Foto: Anna Ortega/Nonada Jornalismo

Criador do Gueto HUB, Jean Ferreira alia cultura à Justiça Climática no Pará

Roberta Brandão, especial para o Nonada Jornalismo

Belém (PA) — É no Jurunas, bairro localizado na periferia de Belém, repletos de ruas com palavras de origem indígenas como as ruas “Caripunas”, “Apinagés”, “Tamoios”, “Timbiras” , “Mundurucus” e “Pariquis” que Jean Ferreira ou Jean do Gueto nasceu, cresceu e resiste. O território, na periferia de Belém, foi onde o ativista implementou, primeiramente no ano de 2018, um projeto de acesso aos livros em áreas periféricas, chamado de Sebo do Gueto, e posteriormente, no ano de 2020, o coworking comunitário nomeado de Gueto Hub e em 2023, a COP das Baixadas, que debateu Justiça Climática nas quebradas da cidade.

 A casa que acolhe a biblioteca, o café e  a galeria de arte do Gueto Hub faz parte da memória afetiva dos moradores daquela área. O espaço que fica em frente ao canal da Quintino, e tem em seu interior um ar moderno e acolhedor,  já foi ocupado outras vezes pela comunidade. Em anos anteriores, foi uma escolinha e um centro comunitário. 

Essa memória afetiva por esse território que acolhe o Sebo do Gueto e o Gueto Hub também atravessa a trajetória do Jean. A avó lavou roupa nas águas do canal da Quintino,  quando ele ainda era um igarapé possível para banho. O irmão mais velho, chamado de Guido, foi aluno na escolinha de bairro. E a mãe, Jeane Ferreira da Silva, conhecida como Marly, foi professora e liderança comunitária quando ali funcionava a associação dos moradores. 

O pai, pedreiro e artista, Gerson Willys da Silva, foi quem disse que seria possível reformar e construir um espaço moderno, bonito e acolhedor para comunidade. Foi seu pai quem idealizou e construiu a identidade do Gueto Hub. Posteriormente, arquitetos que visitaram o espaço o identificaram como uma referência ao conceito “Ética da estética”, que em resumo, é uma corrente de arquitetura que se preocupa em unir estética, ética e arquitetura para construir o belo e o bem. “A casa estava torta e foi o meu pai que disse que seria possível restaurar o espaço. O meu pai fez tudo isso sem saber desse conceito. Meu pai realizou inúmeras obras no centro da cidade, as quais ele nunca pôde acessar como público. Então, aqui ele executou tudo o que sabia para todos terem acesso”, conta Jean. 

Gerson Willys da Silva, no ano de 2022,  foi realizar um serviço em uma empreiteira de um dono conhecido, mas não voltou pra casa. Faleceu em um acidente, devido à falta de segurança no trabalho. Mas não antes de deixar um legado arquitetônico nas ruas do Jurunas. “O meu pai começou  a entrar na história, né? Ele falou que dava para reformar esse lugar, ele fez tudo de graça. Então foi por isso que a gente conseguiu fazer o que fez, porque foi muita mão de obra gratuita do meu pai, que não está mais com a gente. Ele fez tudo com muito esmero e é por isso que ficou um lugar tão bonito assim. E acho que a mensagem que ele deixa é que não é porque é na periferia que precisa ser de qualquer forma”, relata Jean. As obras foram possíveis no espaço devido à aprovação no edital Periferia Que Faz, contemplado no ano de 2020. 

Foto: Anna Ortega/Nonada Jornalismo

Durante a entrevista ao Nonada, as falas do ativista sempre estiveram permeadas por outros nomes, companheiros de jornadas, sobretudo os familiares. “O Gueto Hub já se modificou totalmente através das pessoas que foram chegando e isso é interessante. Por que eu não convidei ninguém, especificamente, só a minha família e alguns poucos amigos. As pessoas foram chegando e pegando no trabalho e isso foi moldando o espaço. Não necessariamente eu pensei em tudo”, explica.

Jean tem 29 anos, é graduado em engenharia  cartográfica, atualmente trabalha na Secretaria Municipal de Meio Ambiente, e também atua nas atividades do Gueto HUB. “ Eu faço mapas, não tem muito a ver. Eu faço o Gueto e atuo na minha profissão . De alguma maneira eu tento fazer os dois”. Entretanto, foi a partir do ingresso da graduação na Universidade Rural da Amazônia (UFRA) que o ativista encontrou o conhecimento sobre empreendedorismo criativo, negócio de impacto social e também a questão ambiental.

 O apelido @JeandoGueto, como ele ficou conhecido nacionalmente, surgiu no mês de setembro de 2022, quando Jean foi chamado para ser o porta-voz da setorial do Livro, Leitura, Literatura, Bibliotecas e Oralidades do Pará para falar com o então candidato à Presidência Luiz Inácio Lula da Silva. “Só de um tempo para cá que eu passei a me chamar de Jean Do Gueto, desde quando eu fiz um discurso para o Lula e na hora de me chamar. Eu não sei se erraram lá e aí falaram:  vem pra cá Jean Gueto! Aí desde então troquei o meu nickname. Eu passei a assinar algumas coisas para as quais as pessoas me consideram um produtor cultural, não sei alguma coisa assim artística, aí eu coloco Jean do Gueto. Mas no geral eu sou Jean Ferreira”, explica o ativista.  

O evento  ao qual Jean se refere foi uma plenária que reuniu artistas de vários setores da capital paraense e ocorreu no Teatro da Paz, tornando-se um dia histórico pelo nível da mobilização da categoria. O evento contou com a presença do poeta Paes Loureiro, Juraci Siqueira, Eloy Iglesias e muitos outros reconhecidos pelo trabalho com a cultura no estado do Pará.

Fomentando a comunidade com cultura
Foto: Gueto HUB/reprodução

A falta de acesso a espaços de leitura nas periferias foi o que moveu Jean Ferreira a criar, em 2018, o Sebo do Gueto no bairro do Jurunas. A ideia que começou com uma prateleira de livros  tornou-se a principal renda da família e se transformou em uma franquia social presente em 7 cidades do Brasil. “O Sebo do Gueto nasceu porque eu queria ler mais livros. Então, eu vendia os livros para comprar outros livros para eu pudesse ler. A iniciativa tornou-se uma coisa séria. Hoje tem cinco pessoas que dependem do Sebo do Gueto, de lá da redondeza, que vivem desse negócio”, conta Jean. O Sebo do Gueto fica em frente ao Gueto Hub, do outro lado da rua, que veio alguns anos mais tarde.

Em 2019, Jean criou o clube do Gueto, uma plataforma gamificada que dá livros de graça e incentiva a leitura e o debate sobre as leituras. Para ter acesso aos livros, os participantes precisam interagir com a plataforma. Pode ser através de debates sobre alguma leitura, resenha, exposição de impressões após o término de um novo livro. Desta forma, o participante vai acumulando bookcoins, espécie de moeda virtual usada no clube, que posteriormente podem ser trocadas por livros. Em 2020, antes da pandemia, o Sebo promoveu o primeiro prêmio literário do Jurunas.

O Sebo do Gueto foi o caminho para a criação do Gueto Hub. A ideia, segundo Jean, partiu do irmão mais velho, Guido. “Ele falou assim: ‘poxa, tá no Brasil todo, mas aqui no Jurunas está muito muito pequeno, eu acho que dava para tu fazer mais’. E eu pensei, realmente eu acho que eu consigo um recurso. Foi nesse “start” dele que eu passei a correr atrás da casa do outro lado da rua”, conta Jean. 

O Gueto Hub é um espaço integrado de livros, empreendedorismo e memória. “O Sebo do Gueto já trazia quem lia, queríamos trazer quem não lia”, diz.  A casa onde funciona o coworking comunitário conta com um café, biblioteca e uma galeria de arte chamada de Museu D’água, na qual imagens do canal da Quintino integram uma exposição permanente. O espaço é cedido para o Gueto Hub, como foi com a escolinha onde os alunos pagavam um valor simbólico, e para o antigo Centro Comunitário. Entretanto, a perspectiva de aquisição do local pela equipe, formada por sete pessoas, ainda é um sonho distante por questões de verba.

A quebrada precisa debater mudanças climáticas
Bairro do Jurunas (Foto: Anna Ortega/Nonada Jornalismo)

Foi a relação do Gueto Hub com os igarapés do bairro (que com o tempo deixaram de ser balneáveis e viraram esgotos abertos), que aproximou a iniciativa não governamental para as pautas ambientais. A relação inicial da galeria de arte Museu D’Água com aquilo que um dia fora um igarapé era voltada mais para a preservação de memória e não  exatamente a respeito do meio ambiente. 

Com o passar do tempo, ficou perceptível a aproximação dos temas, como conta Jean. “A gente fez um projeto lá de pintura que contava histórias através dos muros e a gente também reforçava a importância de ter de volta os igarapés que ainda são recuperáveis nesta cidade, na região metropolitana. Então a gente não sabia o quão associado a pauta climática o Gueto Hub estava. A gente pautou isso depois de muitos convites”, explica. 

Jean conta como foi importante participar na COP27, no Egito, em 2022. “A gente vê esses rios como uma forma educativa de conectar as pessoas da Amazônia. Então outras organizações do clima passaram a nos enxergar como um potencial difusor de conhecimento. A gente nunca se sentiu tão dentro dessa temática, até ser convidado para ir ao Egito. Aí não teve mais jeito”, conta o engenheiro cartógrafo.

A Conferência das Partes é o encontro de países que compõem a ONU para debater sobre mudanças climáticas e encontrar soluções de caminhos de preservação do meio ambiente. Jean foi convidado pela Palmares Lab – um coletivo que busca levar representatividade para espaços de influência e decisão, com foco em pessoas negras, indígenas, amazônidas e periféricas –  para  integrar a Delegação Palmares e ser um representante da Amazônia na COP27. 

Foto: Anna Ortega/Nonada Jornalismo

A participação ajudou o ativista a desenhar outro projeto: A COP das Baixadas, que foi realizada no começo do ano de 2023. A ausência da população do Egito no evento acendeu em Jean a necessidade da participação das comunidades nestes debates. Afinal, são as periferias, áreas rurais e locais afastados dos grandes centros urbanos  que comumente sofrem maiores impactos em catástrofes do clima.

A COP das Baixadas acabou se tornando uma preparação para a COP30 que será realizada em Belém no ano de 2025. O tema já não é completamente desconhecido da população, como explica Jean. “Foi pelo fato de tomar conhecimento de um evento que a gente não entendia e que estava falando sobre nós, que levou a gente a começar a desenhar a COP das Baixadas”, conta.

Sobre Belém receber a COP30, Jean alerta sobre a importância da participação popular e da fiscalização das obras que serão realizadas para a cidade receber o evento. “A COP das Baixadas  nasceu primeiro como um caráter pedagógico, antes da gente saber do pronunciamento do Lula [que propôs Belém como sede]. Mas quando a gente soube, de primeira mão, lá no evento no Egito, isso modificou, a gente viu que deveria ser um evento mais importante ainda, então a gente passou a ser uma articulação também. Não era mais pedagógica ou formativo. Não era mais só pra aproximar a periferia desse assunto, que vai ficar cada vez mais transversal. Meio ambiente e clima vai ficar cada vez mais transversal em todas as áreas. Inclusive nas periferias, que são as mais afetadas pela crise climática”. 

O próximo passo da COP das Baixadas é atuar também com advocacy, dialogando com diversos setores para conscientizar sobre a importância de lutar pela Justiça Climática e pelo protagonismo das periferias no tema. “Vamos fortalecer a COP  também como uma articulação, para que seja possível negociar com os gestores públicos, prefeitura,  governo do estado, pra gente discutir também participação  e controle social nessas obras que vão chegar na cidade. É imprescindível que a população esteja presente, né? Como fiscal e como participante.”

Roberta Brandão

Jornalista e mestre no Programa de Comunicação e Cultura da Universidade Federal do Pará. Atua há dez anos como assessora de comunicação cultural e fotojornalista. Produtora Cultural, idealizadora do Baile das Sereionas, uma festa de carnaval Corpo Livre, anti-gordofobia e antirracista. Se reconhece como ativista da cultura popular. É carimbozeira, batuqueira, mãe do Gaitán e mulher AfroAmazônida.

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