz de atingir. Eu adorava a minha boca: meus lábios eram cheios e largos, e quando abri a boca eu conseguia ingerir muito prazer e dor, acordada ou dormindo […] Meu próprio rosto me confortava, meu próprio corpo me confortava.”

O embate entre idiomas, o inglês e o “Patoá-francês”, é outro sinal das fronteiras divididas da ilha Dominica. Há quem fale apenas um, ou os dois, mas a escolha da língua nunca é arbitrária na narrativa. Escolher o idioma do colonizador ou dos “ilegítimos” significava o grupo ao qual a pessoa pertencia. Os momentos em que poderiam falar apenas o dialeto “Patoá-Francês” eram os de liberdade. “Patuá”, que é, por si, uma significativa, que significa um amuleto de proteção espiritual de origem africana. 

O livro mostra como a colonização se pretende a configurar gestos, como a ida à igreja. Também aborda como a lógica do enriquecer em cima da infelicidade e do empobrecimento de outros. O império estava, inclusive, nos nomes, como do pai de Xuela, Alfred, mesmo nome de um rei inglês. Enquanto isso, o mar que circunda a ilha margeia a história e, sempre se faz presente. “O mar azul, o oceano cinza”. 

Xuela é uma personagem que se autoriza a pensar cru, muitas vezes de forma infantil, sobre o desfecho dos acontecimentos. Apenas depois de 50 páginas conhecemos o seu nome, que era também o nome de sua mãe. Mas sua personalidade aparece em cada linha. Uma mulher analítica, que não hesita em apontar as prisões alheias, já que conhece muito bem as suas. 

Viver desde cedo próxima à dor parece ter tornado Xuela alguém com olhos apurados para a falta de autenticidade e para a relação de servidão que seus semelhantes vivem. Aprendeu também a ler o que dizem os silêncios das pessoas. Ao longo do livro, pergunta-se: O que pode uma mulher? Em especial, uma mulher negra, da Dominica, órfã, e irreverente. “Não sou dona de nada, não sou homem”, diz.  A autora fala a partir de metáforas, construções de palavras que trazem beleza ao que, muitas vezes, é indizível. Consegue definir dor, a partir da imagem do sangue de um aborto, ou do futuro, como um quarto sem chão ou teto. Ou, então, traz a imagem de peneirar o passado, muito significativa ao livro. 

Para mim, a história não era o passado: era o passado e também o presente. Eu não me importava com a minha derrota, só me importava que ela tivesse que durar tanto; eu não enxergava o futuro, e talvez assim devesse ser. Por que alguém enxergaria uma coisa dessas? E no entanto… me entristecia saber que eu não olhava adiante, sempre olhava para trás, às vezes olhava para o lado, mas sobretudo olhava para trás. 

A obra mostra alguém que precisou crescer sozinha, amadurecer cedo, descobrir seus cheiros, seu corpo, advinhar significados, pois ninguém havia lhe contado. “Testemunhar a si” talvez essa seja uma boa síntese, ou uma outra possibilidade de leitura do que seria uma autobiografia como essa. Xuela não se tornou mãe. A decisão é um ato de transgressão, que parece também reverter o que foi o início de sua história. O sentido do título do livro começa a se refazer à medida que a leitura avança. O que antes era uma certeza – deve esse livro falar sobre a mãe de quem narra – torna-se dúvida, como se o filho que nunca veio ao mundo pudesse apontar: “essa é a Autobiografia da minha mãe”. A narrativa fala que, diante da perda, o que se faz é voltar a si – e essa é a redenção a ser testemunhada. 

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Repórter do Nonada, é também artista visual. Tem especial interesse na escuta e escrita de processos artísticos, da cultura popular e da defesa dos diretos humanos.
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