Arte: Katarina Scervino/Nonada Jornalismo

Mulheres do Cerrado contra a queda do céu

Ludmila Pereira, especial para o Nonada Jornalismo*

Goiânia (GO) — “Eu cresci brincando com a água na várzea e eu não vejo mais. A gente tinha água na gameleira, tinha água no córrego, tinha água no rio, hoje a gente só tem o rio”, diz Celenita Gualberto, moradora do Quilombo Lajeado, no Tocantins, ao lembrar das memórias de sua infância e acompanhar o quanto as mudanças climáticas em sua comunidade impactam também na forma de ser e estar no mundo.

Sua voz se soma a outras mulheres do Cerrado, como Bernadina Renhere, indígena A’uwe à frente do movimento de mulheres na Associação Xavante Warã, no Mato Grosso. “Se morrer o Cerrado, nós vamos morrer também”, alerta a liderança indígena. “O Cerrado é nossa vida, porque sem o Cerrado como nós vamos sustentar nossos filhos?”.

O Cerrado é um dos biomas mais antigos do mundo. Sua formação começou há pelo menos 65 milhões de anos. Não à toa, foi nos Cerrados das Minas Gerais que o fóssil humano mais antigo do Brasil, Luzia, foi encontrado e datado de 12.500 a 13.000 anos A.P (Antes do Presente). E ainda, estamos falando da Savana mais biodiversa do mundo. 

O bioma e suas áreas de transição ocupam aproximadamente 36% da área do Brasil, mais de 1/3 do país. É o berço das águas, de onde nascem oito das 12 principais bacias hidrográficas do país, constituindo a mais importante área de recarga hídrica do país, onde é abrigado dois aquíferos importantes: o Guarani e o Urucuia-Bambuí. 

Todas essas características tornam o Cerrado a casa de mais de 25 milhões de brasileiras e brasileiros, povos do campo e da cidade, Ribeirinhas/os, Quebradeiras de Coco Babaçu, Quilombolas, Indígenas, Ciganas/os/Romani, Veredeiras/os, Geraizeiras/os, Apanhadeiras de flores sempre vivas e comunidades de Fundo e Fecho de Pasto. No entanto, essa sociobiodiversidade, localizada nos brasis centrais, se encontra em ameaça e, muitas vezes, apagada e esquecida dos grandes debates nacionais e internacionais sobre meio ambiente e o avanço das mudanças climáticas. 

Celenita Gualberto, moradora do Quilombo Lajeado, no Tocantins (Arte: Katarina Scervino/Nonada Jornalismo)

“Nós, nesse contexto de luta da mulher negra, temos nos deparado com questões climáticas que tem nos assolados e influenciado no dia a dia das mulheres, de forma que isso leva a nos preocupar com as formas que nós possamos contribuir para preservar o nosso território, para fazer enfrentamento as frentes que estão nos violentando, que estão tirando da gente a saúde do nosso meio ambiente”, conta Celenita, mestra em Sustentabilidade dos Povos Tradicionais pela Universidade de Brasília (UnB).

Em 12 meses, entre agosto de 2022 e julho de 2023, o desmatamento subiu 16,5% no Cerrado e caiu 7,4% na Amazônia, como mostra o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. E conforme o estudo apoiado pelo Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), o Cerrado brasileiro pode perder até 35% da água de seus rios até 2050. 

Área de Cerrado desmatada para plantio no município de Alto Paraíso (GO) (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Entre outras ameaças diretas e implementadas pelo Estado, temos em andamento o Acordo União Europeia – Mercosul que visa estabelecer relações comerciais a partir do agronegócio e da devastação dos recursos naturais, destinando matéria prima à Europa. Nesse acordo, uma das prerrogativas é a não proteção de áreas não consideradas florestas, como é o Cerrado, onde predomina o aspecto de mato e savana. O que pode intensificar não só a devastação, já em curso, da formação territorial mais antiga do mundo, como também dos conhecimentos e sabedorias de seus povos.

De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), 80% das pessoas forçadas a sair de suas casas por causa das mudanças climáticas são mulheres. Para continuarem em seus territórios, as mulheres cerradeiras vem forjando maneiras de enfrentamento ao agronegócio a fim de manter suas práticas culturais ancestrais e suas vidas. “Atacar o Cerrado é atacar as mulheres. Lutar contra o patriarcado e o racismo é sinônimo de manter o Cerrado e seus povos vivos e de pé”, afirma a Articulação das Mulheres do Cerrado.

O Cerrado está em constante ataque devido ao avanço do agronegócio, que provoca mudanças no solo ao retirar a vegetação nativa para plantar monoculturas ou criar gado, causando desequilíbrio ambiental e, em consequência, afetando diretamente o direito à vida digna das pessoas nesse território. Como demonstra o Relatório Anual do Desmatamento (2022), feito pelo Mapbiomas, o agronegócio é o principal responsável pelo desmatamento no Brasil. 

Atualmente, 99% das áreas desmatadas na região se destinam à expansão da agropecuária. O estudo ainda aponta que tal modo de agricultura cresceu 460% no Cerrado desde 1985 e ocupa uma área maior que o estado do Paraná. E ainda segundo a pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgada em maio de 2020, a agropecuária respondeu por 97,4% do total de água consumido no país em 2017.

Celenita vive em um dos estados do chamado Matopiba, região do Cerrado que abrange Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia a partir do projeto de desenvolvimento agrário impulsionado por parlamentares – uma das áreas com as maiores taxas de desmatamento do mundo. O Matopiba é a região do cerrado mais afetada pelo desmatamento, onde se concentra cerca de 82,1% da área de supressão de vegetação nativa do bioma. 

Quebradeiras de coco babaçu (Foto: Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu/Reprodução)

“Ser uma quebradeira é ser tudo. A palmeira é como se fosse uma mulher uma mãe de família. Ela é tão comparada a nós que ela produz com nove meses igual a gente, né?”, conta Maria do Socorro Teixeira Lima, que antes de tudo é Quebradeira de Coco, mas também é vice-presidente do Conselho Nacional das populações extrativistas da Amazônia, coordenadora geral da associação Regional de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Bico do Papaguaio (Tocantins) e coordenadora do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB) no Maranhão, Pará, Piauí e Tocantins.

“É uma dor tremenda que ela [palmeira] sente quando o povo derruba. A gente sabe contar essa dor. E essas Palmeiras, elas conversam com a gente. Elas conversam com a gente quando a gente tá no mato, no silêncio, só quebrando o coco, elas contam história e nós interpretamos as histórias. E a gente sente na nossa alma quando derruba, por isso, a gente fala na violência contra as mulheres, contra a natureza, contra a água, contra a floresta e contra a terra”, pontua. A liderança destaca a perversidade do desmatamento no Cerrado e o quanto isso vai de encontro ao modo de vida passado de geração a geração e ao respeito a quem fornece o sustento da comunidade: as palmeiras.

Já Celenita Gualberto, do Quilombo Lajeado (TO), enfatiza: “a falta da alegria do povo negro, a falta do estimulo aos espaços de oralidade, que as pessoas sentam com tranquilidade para ensinar e para fazer, que as pessoas senta para fortalecer a nossa espiritualidade, para cultuar as nossas crenças, os nossos Deuses, tem cada vez mais acontecido menos. Porque a gente tem dedicado muito tempo à luta. Uma luta que não cessa, que é perene e que nós só estamos nela por ter demanda, porque não é escolha, é uma necessidade”

Segundo o veredito final do Tribunal internacional Permanente dos Povos (TPP) em Defesa dos Territórios do Cerrado, o Cerrado e seus povos se localizam na chamada “zona de sacrifício do agronegócio brasileiro”. Nessa zona de sacrifício, segundo os resultados da Coleção 2 do MapBiomas Fogo (2023), os campos e savanas, típicos no Cerrado, foram os tipos de vegetação nativa que mais queimaram, entre 1985 e 2022. 

O Cerrado e a Amazônia juntos concentraram cerca de 86% da área queimada pelo menos uma vez no Brasil em 38 anos. E nesse período, 40% do Cerrado foi queimado, o equivalente a área de três estados de São Paulo. De toda área do Cerrado atingida pelo fogo, 88% foi vegetação nativa, de milhares de anos de formação.

De acordo com os dados de Conflitos no Campo envolvendo o uso criminoso do fogo, de 2019 até 2022, sistematizados pelo Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno (Cedoc – CPT) e analisados a partir das formulações da Articulação Agro é Fogo, quando se observa a distribuição geográfica dos incêndios criminosos e conflitos por terra no Brasil, o Cerrado predomina com 39% das ocorrências, seguido da Amazônia, com 28%. 

Todavia, se somarmos as áreas de Cerrado com suas zonas de transição, nelas estão quase 56% de todos os conflitos desse tipo, afetando mais de 60 mil famílias entre 2019 e 2021, o que diz respeito também a ato de expulsar as pessoas do campo, ameaçá-las, destruir seus roçados e casas. Ainda segundo a Articulação Agro é Fogo, os incêndios criminosos são causados por ações humanas, o que contradiz o discurso de que o “Cerrado pega fogo sozinho”, e os focos saem das áreas de estabelecimento do agronegócio.

Arte: Agro é Fogo/reprodução

“Nós vamos gritar para proteger o território Cerrado”

Quem fica no território e forma linha de frente contra as ameaças do agronegócio, principalmente na luta dos povos e comunidades tradicionais, são as mulheres. Elas são gestoras da comunidade, da família, sabedoras das histórias e dos modos de ser e fazer, além de estarem mais presentes no território enquanto os homens trabalham fora.

“Violentar o Cerrado é violentar o corpo-território das mulheres”, como enfatiza a Articulação de Mulheres do Cerrado. São elas que ficam mais sobrecarregadas pelas preocupações que os impactos que acabam com a autonomia, soberania e segurança alimentar, prejudicam  a saúde física e psicológica e destroem as práticas medicinais. 

“As mulheres, as crianças, ficam doentes porque eles envenenam a nascente de água e as crianças bebem essa água, dá diarreia, até morrem, e as mulheres que ficam grávidas, elas perdem filhos, sabe?”, relata a MC Anarandà, que se apresenta primeiro como mãe, depois como mulher indígena do povo Guarani-Kaiowá, do estado do Mato Grosso do Sul. Também é artista, rapper, professora de Guarani, estudante de gestão ambiental, digital influencer e palestrante. Apesar de ser artista desde de 2014, se tornou conhecida pelo Rap Feminicídio e por letras que denunciam a violência contra as mulheres indígenas da região, ato que fez com que ela recebesse muitas ameaças contra a sua vida. 

A MC Anarandà, cantora Guarani-Kaiowá, utiliza a arte para denunciar o avanço do agro nos territórios originários (Foto: reprodução)

Anarandà ressalta o quanto as alterações na natureza significam tanto o aumento da violência, como também a destruição da cultura repassada tradicionalmente, pois não se é possível fazer mais os rituais como eram antes. Em meio ao cerco do agronegócio, sem acesso aos recursos naturais, à terra, a dinâmica cultural é enfraquecida e a juventude começa a se distanciar dos conhecimentos tradicionais que os conectam à comunidade.

“O agro vem destruindo tudo que tem pela frente, principalmente os indígenas. Destruindo o sonho, destruindo a vida, destruindo a água, destruindo a mata e adoecendo elas aos poucos, e matando devagar a nossa a nossas crianças. O agronegócio aqui na região é muito forte, o agro vem matando. Desde quando destruíram a primeira mata, começaram a destruir tudo, os indígenas na maior parte do Mato Grosso do Sul não conseguem plantar. Olha só, dentro do território, às vezes não cresce por causa dos agrotóxicos, com a pulverização dentro do território”, denuncia a artista. 

No Mato Grosso do Sul, estado onde vive Anarandà, se tem a segunda maior população indígena do país, com mais de 80 mil pessoas. E é nesse estado que o agronegócio mais atua. Com 92% do território privado, o MS tem a maior concentração de terras particulares do país, de acordo com Atlas Agropecuário. O estudo considera território privado as terras do programa de assentamentos rurais, terrenos com Cadastro Ambiental Rural, imóveis privados cadastrados no Incra ou no Programa Terra Legal e áreas não catalogadas em bancos de dados públicos.

Área de Cerrado desmatada em Mato Grosso do Sul (Foto: Divulgação/PMA)

Além disso, 83% dessas terras são latifúndios. O Centro-Oeste, área do Cerrado, é a região que mais concentra terras, já que 75% de seu território é formado por grandes propriedades. Já as terras protegidas, que contemplam, entre outras modalidades, as terras indígenas, representam só 4% do Estado de MS. Em todo o Brasil, as terras privadas representam 53% do território, e desse total, 28% são latifúndios. As áreas protegidas, por sua vez, ocupam só 28% da extensão de terras do país.

Conforme a Pesquisa Agrícola Municipal (PAM) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Mato Grosso do Sul se destaca com 13 municípios entre os mais ricos do agronegócio no país, atingindo a marca de R$ 44,99 bilhões de reais em 2021 – em plena época de pandemia da covid-19 –, em valor de produção das culturas. Além disso, onde se tem avanço do agronegócio, também há violência contra as mulheres: o Mato Grosso do Sul tem a maior taxa de feminicídio do Brasil com aumento, entre 2021 e 2022, de quase 40%, de acordo com dados do Monitor da Violência (2022). 

“Quando a gente vai fazer os nossos rituais prolongado, como as danças tradicionais que acontecem todo ano, nessas datas especiais, exige que têm algum tipo de plantas medicinais específicas, e a gente não encontra mais, por causa que já foi destruído a mata, então onde que eles vão encontrar, né?”, pontua a MC.

“Sem água, sem planta, sem arroz, a gente perde o manejo, perde de forma de fazer a cultura. Nós, enquanto mulheres quilombolas, especialmente as rurais, é impossível viver com um território que não tem a saúde que não tem o meio ambiente que tem essa relação de reciprocidade de cuidado. São questões que vai afastando a gente cada vez mais do território e dificultando para que a territorialidade nossa seja estabelecida e a ancestralidade seja mantida”, ressalta Celenita do Quilombo Lajeado.

O artigo “Ecocídio nos Cerrados: agronegócio, espoliação das águas e contaminação por agrotóxicos”, publicado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), ressalta que mais de 600 milhões de litros de venenos recaem anualmente sobre todas as vidas humanas no Brasil. Só em 2018, 73,5% dos agrotóxicos consumidos no Brasil foram aplicados no Cerrado.

O estudo ainda aponta que mais de 110 milhões de hectares do Cerrado estão ocupados pelo agronegócio – com área plantada para produzir 75% das commodities soja-cana-milho-algodão cultivadas no Brasil e as áreas de pastagem destinadas à produção de carne bovina. Isso implica na destruição de 52% da vegetação nativa e no consumo de 91,8% das águas superficiais e subterrâneas usadas na irrigação por pivôs centrais, resultando na migração de nascentes, na interrupção dos fluxos dos rios e na redução dos volumes dos aquíferos

“O Cerrado depende de nós, o Rio das Mortes depende de nós. Porque as mulheres são coletoras de frutas, as mulheres que usam muito a plantação de medicina quando está esperamos o bebê, nós usamos muito o conhecimento tradicional”, afirma Bernadina Renhere, mulher indígena A’uwe, a frente do movimento de mulheres na Associação Xavante Warã, Mato Grosso.

“Nós vamos gritar para proteger o território Cerrado, os rios e água”. Ao pontuar sobre a importância do direito ao Cerrado de pé e vivo, da agricultura familiar dos povos indígenas, Bernadina ressalta a necessidade da soberania alimentar tradicional, a partir dos saberes tradicionais. Ao impor que os povos indígenas saiam de seus territórios ou tenham seus territórios sem vida, a alimentação também é atingida e, consequentemente, a saúde da comunidade que passa a consumir, como única opção, as comidas industrializadas. “Nós sofremos muito, já perdemos nossos irmãos, irmãs, por causa do diabetes”, lembra.

Mulheres A’Uwe Xavante (Foto: Arquivo pessoal)

Sem pedir licença aos povos indígenas e comunidades tradicionais, as pessoas do campo ou da cidade, o agronegócio passa por cima das memórias de afetos junto aos mais velhos, da cultura alimentar e derruba o céu em cima de quem se levanta para lutar pelo direito ao futuro. Na região onde vive Bernadina, tanto o agronegócio quanto o hidronegócio, com a possível criação de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) no Rio das Mortes, ameaçam os sonhos da comunidade, a continuidade da vida dos povos indígenas, ribeirinhos, agricultores e a vida animal, vegetal e entidades espirituais do Cerrado que é o Mundo Xavante.

“Na verdade, as mudanças climáticas são um impacto gerado pelas grandes empresas, pelo agronegócio, pelo grande capitalismo que é o desenvolvimento, também o desenvolvimento agroecológico de eucalipto e teca [árvores de grande porte] isso aí que gera essa questão de mudança do clima”, explica Maria do Socorro, quebradeira de coco Babaçu.

Uma das formas de buscar proteção, a partir dos instrumentos estatais para esse território, é a campanha em favor da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 504/10, do Senado, que há 13 anos busca ser aprovada como forma de estabelecer o Cerrado e a Caatinga como patrimônio nacional, como já é a Amazônia, Pantanal e a Mata Atlântica. 

“Não existe Cerrado sem Amazônia, mas Amazônia sem Cerrado, também não é Amazônia. E os dois se completam. É como um casal que depende um do outro. Porque a Amazônia faz chover e o Cerrado segura as águas e estoca para nós beber, para nós usar para nossa vida”, ressalta Maria do Socorro.

“Nós, as mulheres, nós somos separada pelos rios, mas são unidas pela luta”

Maria do Socorro, quebradeira de coco Babaçu (Arte: Katarina Scervino/Nonada Jornalismo)

Enfrentar o agronegócio no Cerrado é enfrentar o patriciado racista, onde predominam homens, brancos, ricos e com acesso aos espaços de poder e decisão política. O encontro das lutas, das demandas de cada comunidade cerradeira, expressa que nós somos o Cerrado. Levantar a voz para chamar a atenção à nossa existência, a partir da nossa linguagem, da nossa forma de ser, que é parecida com a vegetação cerradeira, torta diante dos padrões sociais e com raízes profundas, enraizadas no território ancestral, nos caracteriza como cerradeiras dos sertões dos brasis centrais.

“Pensando muito nas gerações futuras. A gente está aqui hoje porque a nossa ancestralidade, o nosso corpo que veio primeiro, lutou pela gente. E a gente tem a obrigação de lutar por gerações futuras e condições melhores que a nossa”, frisa Celenita Gualberto, do Quilombo Lajeado (TO), reforçando que não existem territórios saudáveis sem as comunidades tradicionais. A co-evolução do Cerrado parte dessa relação entre humanidade e natureza, desse equilíbrio que garante a sociobiodiversidade desse local.

“A gente luta pelo pela questão do Babaçu em pé, vivo, agora a gente tem que completar, porque em pé morto não faz o que a gente precisa. Porque a Palmeira estando em pé e viva, ela tanto dá a produção que sustenta milhões e milhões de família, quanto ela também traz o ar limpo e cheiroso que a gente respira, e também mantém a água debaixo do cocal, que segura a água”, destaca a liderança Maria do Socorro.

Encontro de Mulheres do Cerrado (Foto: Ludmila Pereira)

Para enfrentar as mudanças climáticas na região, as quebradeiras de Babaçu lutam pela efetivação da Lei dos Babaçus Livres, que prevê proteção contra os agrotóxicos, queimadas e derrubadas. A liderança também menciona a criação de campanhas realizadas pelo Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu para a preservação do Babaçu, a ida ao Ministério do Meio Ambiente para reivindicar o desmatamento zero e a preservação das águas. Além de se reunirem com embaixadores de outros países e pedir para que os governos não invistam em quem derruba e sim em quem preserva. 

Bernadina Renhere também conta sobre os encontros de mulheres A’uwe Xavante, uma das formas de fortalecer os direitos das mulheres, mas também de todo o território, realizando trocas de sementes, refletindo especialmente sobre a alimentação, os problemas lançados sobre o território.  

As Guardiãs do Cerrado, Guardiãs do território antigo, como a Maria do Socorro, Celenita Gualberto, Anarandà e Bernadina Renhere, são mulheres-biomas que existem porque o Cerrado existe. A necessidade de lutar contra a queda do céu, contra a destruição do Cerrado, contra a devastação de suas histórias e espiritualidades, é um ato cansativo e constante. No entanto, é um processo que visa garantir o futuro de toda a humanidade, da permanência do berço das águas. 

Não existem territórios livres com corpos presos, elas reafirmam. Não existem direitos humanos sem os direitos da natureza. Não existe combate às mudanças climáticas sem o combate à violência que assola o Cerrado e sua gente. As mulheres-Cerrado, as mulheres da terra, das águas e da savana estão de pé e em luta.

Esta reportagem foi contemplada pelo edital Bolsas de Reportagem Justiça Climática – AJOR e iCS: “Justiça Climática e o Enfrentamento ao Racismo Ambiental no Brasil”, promovido pela Ajor, Associação de Jornalismo Digital e o iCS, Instituto Clima e Sociedade, no âmbito do The Climate Justice Pilot Project.

Ludmila Pereira

Ludmila Pereira é de Goiânia, é jornalista, coordenadora de comunicação na Articulação Agro é Fogo, integra a Articulação de Mulheres do Cerrado, a Coletiva Pretas de Angola e colabora no Favela em Pauta.

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