Marta Kalunga (Foto: divulgação)

Com museus e centros culturais, memória dos povos do campo resiste às tentativas de apagamento

A história de uma comunidade também existe em como ela consegue manter sua memória. É isso que fala Bárbara Matias, indígena da etnia Kariri e doutoranda em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Sua fala ecoa o conceito de museologia social, que tem como cerne “a defesa de que o museu seja apropriado como uma ferramenta de uso comunitário e participativo, para que as pessoas pesquisem, compreendam, salvaguardam e divulguem suas próprias histórias nos seus próprios termos”, de acordo com o Ibram. 

Na cidade de Lavras da Mangabeira, no Ceará, a varanda da casa dos pais de Bárbara é um ponto de encontro de indígenas do povo Kariri. No final dos anos 1990, o grupo foi dividido pela construção de um açude, separando a comunidade do Marreco, como são chamadas as pessoas do povo de Bárbara. Ninguém pôde ficar no espaço de moradia original. Não houve qualquer comunicação com o povo que lá habitava para a construção do açude de Rosário. A região foi alagada e 80% das famílias saíram do seu território. 

A sacada que serve de encontro e salvaguarda da memória da comunidade (Foto: divulgação)

Bárbara, anos mais tarde, percebeu que sua comunidade foi vítima de crime ambiental, já que sequer foram questionados sobre a obra. A separação da comunidade foi traumática. Muitas mulheres ficaram grávidas dos trabalhadores da construção civil, que, após o término das obras, regressaram às suas casas originais. Agora, crianças brincam sem terem conhecido o pai no vilarejo de casas iguais. Segundo Bárbara, a depressão da comunidade aumentou muito após a construção do açude. “Ficamos adoecidos psiquicamente”, comenta. 

Mais tarde, integrantes de seis famílias decidiram voltar para o outro lado do rio e reconstruir suas vidas e, desde então, a comunidade vive o processo de retomada de sua própria história. Hoje, a varanda de Bárbara é um ponto de memória certificado pelo Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) e um espaço de encontro da comunidade.

Projeto arquitetônico do Museu-Vivo das Marrecas Kariri (Foto: divulgação)

O entendimento da comunidade Marreco é que os museus são espaços de pertencimento de um povo e de sabedoria. “Antes de ter espaço físico, a gente quer entender o nosso corpo enquanto museu, enquanto guardiões de uma sabedoria”, define Bárbara. O projeto do memorial, assim, nasce também com a força da autodeclaração indígena do grupo. 

Sem um espaço ampliado, a comunidade também não consegue manter o acervo de itens e muitos objetos estão nas casas dos moradores, conta Bárbara. Outras peças, como artefatos de um engenho de farinha, ainda precisam ser recuperadas. O Museu-Vivo das Marrecas Kariri é um sonho em conjunto para reflorestar a memória indígena do território. O projeto arquitetônico do espaço físico já existe desde 2018, mas faltam mais de R$ 100 mil para a realização da obra. A proposta conta com uma sala de artefatos, uma cozinha comunitária e um banheiro. 

“Os mais velhos contam que somos descendentes das marrecas e os mais jovens não levavam isso a sério”, narra Bárbara. Sua geração foi à escola e voltou com perspectivas colonizadoras sobre sua própria história quer perduraram por algum tempo. “Ficamos emburrecidos de nós mesmos”, comenta. Desde 2013, existe legislação sobre o ensino de cultura e história indígena em escolas da educação básica. Mesmo assim, isso não é cumprido – e materiais didáticos apresentam falhas quando retratam os povos originários. Quando um antropólogo amigo de Bárbara iniciou um trabalho de observação de campo da comunidade do Marreco, ela teve o ponto de virada em relação à compreensão de sua ancestralidade. 

O espaço é um dos contemplados pelo edital Pontos de Memória, do Instituto Brasileiro de Museus, que premiou iniciativas da museologia social de todo o país. O resultado foi publicado em 2023, mas os contemplados ainda aguardam a liberação dos R$ 40 mil oferecidos pelo programa. Ao todo, R$ 4 milhões foram reservados para premiar 60 iniciativas entre cerca de 300 inscritas.

Memorial salvaguarda uma história de luta

Ato em memória a João Pedro Teixeira (Foto: Ligas Camponesas/divulgação)

No movimento das Ligas Camponesas, o trabalho de retomada da memória existe desde os anos 1990, com a perspectiva de criar um espaço para conexão das lutas pelo campo. Hoje, 35 famílias moram no assentamento, criado nos anos 1960 pelo camponês João Pedro Teixeira em Sapé, interior da Paraíba. 

Teixeira foi assassinado em 1962 com cinco tiros de fuzil em uma emboscada armada por latifundiários. Ele foi o fundador do movimento das Ligas Camponesas. Sua luta era pela reforma agrária e por melhores condições de vida para todos. Todo ano, na data de sua morte, ocorre o ato da memória camponesa no estado, com apresentações culturais de artistas populares locais.

Em troca das atividades laborais, os grandes proprietários de terra cediam espaços para moradia, barracos e casebres, e para plantio e colheita. Ou seja, os camponeses, tecnicamente, não possuíam nada. Eles ficavam dependentes dos donos das terras. Sem terra, sem vida, sem morte. “Por essa negação das condições de vida, do luto, surgem as Ligas Camponesas”, explica a presidente da ONG Memorial das Ligas e Lutas Camponesas, Alane Lima, contando que o movimento foi sufocado pela ditadura militar, mas a resiliência das famílias manteve vivas as Ligas Camponesas. 

É essa história de luta e resistência que o Memorial das Ligas e Lutas Camponesas salvaguarda desde 2001. São cerca de 400 itens salvaguardados ou exibição no memorial. O acervo é composto de recortes de jornal, fotografias, documentos de pesquisa e artefatos. A casa em que o museu está situado fica a menos de um quilômetro da Fazenda das Antas, pertencente a uma família latifundiária da região. Ela é ponto central do conflito pela terra da comunidade e foi expropriada apenas em 2014. Nos atos em memória de João, a marcha sai da Fazenda e caminha até o museu. “O ato é de memória, mas também de resistência”, define Alane. 

Memorial das Ligas e Lutas Camponesas, em Sapé (PB) (Foto: divulgação)

Nos últimos anos, o ponto de memória foi alvo de violência. Em 2018, foram furtados os computadores e uma máquina fotográfica do memorial. O chão do museu ficou cheio de santinhos eleitorais de um candidato vinculado às oligarquias locais. Essa foi a única vez que a casa foi invadida, conta Alane. A falta de materiais dificultou momentaneamente as operações logísticas. Além disso, são relatadas tentativas de silenciamento das atividades da ONG no município. As pessoas que trabalham no local são os próprios moradores do assentamento. Mesmo assim, o memorial resiste e fica aberto à visitação. 

Alane conta que o que auxiliou na manutenção das atividades foi a presença do memorial em mídias sociais. “O que salvou foi a nossa atuação nas redes sociais. A gente ousou falar de tudo que a gente faz. Na medida que a gente tem condição, a gente vai fazendo a divulgação, mais gente conhece nossa história e auxilia, de alguma forma”. Ainda neste ano, a previsão é que ocorra o encontro dos pontos de memória e de museus populares da Paraíba. O objetivo é compartilhar suas práticas conjuntas de preservação e construção de suas histórias. “E um povo sem memória é um povo sem história”, finaliza Alane. 

Memória e geração de renda da mulheres Kalunga 

“Eu sou a segunda mulher Kalunga que mora no centro da cidade”, conta a quilombola Marta Kalunga. Ela gerencia uma pousada na cidade de Cavalcante, interior de Goiás. No mesmo terreno, está a Casa Memória da Mulher Kalunga, ponto de memória que une as mulheres da comunidade. Em 1991, o governo de Goiás reconheceu a área da comunidade Kalunga enquanto Sítio Histórico e Patrimônio Cultural. No estado, cerca de seis mil Kalunga ocupam um território de 253,2 mil metros quadrados. Eles são o maior grupo quilombola goiano.

Casa da Mulher Kalunga, em Cavalcante (GO) (Foto: Camila Alves/Divulgação)

Foi nos anos 2000, quando voltou para Cavalcante para refazer sua vida na terra, que Marta traçou os primeiros passos para o que hoje é o ponto de memória. Um documentário sobre a sua história foi lançado em 2023, eternizando na telona sua trajetória que perpassou por violência na infância à tentativa de refazer a vida em Brasília – antes de encontrar conforto e sentido no desejo de se reunir às mulheres Kalunga. “Depois do filme, as portas foram se abrindo”, explica Marta. A partir daí, com a visibilidade, começou o projeto para a Casa Memória da Mulher Kalunga, espaço que também preserva  a arquitetura quilombola e traz diversos itens artísticos no acervo.

Em agosto de 2023, a Casa Memória da Mulher Kalunga foi reconhecida como ponto de memória pelo Ibram e vai receber seu primeiro recurso oficial pelo serviço prestado de preservação da memória das mulheres Kalunga, após ser contemplada no edital do Instituto. Ainda assim, a casa passou por vários obstáculos, como os diversos episódios de assédio de pessoas interessadas em comprar o imóvel e também o machismo que as mulheres que frequentavam a casa sofriam. 

“Eu tinha muita vontade de abrir algo com as mulheres. E foi quando foi crescendo a lojinha, as mulheres foram se empoderando, mas os maridos vinham aqui, pegavam o dinheiro das mulheres, não passava para as mulheres”, relembra. Elas fizeram uma reunião e decidiram que dali para frente seriam donas de seu próprio dinheiro.

Marta entende que a geração de renda de forma autônoma para mulheres garante uma vida digna. Assim, a casa agora promove oficinas de artesanato para quilombolas, com a possibilidade de expor sua mercadoria para venda. “Encontramos as mulheres que moram na comunidade uma vez ao mês para a confecção e venda dos seus produtos”, explica Marta. A geração de renda coletiva feminina é um ponto de partida para a construção de novas histórias das mulheres Kalunga. “E aqui é um local de contos nossos, é onde eu trago as rezas, as aulas, é onde estamos sempre.”

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Repórter e fotógrafa. Escreve prioritariamente sobre cultura e meio ambiente, culturas populares e educação
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