Foto: Anna Ortega/Nonada Jornalismo

Como um jornal feito por pessoas em situação de rua ajudou a conscientizar sobre a vacina contra a Covid-19

Leticia Pasuch, especial para o Nonada Jornalismo*

As tardes de terças-feiras são animadas para um grupo de comunicadores populares que se reúne semanalmente em um casarão antigo na região central de Porto Alegre (RS). É lá que ocorrem as reuniões de pauta do Boca de Rua, jornal que é produzido e vendido por pessoas em situação de rua da capital gaúcha desde 2001. Com periodicidade trimestral, o jornal conta com entrevistas e reportagens realizadas pelos próprios comunicadores, por meio da Agência Livre para Informação, Cidadania e Educação (ALICE).

No meio da pandemia de Covid-19, quando a população de rua ainda não era considerada como grupo prioritário para a vacinação, os Bocas, como são chamados os comunicadores do jornal, utilizaram as páginas do impresso para questionar as autoridades, como um espaço para exercer a cidadania e buscar seus direitos. 

Léster (nome fictício), há 10 anos no Boca, recorda: “numa lista de uma escala de quem ia ser vacinado, a gente nem aparecia. Depois da gente reivindicar e protestar contra eles, liberaram uma verba, para uma cota dessas vacinas, só para a população de rua”. A pressão jornalística foi direcionada aos governantes, conta Léster, “pra mostrar que a gente, da rua, não era um povo invisível”.

De máscara e tentando cumprir as recomendações da Organização Mundial de Saúde como podiam, eles publicaram logo no início da pandemia de Covid-19, em abril de 2020, uma edição que alertava sobre as dificuldades do grupo para se proteger da doença: “Mesmo não tendo casa nem água para fazerem o que mandam os médicos, muitos moradores de rua estão tentando colaborar e se engajando na campanha para conscientizar a galera. O poder público, ao contrário, reduziu o atendimento e até fechou o abrigo Bom Jesus. O coronavírus serve como máscara para fazerem o que já queriam fazer”, cobrava o texto de apresentação da edição nº75 do Boca de Rua.

Oito meses depois, em dezembro, o governo Federal anunciou seu Plano Nacional de Imunização. O relatório “Desigualdade no acesso a vacinas contra a Covid-19 no Brasil, publicado em novembro de 2022 pela Oxfam Brasil, lembra que diversos especialistas criticaram, ainda em 2020, a ausência de determinados grupos sociais nas primeiras versões do plano de vacinação, como os quilombolas, indígenas não aldeados e a população de rua. 

Em entrevista ao relatório, Fernando Pigatto, Presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), lembra da resolução nº 73 do CNS, que propôs a inclusão de pessoas em condição de rua, com deficiência, cuidadores de pessoas idosas e indígenas não aldeados no plano. “Se as recomendações do CNS tivessem sido seguidas, a pandemia jamais teria alcançado a dimensão que teve no Brasil. Não ter levado em conta as recomendações existentes só agrava a responsabilidade das autoridades”, avaliou.

Foto: Anna Ortega/Nonada Jornalismo

Foi apenas em julho de 2021, após pressão dos movimentos sociais e dos especialistas, que as pessoas em situação de rua, junto com outros grupos, foram incluídas como prioritárias na vacinação. A essa altura, o negacionismo e a falta de informações corretas sobre a vacina já pairavam em diversas parcelas da população, inclusive entre as pessoas em situação de rua.

Felipe Rodrigues, que passou a integrar o Boca de Rua este ano, conta que tomou apenas uma dose da vacina da Covid-19. O restante? “Não tomei, primeiro porque não fui encontrado. Não vi essas campanhas, não tenho televisão, estou em situação de rua. E quando eu passava nos lugares, era uma fila enorme de gente, e geralmente não me interessei, não achei necessário tomar”.

Outro obstáculo passa pelo modo como eles são vistos e atendidos pelo sistema de saúde. “A população de rua é discriminada e estigmatizada. Eu vejo há muitos anos, muito antes da Covid”, diz Felipe. “E quando a gente chega a gente é mal atendido, porque a gente tá mal vestido, porque algumas vezes a gente não tem acesso a banho, não tá cheirando bem, tá despenteado, porque não pode dormir no albergue ou foi expulso”.

Anderson Joaquim Corrêa, conhecido como Tutti, integrante do Boca há quase 20 anos, tomou cinco doses da vacina da Covid-19. Acredita na eficácia da imunização, mas reforça que se vacinou por recomendação médica, pois faz tratamento de saúde. “A doutora que me trata pediu as vacinas e eu tive que fazer. Eu tenho a minha carteirinha de vacina completa, bem dizer. Mas o problema é que o seguinte: tem várias portas que te fecham, se eu já não fizesse as vacinas, o médico também já não ia querer me atender mais, entendeu?”, reflete. “As pessoas vão pensar que tu não tá nem te interessando mais pela tua vida, né?”.

Na luta pela sobrevivência diária, muitas pessoas com vivência de rua acabam deixando o cuidado com a saúde em segundo plano. “Pra tu querer os teus bens, tu já procura te proteger, né? E a pessoa que tá morando na rua já não tem muito esse interesse de não pegar [o vírus] para proteger alguém. Se pegou, pegou, se não pegou…”, pensa Tutti.

Apagão de dados dificulta criação de políticas

Dados do relatório da Oxfam Brasil apontam que, no Rio Grande do Sul, foram vacinadas 82,7% das pessoas do gênero masculino e 86,5%, do feminino, entre janeiro de 2021 e outubro de 2022. Quanto à raça/cor da pele, a pesquisa revela que o percentual de vacinados no estado foi de 0,19% para a população indígena, 1,82% amarela, 3,11% parda e 74,83% branca, no mesmo período. 

No entanto, a proporção está incompleta, já que o dado de 15,82% da população vacinada no estado não foi informado, tornando indefinida a análise da desigualdade racial no acesso à vacina contra a covid-19. Mesmo sendo obrigatória a inserção racial nos formulários dos Sistemas de Informação em Saúde, ainda há percalços para que esses dados sejam recolhidos e divulgados em sua completude.

No Brasil, país considerado o quarto do mundo com o maior número de vacinas do vírus aplicadas, também é o país que tem significativo apagamento sistemático de dados das pessoas que vivem nas ruas – mais de 281,4 mil indivíduos – que, por não terem acesso a vários direitos, sofrem mais com os impactos da ausência de políticas públicas eficientes na saúde. 

Em Porto Alegre, são subestimados os dados sobre a quantidade de pessoas que estão nas ruas, mais ainda quantos casos e óbitos da Covid-19 e quantas doses de imunizantes foram distribuídas para esse grupo. “Historicamente, existe uma sistemática de organização de serviços de saúde e uma logística de distribuição de insumos, que é o caso da vacina, que desconsidera determinados grupos populacionais”, afirma Alcides Miranda, pesquisador e professor de Saúde Coletiva na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 

O professor lembra que a população de rua, por ser itinerante, não tem um endereço fixo e, por isso, não é identificada nos serviços de vacina. A desigualdade em saúde esbarra logo na insuficiência de dados para que sejam elaboradas políticas públicas. “Nós não dispomos de informações de registros que nos dê conta para dimensionar realmente o alcance e a abrangência desse problema”, preocupa-se, e relaciona a menor cobertura vacinal com a ausência de condições para monitorar a situação de vulnerabilidade populacional.

Para Alcides, os Consultórios na Rua – política federal da atenção básica em saúde a partir da busca ativa à população em situação de rua, visando ampliar o acesso aos serviços de saúde – são insuficientes, pois na maioria das vezes não cobrem as áreas de abrangência e circulação dessas populações. “Se essas pessoas têm mais vulnerabilidade e maior risco, elas precisam de linhas de cuidados específicos, e isso não foi encaminhado”, aponta. 

Essa negligência reforça o desmonte de políticas públicas e violações de direitos ocasionadas durante a gestão da pandemia no Governo de Jair Bolsonaro (2019 – 2022), com ações e omissões governamentais que envolviam planejamento, compra e distribuição de vacinas contra o coronavírus. “No caso do Governo Federal, a gente pode falar até de necropolítica, uma intencionalidade letal”, denuncia Alcides.

O desafio para atenuar as dificuldades do acesso à saúde, pondera Alcides, passa por investir cada vez mais na atenção primária. “Essa cobertura tem que aumentar consideravelmente, e as equipes não podem ficar sendo gerenciadas pela lógica da iniciativa privada, de terceiros”.

Ao ser questionado se sentiu medo durante a pandemia, Tutti reconhece: “o medo, ele sempre tá com a gente, né? Eu pelo menos tenho. [Ao] sair para trabalhar a gente já sai pensando, ‘será que vai voltar?’ Ninguém sabe”. Léster completa: “Na pandemia, uma coisa que eu aprendi foi a trabalhar os meus medos, na verdade, porque todo dia era um desafio”.

Hoje, já sem a necessidade de usar máscara, os Bocas seguem cobrando pelo acesso à saúde, educação, moradia e cultura. Eles acabam de lançar sua campanha de financiamento coletivo, para que essa história que já dura 22 anos continue.

*Essa reportagem faz parte da ação da Oxfam Brasil sobre desigualdade no acesso a vacinas. Mais informações em www.oxfam.org.br/vacina-e-desigualdades.

Leticia Pasuch

Estudante de Jornalismo na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Tem interesse especial em temáticas ligadas a cultura, direitos humanos e meio ambiente.

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