Santo Amaro (BA) (Foto: Joédson Alves/Agência Brasil)

Tombamento de terreiros e quilombos pelo Iphan é ferramenta contra ameaças e conflitos de terra

Especulação imobiliária nos quilombos urbanos, grilagem, avanço da monocultura de soja e geradores de energia nos quilombos rurais e ameaças a terreiros estão entre os ataques que esses territórios mais enfrentam. Com possibilidade de violação de direitos humanos, o tombamento pode ser utilizado como uma estratégia de preservação da cultura e dos próprios territórios. 

O processo, no entanto, ainda é incipiente. Entre as 3638 comunidades quilombolas reconhecidas, apenas duas são oficialmente tombadas pelo Iphan, incluindo o Quilombo dos Palmares. Já com relação aos terreiros, não existe uma contagem oficial de casas existentes, embora a estimativa aponte para milhares de terreiros no país. Só em Salvador, por exemplo, pelo menos 1100  já foram identificados. Atualmente, 11 terreiros são tombados como patrimônio cultural.

A manutenção dos quilombos passa a ser uma necessidade coletiva do exercício da cidadania, respeitando valores ancestrais e de resistência. Mesmo assim, seus territórios são visados por grandes produtores de soja, grileiros, madeireiros, entre outros feitores de atividades extrativistas, que aproveitam a brecha legal do não reconhecimento para abocanhar uma terra, para eles, disponível. 

“Existe uma série de ameaças à manutenção e à cultura destes territórios. Geralmente essas ameaças estão impostas pela exploração do capital”, explica a coordenadora geral de Identificação e Reconhecimento do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) Vanessa Pereira. A disputa da terra passa pela formação histórica brasileira, em que pessoas negras tiveram seus direitos negados e desrespeitados sistematicamente. 

Pela legislação, quilombos e terreiros podem ser tombados desde 1937. No entanto, a tramitação é rígida e burocrática, o que acaba, na prática, afastando as comunidades do tombamento. O tombamento é um processo de reconhecimento e, assim, preservação do patrimônio cultural brasileiro. Podem ser tombados prédios históricos, paisagens, assim como instrumentos e mesmo cidades históricas. Segundo a lei, os bens tombados não podem ser modificados ou destruídos sem a autorização do Iphan. 

Acervo de memória da Comunidade Quilombola de Mesquita, presente na região centro-oeste há mais de 270 anos (Foto: José Cruz/Agência brasil)

No Dia da Consciência Negra, 20 de novembro, o Instituto deve lançar uma portaria que regulamenta o tombamento constitucional de comunidades quilombolas. A nova portaria deve garantir uma maior autonomia para as comunidades quilombolas na salvaguarda, além de facilitar o processo. 

“A lei de 1937 impõe várias responsabilidades ao Iphan em termos de fiscalização. O Iphan precisa estar fiscalizando o tempo todo aquele bem. No caso dos quilombos, a gente só vai exercer essa fiscalização sobre os bens quando os quilombolas apontarem que eles desejam que o Iphan faça”, explica Vanessa.

Segundo a diretora ,“nós vamos consultar a comunidade, se elas querem seguir pelo tombamento de 1937, que é mais rígido, ou se elas querem ir para esse tombamento constitucional, que ele é mais flexível na questão da construção das diretrizes de preservação”. Por exemplo, um quilombo pode vir a ser tombado e, dentro dos itens e ações a serem preservados, há a possibilidade de constar práticas religiosas, agrícolas, musicais. Os próprios quilombolas vão apontar os elementos naturais e arquitetônicos dentro da comunidade que eles consideram importante preservar.

Junto à certificação pela Fundação Palmares, o  processo de tombamento funciona como mais uma camada legal de resistência frente às ameaças dos territórios, que passam por práticas como o racismo religioso e a especulação imobiliária. “Temos invasões de grandes empreendimentos no nosso território, em que várias empresas que favorecem a especulação imobiliária e grilagem, esses empreendimentos devastam nossos territórios. Com o tombamento, não vão conseguir invadir nosso território”, alerta o coordenador executivo da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ/RS), José Alex Mendes. 

Em Porto Alegre, por exemplo,  o Quilombo Kédi, localizado em área nobre da cidade, próximo a um Shopping Center, é uma das localidades que sofre com a especulação imobiliária. O território foi certificado no início do ano pela Fundação Palmares, tendo iniciado em 2021 o processo de autorreconhecimento quilombola. No Rio Grande do Sul, existem 95 municípios com quilombos, de acordo com o Atlas da Presença Quilombola em Porto Alegre, documento produzido por pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs).

Terreiro do Axé Opô Afonjá, Salvador (BA) tombado pelo Iphan em 2000 (Foto: Iphan/divulgação)

Já com relação aos terreiros, são 11 os territórios tombados até hoje pelo Iphan. Na Bahia, o Terreiro Casa Branca, primeiro terreiro a ser tombado no país, em 1986, conseguiu garantir a interrupção de uma obra próxima à casa de religião, que invadia a privacidade deste bem cultural. Isso só aconteceu porque o espaço teve parecer elaborado pelo Iphan, que ajuizou a ação junto à Advocacia Geral da União. A decisão em caráter liminar pela Justiça saiu em setembro deste ano. 

“O Casa Branca é um exemplar típico do modelo básico jeje-nagô, sendo o centro de culto religioso negro mais antigo de que se tem notícia da Bahia e do Brasil, considerado com a matriz da nação Nagô. É possível ligar suas origens à Casa Imperial dos Ioruba, representando um monumento onde sobrevive riquíssima tradição de Oió e de Ketu, testemunho da história de um povo”, explica o Iphan em nota no site.

Apesar de ser ferramenta importante de proteção legal, o baixo número de tombamento de terreiros pode ser explicado pela burocracia do processo, como aponta a pesquisadora de Patrimônio Cultural e Políticas de Igualdade Racial, Desireé Tozi,  no artigo “De que serve um tombamento? Por uma perspectiva etnográfica dos processos de tombamento de terreiros de candomblé”. “O IPHAN não dá espaço para a valoração de contribuições materializadas que os terreiros têm, por exemplo, para as formas de morar e construir em cidades como Salvador ou Rio de Janeiro”, escreveu a pesquisadora no artigo publicado em 2017. 

Consulta pública ajuda na construção coletiva para proteger o território

Casa quilombola (Foto: Marcelo Casal JR/Agência brasil)

O texto da nova portaria do Iphan sobre o tombamento constitucional dos quilombos considera esses aprendizados e foi construído coletivamente por meio de consulta pública e visitas do órgão às comunidades quilombolas. De acordo com a diretora geral de Identificação e Reconhecimento do Iphan, Vanessa Maria, “entende-se que os habitantes das comunidades precisam ser consultados e que o processo deve ser entendido por todos”. 

Um quilombo pode ser certificado e reconhecido pela Fundação Cultural Palmares e pelo Instituto Nacional de Colonização e de Reforma Agrária (Incra), assim como tombado pelo Iphan. Os terreiros só podem ser tombados. Caso um território tenha presença quilombola e também comporte um centro de religião de matriz africana, a comunidade escolhe por qual via fará o tombamento. 

“Se ela quer ser protegida por sua característica de quilombo, ela vai entrar nessa portaria nova. Se ela quiser ser protegida por sua característica de terreiro, ela entra pela Lei de 37”, explica Vanessa. A diferença está na forma de construção da proteção. Enquanto a legislação do século passado estabelece diretrizes mais rígidas, a nova portaria permite que as comunidades informem ao órgão federal o que querem que seja preservado de forma horizontal. 

Quando perguntada sobre a demora da criação da portaria que permite uma construção coletiva de tombamento, Vanessa responde que essa demora no entendimento é fruto de um racismo institucional. “No Iphan e no resto do Brasil”, ela argumenta, “conseguimos produzir esse conhecimento por causa de políticas afirmativas e de outras formas de levar pessoas periféricas ao centro de produção de conhecimento”. 

Terreiros tombados no Brasil: 

  • Terreiro da Casa Branca, Salvador BA, 1986 
  • Terreiro do Axé Opô Afonjá, Salvador BA, 2000 
  • Terreiro do Alaketo, Ilê Maroiá Láji, Salvador BA, 2004 
  • Terreiro Casa das Minas Jeje, São Luís MA, 2006 
  • Terreiro de Candomblé Ilê Iyá Omim Axé Iyamassé, Salvador BA, 2006 
  • Terreiro de Candomblé do Bate-Folha, Salvador BA, 2006 
  • Terreiro de Candomblé Ilê Axé Oxumaré, 2014 
  • Terreiro Zogbodo Male Bogun Seja Unde (Roça do Ventura), Cachoeira BA, 2015 
  • Terreiro Culto aos Ancestrais – OMO Ilê Agbôulá, Itaparica BA, 2017 
  • Terreiro Tumba Junsara, Salvador BA, 2018? 
  • Terreiro Obá Ogunté – Sítio Pai Adão, Recife PE, 2019 

Tombamento provisório: 

  • Terreiro Aganjú Didê da Nação Nagô-Tedô (Ilê Axé Icimimó Aganju Didè), Cachoeira BA 
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Repórter e fotógrafa. Escreve prioritariamente sobre cultura e meio ambiente, culturas populares e educação
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