Ilustração de Maia Kobabe (Foto: reprodução)

Banido nos EUA, HQ ‘Gênero Queer’ aborda a transição de gênero desde a infância

Por que meninas não podem andar sem camiseta por aí? Por que os pelos do corpo são vistos como um problema apenas para um gênero? Tem que namorar na adolescência? Escrito pelu autore estadunidense Maia Kobabe, o livro Gênero Queer (Tinta da China, 2023) conta as descobertas de identidade de gênero e de sexualidade de Maia, ume adolescente não-binárie que vive na Califórnia, no início dos anos 2000. 

O livro recém traduzido para o português por Clara Rellstab chega ao Brasil após ser considerado a obra mais banida e censurada dos Estados Unidos em 2022, segundo a American Library Association (ALA). A HQ foi proibida em pelo menos 56 escolas e bibliotecas, após o vídeo de uma mãe atacando o livro viralizar e isso se tornar central no discurso de políticos republicanos do congresso estadunidense. Depois, a  ALA declarou o recebimento de 1269 pedidos de restrição do livro, originalmente lançado em 2019, em apenas um ano. 

Mas o que assusta tanto os conservadores? Gênero Queer é um livro aberto, honesto e sem tabus sobre o processo de entender-se transgênero desde a infância. Escrito em linguagem não-binária, o livro apresenta os questionamentos, as inquietações e a intimidade de alguém que desde cedo não se encaixa na cis-heteronormatividade – mesmo que ainda não saiba o que isso significa. 

Página do livro Gênero Queer, de Maia Kobabe (Foto: reprodução)

 É interessante observar que os quadrinhos, apesar de serem guiados pela vivência de ume jovem não-binárie, apresenta dúvidas que são presentes na adolescência de modo geral. Maia adentra cada etapa da construção de uma identidade, seja ela qual for: aparência, roupas, gostos, música, amizades, relações, família, escola, faculdade. 

Em entrevistas, Maia costuma dizer que escreveu o livro para seus pais, e também para outras pessoas trans jovens que estão em processo de descoberta de si. A escrita é bem-humorada, rende risos pela sinceridade com que elu expõe seus pensamentos. Elu conta que já teve mais de quinze diários durante a vida, e o Gênero Queer tem mesmo esse tom confessional, de quem escreve e desenha para entender o seu lugar no mundo. Essa é uma das belezas do quadrinho, porque longe de ser uma fórmula, um manual de instruções sobre a transgeneridade na infância, ele é uma história singular e cheia de perguntas, que revelam que o caminho não é nada linear.  

Página do livro Gênero Queer, de Maia Kobabe (Foto: reprodução)

Como acontece com outres jovens LGBTQIA+, Maia experiencia o deslocamento. Não se sente pertencente à escola que estuda, até o momento em que encontra um grupo Queer. Assim como elu, vamos descobrindo junto o significado de cada letra da comunidade, e ao desvendar as possibilidades de ser, Maia passa a ver que mesmo dentro da transgeneridade, existem muitas identidades. Um momento marcante do livro é uma dupla de páginas, em que entramos literalmente no looping de pensamentos delu e somos levades a virar o livro de cabeça para baixo mais de uma vez para ler o que está escrito. 

O gesto de “virar de cabeça para baixo” é simbólico, porque há também um enorme didatismo no livro. Na tentativa de compreender o que sente e deseja, Maia acaba mostrando através de imagens novas formas de compreender questões relacionadas a gênero. Em seu pensamento, simplifica pensar em metáforas – como ao se desenhar enquanto uma planta brotando, ou quando se imagina como tendo um irmão gêmeo, para representar que tinha duas partes de dois gêneros em si. Outra metáfora que elu utiliza para falar sobre sua não-binariedade é a sua representação enquanto uma balança – de um lado, atributos que lhe foram dados ao nascer; de outro, os desejos de como gostaria de ser. 

Os conservadores nos Estados Unidos acusam o livro de conter conteúdo sexual, porém o que provavelmente os desacomoda é uma sexualidade tratada de forma centrada em experiências Queer. Maia nos revela sua vasta imaginação sobre sexo e relacionamentos (elu se identifica enquanto assexual) e não poupa detalhes sobre o dia em que experimentou um dildo pela primeira vez – e não gostou, porque era diferente de sua imaginação, ou então suas primeiras vezes com a masturbação. O livro é explicito, porém fica longe de ser erótico. Ele trata da descoberta da sexualidade, assim como diversos outros tentaram fazer, porém traz para as imagens uma rota de vivências dissidentes, sem esteriótipos ou moralismos, ainda pouco vista em livros para o público infanto-juvenil. 

Página do livro Gênero Queer, de Maia Kobabe (Foto: reprodução)

Maia chama quem lê para fazer parte de sua transição e isso se dá, principalmente, através da linguagem. Durante quase todo o livro, elu se chama por pronomes femininos – já que desconhecia outros. Após fazer amizade com uma pessoa não-binária, que utiliza os pronomes neutros Spivak (e, sie e hir), que ainda não têm tradução para o português, Maia passa a utilizá-los progressivamente para falar de si.

Faz sentido que isso aconteça mais para o fim da HQ, porque ao mesmo tempo em que explica para amigues e para os pais, que essa é a forma como elu gostaria de ser chamade, é como se dissesse também para nós. Maia mostra que ao abrir o livro, conhecíamos uma personagem. Ao fechar, elu era outre, e por sorte, o caminho até chegar ali estava muito bem registrado em textos e ilustrações. 

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Repórter do Nonada, é também artista visual. Tem especial interesse na escuta e escrita de processos artísticos, da cultura popular e da defesa dos diretos humanos.
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