Holdry Oliveira, do quilombo Carrapatos da Tabatinga – MG | Foto: Luiz Paulo @oinstadoluizpaulo/Conaq

Ingresso quilombola na universidade tem diferenças regionais, mas Lei de Cotas pode auxiliar no acesso

Marco das ações afirmativas no Brasil aprovado em 2012, a Lei de Cotas foi resultado da luta do movimento estudantil, do movimento negro, quilombola, indígena e de diversos outros setores que lutam por justiça social. Agora, onze anos depois, a revisão aprovada na Câmara dos Deputados torna a lei permanente e apresenta mudanças pontuais – mas estratégicas. Uma delas é a inclusão de cotas específicas para quilombolas, que antes dependiam da determinação interna de cada instituição de Ensino Superior. Elas tinham autonomia para decidir pela inclusão ou não dos estudantes quilombolas no ingresso específico. 

“Essa era uma das lacunas na legislação que a gente tinha, em que os quilombolas estavam junto com os pretos e pardos na legislação, e que, mesmo sendo pessoas negras e pardas também, existiam diferenças na hora de separar os grupos como acesso à educação, falta de escolaridade”, explica a co-fundadora da Coordenação Nacional de Articulação de Comunidades Negras Rurais e Quilombolas (Conaq) Givânia Silva. Ela menciona o dado de que apenas 2% de pessoas das comunidades quilombolas apresentam Ensino Médio completo, o que também justifica a inclusão desse grupo na Lei de Cotas. 

A falta de políticas específicas em estados e municípios é um problema para os grupos. Embora exista legislação que trate da Educação Básica Quilombola, na prática, isso depende de iniciativas individuais de professores, diretores e demais membros do corpo docente. As Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Escolar Quilombola estão descritas em parecer pelo Ministério da Educação (CNE/CEB nº 16/2012) , e, dentre os objetivos estão “assegurar que as escolas quilombolas e as escolas que atendem estudantes oriundos dos territórios quilombolas considerem as práticas socioculturais, políticas e econômicas das comunidades quilombolas, bem como os seus processos próprios de ensino aprendizagem e as suas formas de produção e de conhecimento tecnológico.”

“Temos a legislação, é óbvio, mas, na prática, a implementação pelos estados e municípios não acontece. Nosso trabalho é fazer com que estas unidades federativas, além de elaborar essas diretrizes, implementem”. Para Givânia, a invisibilização que ocorre em relação às comunidades, ocorre justamente pela falta de aplicação destas políticas. “Se perguntamos para jornalistas, profissionais da saúde, o que eles estudaram sobre quilombolas, a resposta, geralmente, é que não viram nada. Como eles irão atuar em suas áreas se não sabem sobre esse tema?”, questiona. 

Confederação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Foto: Brasil de Fato/reprodução)

Não ser visto, lembrado ou incluído na formulação de políticas públicas é uma situação corriqueira para comunidades quilombolas. “O problema é que a gente é invisível pros governantes daqui”, reclama a liderança do Quilombo Flores, Geneci Flores. Ela tem 45 anos, mora em Porto Alegre (RS) e sua trajetória é marcada pela luta pela terra. 

A identificação de Geneci enquanto pessoa negra e quilombola não veio na escola. Ela não estudou sobre cultura e história quilombola na educação básica, sua busca pela identidade veio depois. Seu irmão, Gerson Flores, de 46 anos, teve a “identificação de si, ou seja, um homem negro e quilombola, diferente dos outros meninos brancos de classe média” revelada a partir de episódios de racismo sofridos no colégio quanto tinha 12 anos.

Na cidade de Geneci, a principal instituição de Ensino Superior, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), não apresenta ingresso específico, mesmo sendo a capital com maior número de quilombos urbanos. São 11 comunidades auto reconhecidas e oito já certificadas pela Fundação Cultural Palmares. A invisibilização também ocorre pela falta de dados oficiais. Foi somente no Censo de 2022 que a presença quilombola foi contabilizada como dado oficial, com 1,3 milhões de brasileiros que se autodenominam quilombolas. 

Em resposta ao Nonada Jornalismo, quando questionado sobre as mudanças do processo de ingresso pela mudança na Lei de Cotas, o coordenador da Coordenadoria de Ações Afirmativas da UFRGS (CAF) Edilson Nabarro explica que “a reitoria da UFRGS ainda não recebeu nenhuma orientação, e a CAF como órgão responsável pelas Ações Afirmativas, não tem um posicionamento institucional, pois ainda o debate nacional sobre a execução não existe”. 

Já na região Norte do país, a Universidade Federal do Pará (UFPA) apresenta cotas em seus processos de ingresso desde 2008. Além de ter um específico para comunidades tradicionais, com o edital de ingresso preparado anualmente em conjunto com o movimento estudantil e com lideranças indígenas e quilombolas, as políticas de assistência e permanência estudantil têm estes dois grupos como prioritários na hora de repasse do auxílio. 

Calouros quilombolas da UFPA (Foto: Alexandre de Moraes/divulgação)

O ingresso específico é uma das políticas de educação que contempla a trajetória cultural e forma de organização própria de cada grupo. Para quilombolas e indígenas, é uma forma também de respeito a sua cultura e forma de organização social própria. Segundo dados do Censo de 2022, o Pará tem 135 mil pessoas quilombolas. A UFPA apresenta 2729 estudantes deste grupo, o que corresponde, junto com a população preta e parda, 85% do corpo discente, aponta a pró-reitora de ensino de graduação da UFPA, Loiane Verbicaro.

Mesmo assim, pondera Loiane, “a origem das universidades é um espaço de privilégios”. Ela complementa a fala com a dificuldade observada de alguns docentes não conseguirem respeitar estudantes indígenas e quilombolas. A professora reitera o papel do compromisso institucional com a educação pública de qualidade para todos os cidadãos. “Devemos ter um projeto realmente comprometido com a inclusão, se a gestão não tiver esse compromisso com ações concretas, com assistência estudantil, para viabilizar a Lei de Cotas, não tem como realizar a inclusão”, finaliza. 

Algumas diferenças regionais no ingresso podem ser explicadas pela característica da gestão de cada universidade. Mesmo assim, ao ser alcançada a legislação que norteie todos os territórios – como a inclusão do grupo nas cotas – , a prática não é consequência direta.  “Os quilombos têm diferenças regionais, por conta das diferenças dos biomas. Sabemos que os estados e municípios devem ter diretrizes específicas, mas essa falta de legislação é, infelizmente, presente em todo o Brasil”, complementa Givânia. 

No Quilombo Flores, estudantes tentam vencer o atraso do Estado com a realização de um cursinho popular pré-vestibular, criado em parceria com estudantes da UFRGS. As aulas preparatórias para o Exame Nacional de Ensino Médio (ENEM) e demais vestibulares ocorrem todas às quartas-feiras à noite. Quando a reportagem esteve no local, era hora da aula de Linguagens. “Entendemos que o pré-vestibular deve ser para todos”, completa Geneci Flores. 

Para ela, para Givânia e para Loiane, a  mudança na legislação é só um início na luta por condições de acesso justa para todos. “A expectativa, com a mudança na legislação, é que os quilombolas não sejam mais deixados para trás”, reitera Givânia. A renovação da Lei de Cotas ainda aguarda aprovação no Senado. 

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Repórter e fotógrafa. Escreve prioritariamente sobre cultura e meio ambiente, culturas populares e educação
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