Ilustração: Itamaraty/governo Federal

O que é decolonialidade? Uma conversa sobre o conceito e a origem afro-indígena do termo

Qual a diferença entre descolonização e decolonialidade? Como o conceito de decolonial se diferencia de contracolonial? Quais são as origens de todos esses termos? Em conversa com o Nonada, o professor do Departamento de Sociologia da UFRGS José Carlos Gomes dos Anjos explica que a concepção decolonialidade nasce na rua, nos movimentos negros e indígenas, para só depois ser utilizada pela academia. 

“Ele é um conceito que entra na academia e é incorporado por um conjunto de intelectuais latino-americanos, em um processo de sistematização e intervenção epistêmica em um nome de uma geopolítica do conhecimento, mas que tem suas fontes nas lutas persistentes nas lutas de descolonização dos movimentos quilombismo da marronagem na América Latina e nos movimentos indígenas”, explica o professor. 

Doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e pós-doutor pela Ecole Normale Superieure de Paris, o sociólogo destaca a importância da discussão sobre “decolonialidade” manter-se conectada às discussões étnico-raciais e de gênero. Do contrário, o debate corre o risco de ser “desracializado”, tornando-se apenas uma espécie de “moeda de troca” nas Universidades. 

Mais do que uma substituição de termos, ele acredita no aprofundamento e tensionamento que novos intelectuais podem trazer, como é o caso da contribuição do pensador quilombola Nêgo Bispo. A interpelação que vem do lado Quilombola introduz uma questão: “o quanto vocês estão ainda colonizados? O quanto vocês precisam se descolonizar?”. E o quanto isso é importante para aquilo que ele diz [no livro A Terra Dá, A Terra quer] “para que os nossos netos não venham a continuar querer colonizar os nossos territórios”, relembra o professor. 

José Carlos Gomes dos Anjos realiza pesquisas sobre tradições de matriz africana, Relações Interétnicas, Políticas públicas, elites intelectuais e desigualdade racial. É também autor do livro No Território Da Linha Cruzada. A Cosmopolítica Afro-brasileira (2006, editora da UFRGS), em que incita problematizações que conduzem à necessidade de uma educação para os Direitos Humanos, desconstrutora do modelo viciado de preconceito e violência estrutural, institucional, cultural e subjetiva que se estabelece nas sociedades latino-americanas hoje.

Confira a entrevista completa:  

Nonada – Como podemos definir decolonialidade? Qual a relevância deste termo na atualidade? 

José Carlos dos Anjos – É ideia de sociedades que foram colonizadas não se libertaram completamente do colonialismo com a independência, porque as dimensões institucionais dos processos colonialistas permaneceram. Essas dimensões ficam estampadas nas desigualdades de raça e da supremacia branca persistente nos países que outrora foram colonizados – o planeta à nivel mundial. A expansão europeia no século XV impôs aos povos não-europeus um processo de colonização e, depois, com a descolonização dos países, o conceito de raça – que foi o principal vetor do processo de colonização – permaneceu funcionando como garantidor de uma supremacia branca, que se articula muito estritamente a conformações de gênero, ao patriarcalismo e as exploração capitalista dos recursos naturais. 

Nesse sentido, o conceito de decolonialidade é um conceito que deriva de uma persistente luta política e epistêmica dos movimentos sociais indígenas e do movimento negro – com muita participação do movimento das mulheres negras no processo de articulação das dimensões entre racismo e patriarcalismo. Ele é um conceito que entra na academia e é incorporado por um conjunto de intelectuais latino-americanos, em um processo de sistematização e intervenção epistêmica em um nome de uma geopolítica do conhecimento, mas que tem suas fontes nas lutas persistentes nas lutas de descolonização dos movimentos quilombismo da marronagem na América Latina e nos movimentos indígenas. 

Nonada – Há também usos diferentes: alguns intelectuais utilizam “descolonial”, enquanto outros preferem “decolonial”. Você poderia comentar sobre os termos? 

José Carlos Gomes dos Anjos – O movimento que eclode na África e no Sul da Ásia Macedo, na década de 30, no pós Segunda Guerra Mundial, sobretudo, se constituindo o chamado terceiro mundo, com nações outrora colonizadas, descolonizando-se. Então, você tem o movimento de descolonização e um conjunto de pensadores e teóricos, como Patrice Lumumba e Aimé Césaire, Amilcar Cabral e o Frantz Fanon que teorizaram o processo de descolonização. Parte de um processo de constituição de novas nações e, portanto, de deslocamento da colonização europeia. Aconteceu mais cedo na América Latina, no século XIX. A descolonização se refere a isto: um movimento de substituição das autoridades políticas europeias por autoridades políticas dos territórios outrora colonizados.

Já a decolonialidade se refere a um outro processo de luta contra o racismo como uma herança do processo de colonização. O intectual quilombola Bispo dos Santos, o Nego Bispo, tem colocado o termo ‘contracolonização’, que é bastante interessante, sugerindo que existem espaços e territórios indígenas e negros que nunca foram, de fato, colonizados. Onde a colonialidade não pregou o empecilho das relações de reciprocidade, permitindo que as concepções epistêmicas dessas comunidades persistam sendo recriadas. São territórios que estão há 5 séculos rechaçando a colonização. Para eles,não faz sentido falar em colonialidade e decolonialidade. 

Esse seria um processo que atinge, principalmente, as comunidades racializadas e urbanizadas. Os setores de classe média negros podem estar em situação de colonialidade, mas não é o caso dos quilombos e territórios profundos não-urbanizados. Nós não teríamos propriamente, nesses espaço uma ‘colonialidade’, que precisaria de uma ‘decolonialidade’. Você teria a necessidade de reforçar os passos contracoloniais que sempre estiveram aí, que sempre construíram barreiras ao colonialismo. 

Acho que essa é uma delimitação interessante do conceito, porque instiga a pensar que o conceito vem perdendo uma parte de sua radicalidade, pois começa a ser, de certa forma, desracializado. A questão racial perde a centralidade. Parece um conceito ‘tomado’, um substituto de termas marxistas previamente existentes, como alienação, ou desalienação, que hoje ganharia uma nova nomenclatura de ‘decolonialidade’. 

Diante dessa perda de radicalidade, acho interessante a intervenção do Bispo. A interpelação que vem do lado Quilombola introduz uma questão: “o quanto vocês estão ainda colonizados? O quanto vocês precisam se descolonizar?”. E o quanto isso é importante para aquilo que ele diz [no livro] “para que os nossos netos não venham a continuar querer colonizar os nossos territórios”. Isso nos colocaria de uma linha de pensamento diferente, em uma interpelação potente. O contracolonial aparece como um adendo importante, como um lembrete da necessidade de conferir a radicalidade das lutas dos povos não europeus, porque os movimentos sociais indígenas e negros estavam lutando fora da academia contra o processo de colonização. 

Nonada – Você considera que esse lembrete que Nego Bispo faz, e que essas discussões que olham para a colonização a partir de lugares não acadêmicos, atualizam ou mudam o sentido de decolonidade? Seria um momento de rever seus usos?

José Carlos Gomes dos Anjos – Pela forma como o universo acadêmico está conformado, por suas lógicas produtivistas e sua hegemonia branca, todas as vezes que a academia se apropria de conceitos oriundos das lutas concretas das pessoas – nomeadamente, o mesmo aconteceu com o conceito de ‘interseccionalidade’, ela tende a promover um esvaziamento que torna possível o uso fluente, intercambiável, descontextualizado, e sobretudo, sem potência política. Se transforma em uma moeda. Transforma-se em uma moeda do mundo acadêmico e das lógicas de consagração acadêmica.

O que está em jogo não é substituir uma palavra por outra, mas a possibilidade de rearticulações políticas entre a produção acadêmica e as lutas concretas feitas fora da academia. A interpelação do Nego Bispo é a de que “a colonialidade é um problema de vocês, brancos”. Vocês tem uma mente colonizada, vocês precisam se decolonizar.  É potente, porque, de certa forma, instiga um ressituar no campo. Se a colonialidade é um problema branco, os negros sempre estiveram lidando com questões como ‘descolonização’, tal qual ter a posse do próprio território e da contracolonialidade, que é impedir que o colonialismo entre. Isso possibilita uma repartição dos temas, e outras formas vão aparecendo. 

As lutas concretas dos movimentos sociais, dos oprimidos, de todos os processos de opressão vão produzindo uma trama de possibilidades de pensar. De categorias que são operantes nas lutas sociais – e a academia vai se aproveitando desses conceitos e vai, simultaneamente, promovendo processos de consagração intelectual a partir deles. Isso vai se transformando em uma moeda dos processos produtivistas acadêmicos, de produção de artigos, teses, etc… 

Enquanto isso, os movimentos sociais vão continuar produzindo outros termos, novas categorias. Esse é o movimento, até que a Universidade possa se ressituar. Não é redefinir o termo, mas ressituar o próprio processo de produção de conhecimento. 

Nonada – Interessante o que você traz, porque, de alguma forma, nos sinaliza a origem dos processos, e como eles sempre vêm dos movimentos sociais, da rua. 

José Carlos Gomes dos Anjos – Exatamente. A Universidade tende a ser muito extrativista, e as próprias pessoas dentro dela acabam ganhando relevo e exaltando sua função e seu papel social, sem uma contribuição mais efetiva para as lutas sociais. 

Nonada – E professor, como você percebe a interdisciplinaridade desse debate sobre decolonialidade? 

José Carlos Gomes dos Anjos –  As pessoas que levaram o conceito para academia, que o forjaram, como um conceito acadêmico estabeleceram seus precursores. Um deles é Franz Fanon, que trabalha no âmbito da psiquiatria. Então, o conceito abarca desde área da ‘psi’ – psiquiatria, psicologia, psicanálise, que discutem há um bom tempo a decolonialidade e decolonização. E isso, estende-se ao âmbito da cultura, que é também um espaço privilegiado da decolonização. Há também um foco importante na economia e, fundamentalmente, uma divisão racial e de gênero do trabalho, que faz com que determinadas raças estejam predominantemente ocupando determinadas funções. E com que os trabalhos mais duros de sustentação da estrutura social estejam como os trabalhos mais degradados e menos protegidos. Então, da economia, à arte, à psicologia, são todos âmbitos em que essa discussão se faz presente. 

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Repórter do Nonada, é também artista visual. Tem especial interesse na escuta e escrita de processos artísticos, da cultura popular e da defesa dos diretos humanos.
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