Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Nova proposta do Museu do Ipiranga busca contar a história do Brasil para além de uma visão elitizada

Vitória Drehmer * 

Após nove anos fechado para visitação, o Museu do Ipiranga, o mais antigo de São Paulo (SP), construído em 1885, e um dos mais importantes para a cultura e história do Brasil, reabriu para o público em setembro de 2022. Desde então, mais de 400 mil pessoas foram visitar o espaço, que está totalmente restaurado, modernizado, com o dobro de área construída e com um número ainda maior de obras de arte com relevância histórica. 

Para entender detalhes da restauração, que durou cerca de três anos, o Nonada Jornalismo conversou por videoconferência com Rosaria Ono, a atual diretora do Museu do Ipiranga.  Entre as novidades está uma revisão da história do Brasil a partir de um olhar das minorias. Uma das ideias foi ouvir indígenas e moradores de comunidades periféricas para entender o que eles achavam que o museu deveria trazer. “Se você for ver as exposições, nós temos depoimentos de empregadas domésticas, de indígenas e de negros para justamente trazer esses contrapontos. Sempre que podemos, nós entramos nessa discussão porque nós não podemos apagar a história, mas nós podemos contar ela a partir de outro ponto de vista”.

Durante a entrevista, Rosaria trouxe informações sobre as principais mudanças realizadas no novo acervo, sobre questões de segurança, acessibilidade, mas também sobre o seu papel dentro desse espaço. “Nós temos hoje uma linguagem acessível às crianças e às pessoas que não têm tanto estudo, por exemplo, para que todas possam ler e entender o que está sendo explicado”, conta.

Rosaria Ono possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo, mestrado em Engenharia pela universidade japonesa Nagoya University e doutorado e livre-docência pela Universidade de São Paulo. Confira a entrevista: 

Qual é a principal proposta do museu hoje, depois do restauro? 

Rosaria Ono – O Museu do Ipiranga foi fechado em 2013 por necessidades, principalmente, da preservação do próprio edifício, que estava com uma série de problemas. A visitação do edifício histórico como museu foi aberta em 1895. Ele nunca tinha sido fechado para uma grande reforma. Já houve algumas outras intervenções, mas essa foi muito grande e era necessária para a renovação e atualização do edifício. Isso porque o museu não foi projetado para ser museu. Então nós precisávamos melhorar as condições de segurança, de acessibilidade e uma série de questões.

Além disso, existia um desejo muito grande também de ampliar a área de acervo e de exposição para atender melhor o público e para poder mostrar os trabalhos e as pesquisas desenvolvidas. Então, além da proposta de receber o público de uma maneira adequada, a ideia é também falar da história do Brasil e da história da sociedade paulista e paulistana por meio de objetos, que a gente chama de história da cultura material. 

Visitante à frente da obra A Fundação de São Paulo, de Oscar Pereira da Silva (1865-1939) (Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)

Quais são as principais novidades do novo museu em relação ao antigo?

Rosaria Ono – O espaço quase duplicou em termos de área de exposição. Com a ampliação, uma nova área foi construída embaixo e ao redor da base das fundações do museu. A gente aumentou expressivamente essa área de circulação do público e foram feitas adequações para que facilitasse o fluxo dessas pessoas, porque a arquitetura tinha algumas limitações de circulação dos espaços. Isso foi melhorado.  

Também foram desenvolvidas várias ferramentas para que pessoas com deficiência pudessem não só entrar no museu, mas também usufruir das exposições. Por isso, foram introduzidos vários meios de comunicação, e não só aquele tradicional que a gente vê nos museus, com a explicação escrita. Agora nós temos meios de interações muito grandes. Há tempos que a gente sabe que as pessoas precisam de outros meios de comunicação. Então o nosso museu está mais multimídia nesse sentido. Tem vídeos, tem áudios, tem objetos táteis… Tudo isso para facilitar a comunicação e possibilitar que pessoas de condições etárias ou até de entendimento, de leitura, de condições de conhecimento possam ter acesso às informações.

Inclusive, todos os painéis explicativos têm informações em uma linguagem facilitada. Apesar de o museu pertencer à Universidade de São Paulo (USP), não vamos ficar abusando do eruditismo. Nós temos hoje uma linguagem acessível às crianças e às pessoas que não têm tanto estudo, por exemplo, para que possam todos ler e entender o que está sendo explicado. E isso também foi aplicado nos vídeos, nos áudios, nas grafias em Braille e em tudo que a gente preparou. 

O Museu do Ipiranga fechou as portas em 2013 por risco de desabamento, mas só começou a ser reformado seis anos depois. Por que toda essa espera? 

Rosaria Ono – Foram várias questões. O museu já tinha esse plano de fazer uma série de mudanças, fechado ou não, e a meta de reabrir em 2022 era uma coisa importante. Ter o museu reformado era uma forma de celebrar o bicentenário. No entanto, esse processo foi demorado porque exigiu vários preparativos antes do início de uma obra. Por exemplo, a gente tem quase 500 mil objetos de acervo. Se você quer fazer uma reforma, é difícil porque é necessário achar um lugar para guardar esse acervo. Então, houve todo um processo de saída do museu. Decidimos que era melhor sair para poder reformar completamente.  

Só que também levou muito tempo para amadurecer essa ideia e convencer a própria universidade. Só essa parte demorou cerca de quatro anos. E outra, precisava embalar, catalogar, transportar, desembalar, colocar em cada lugar. Então isso levou muito tempo porque é um trabalho muito cuidadoso. A gente tem desde o fio de cabelo da Princesa Isabel até um carro de bombeiro. Coisas assim dão muito trabalho. 

Em paralelo houve uma grande discussão sobre o que a gente queria para esse museu. Aí vieram algumas necessidades: precisa de uma área de acolhimento. A gente precisa ter banheiros acessíveis ao nosso público-alvo. A maioria dos nossos visitantes são crianças de escolas. Então a gente tem que ter toda uma infraestrutura para receber grandes grupos escolares. Assim foi se criando uma lista de desejos para depois juntar tudo isso e virar o que a gente chama de programa de necessidades. Isso também demorou um ano e pouco para amadurecer.

E aí vem outra história: o que exatamente a gente quer no museu e como vamos fazer isso? A diretora anterior lutou muito para que a escolha da execução do projeto passasse por um concurso público. Isso também leva tempo. O concurso foi feito no final de 2017 e o projeto foi desenvolvido ao longo de 2018. Assim, a gente tinha um projeto desenvolvido suficientemente para avaliar quanto ia custar a obra. O próximo passo era captar dinheiro, porque já sabíamos que a universidade não teria recursos suficientes para executar esse projeto. Com o dinheiro, fomos contratar a empresa que iria fazer a obra. 

Quando a obra começou, em outubro de 2019, a gente tinha efetivamente menos de três anos para poder reabrir o museu, em setembro de 2022. Foi uma loucura. No meio de tudo isso, veio a pandemia, que foi também um grande desafio. Nesse período, a obra não parou, mas teve todo um controle de segurança para poder continuar.  

Em paralelo, também tínhamos que montar e pensar em todas as exposições que iam estar acomodadas lá dentro. Assim, começou todo um projeto de discussão sobre o que seria essa exposição, sobre como se montariam as praticamente 50 salas. Depois, um outro processo, que começou no final de 2021, que era de trazer os objetos. Foram muitas coisas e isso tudo, claro, demandou muito tempo. 

Mostra Contrapontos (Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)

Na época em que foi fechado, obviamente, o museu tinha muitas falhas de segurança. Como está essa situação hoje? 

Rosaria Ono – O museu tinha alguns problemas decorrentes da própria idade do edifício. A arquitetura, por exemplo, não estava preparada para receber instalações novas, né? Então isso tudo foi superado, no meu entender. O projeto propôs uma renovação da infraestrutura para o edifício antigo e também uma nova estrutura para o edifício novo. Só que, claro, o nosso desafio agora é manter tudo o que foi feito na reforma para que ele não se degrade e, também, fazer de tudo para garantir a segurança de quem trabalha e de quem visita o museu. Acho que isso é uma obrigação básica nossa para que não aconteça o que já aconteceu, de ter que fechar o espaço por falta de segurança e manutenção. 

Nesse período de restauração, o Museu Nacional, do Rio de Janeiro, pegou fogo. Isso refletiu nas questões de segurança do Museu do Ipiranga? Há alguma prevenção contra incêndio e acidentes? 

Rosaria Ono – Eu sou especialista em segurança contra incêndio. Então, quando me chamaram para colaborar, nós sempre nos atentamos para essas questões. Foram uma série de questionamentos que incluíram até se iríamos além do que o corpo de bombeiros exige, por exemplo.  

Há um grande desafio nos edifícios históricos que é a possibilidade de fazer essas intervenções de segurança sem perder o valor histórico. Quando o Museu Nacional sofreu aquele acidente, o nosso processo de detalhamento das condições de segurança já estava em andamento. O que nós estávamos com muita dúvida era sobre a instalação de sprinkler, que são aqueles chuveirinhos que jogam água. Mas aí, depois do incêndio do Museu Nacional, nós tomamos a decisão de colocar esse equipamento no Museu do Ipiranga. 

Então houve um reforço na segurança porque a gente não pode admitir que esse desastre aconteça no nosso acervo também. O que eu falo sempre é que o que se queima em um incêndio é impossível de recuperar, mas o que molha dá para recuperar. Fora isso, nós também temos sistema de alarmes, iluminação de emergência, uma escada protegida e pressurizada. Enfim, é uma série de sistemas modernos que foram projetados. Tudo que nós conseguimos, nós inserimos no projeto. Até espero que sirva de exemplo para os próximos projetos.   

O que vocês fazem para que as pessoas tenham interesse em visitar o museu hoje, na era da tecnologia? 

Rosaria Ono – O que o pessoal da comunicação trabalhou muito, inclusive durante as obras, foi na divulgação das nossas atividades. Porque o museu estava fechado para obras, mas não estava totalmente fechado. Nós promovemos várias atividades culturais, inclusive online durante a pandemia, e também fizemos diversas exposições itinerantes para informar sobre as novidades do museu. 

Então mesmo sem o museu estar aberto, nós coordenamos atividades para manter o público próximo. Também tivemos muita mídia sobre os diários de obra e sobre o que teríamos nas exposições. A ideia era compartilhar com o público o que estava acontecendo para gerar curiosidade.  E com os nove anos fechado, nós tivemos uma geração inteira que nunca tinha visitado o museu. Então nós criamos ações para fazer com que as famílias viessem fazer essa visitação. 

Qual a posição do museu em relação à acessibilidade? E o que vocês fazem para trazer as minorias para dentro do Museu do Ipiranga?

Rosaria Ono – Além da inclusão da acessibilidade física ou para pessoas com deficiência, nós fizemos uma revisão da história trazendo um olhar para as minorias. O que eu quero dizer é que nós tivemos o cuidado de não contar a história apenas pela visão da elite. Para isso, nós inclusive ouvimos grupos minoritários como indígenas, de comunidades negras e de periferias, por exemplo. 

Então houve um trabalho de escuta para entender o que elas achavam que o museu deveria trazer e para ver o que elas achavam que estava faltando no nosso acervo. Se você for ver as exposições, nós temos depoimentos de empregadas domésticas, de indígenas e de negros para justamente trazer esses contrapontos. Sempre que podemos, nós entramos nessa discussão porque nós não podemos apagar a história, mas nós podemos contar ela a partir de outro ponto de vista. 

E para trazer os visitantes nós temos políticas de gratuidade, que tentam contemplar as pessoas de menor renda. As escolas públicas, por exemplo, não são cobradas quando querem fazer um agendamento aqui. Em algumas situações nós temos contato com comunidades para trazer elas para dentro do museu. Nós temos uma preocupação com essas minorias e sempre tentamos contemplá-las abrindo espaços de inclusão. 

Nos primeiros meses da reabertura, nós ainda expandimos a questão da gratuidade para todos. Esse sistema vai acabar, mas a entrada do Museu do Ipiranga vai continuar sendo gratuita em um dia da semana e em um domingo por mês. Então isso também vai facilitar a inclusão. A gente só cobra um valor pelos ingressos porque nós também dependemos da renda para fazer a manutenção.   

 Como você se sente fazendo parte da história do Museu do Ipiranga como profissional, um dos mais importantes do Brasil, ainda mais nesse marco de reabertura depois de tantos anos fechado? 

Rosaria Ono – É emocionante. Na verdade é também satisfatório. Eu relutei muito em aceitar ser diretora desse museu porque o desafio é muito grande. Eu fiquei me perguntando se teria capacidade para administrar tudo isso. Mas, claro, eu nunca fiz nada sozinha. É um trabalho muito grande e nós somos uma equipe.  

* Vitória Drehmer é estudante de Jornalismo da Unisinos. Essa entrevista é uma parceria do Nonada com a Beta Redação, portal experimental do curso de Jornalismo da Unisinos, e foi realizada sob supervisão dos professores Débora Lapa Gadret e Felipe Boff. 

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