A descoberta de uma gravidez indesejada dá início a Levante, filme recém estreado no Brasil. Às vésperas de um campeonato de vôlei decisivo para seu futuro como atleta, a adolescente Sofia (Ayomi Domenica), uma jovem atleta de 17 anos, se depara com a dura realidade da criminalização do aborto no Brasil. Ao tentar interrompê-la de maneira clandestina, a adolescente se torna alvo de um grupo conservador e encontra na força do coletivo maneiras de sobreviver. Dirigido por Lillah Halla, e co-roteirizado por María Elena Morán, o longa-metragem vem de uma trajetória de prêmios nacionais e internacionais, como o Festival do Rio, o Mix Brasil, o Festival de Cannes e o de Roterdã.
A primeira ideia para o filme começou quando a diretora – ela/dela/elu/delu -, ao lado da co-roteirista do filme, atravessaram juntas a fronteira do Brasil e do Uruguai. A divisa muda tudo em relação a direitos reprodutivos, já que no Uruguai o aborto é um direito de saúde público desde 2012. Segundo a OMS, um total de 73,3 milhões de abortos seguros e inseguros ocorreram no mundo anualmente entre 2015 e 2019. Na América Latina, três em cada quatro abortos são feitos de forma insegura. Por outro lado, é também na América Latina onde parece haver a maior efervescência de reivindicação do direito.
“As fronteiras fluidas são importantes no filme”, aponta a diretora. E não só os limites territoriais são alargados no filme, mas, em também os de outros temas, como gênero e sexualidade. Através das imagens, desde os primeiros minutos, o filme não só retrata mulheres cisgênero, mas, a partir da história de Sofia, pessoas trans, não-binárias, travestis, podem também compor o filme, e são retratadas com complexidade, e, logo com dignidade. Não só o elenco, mas a maioria da equipe é composta por mulheres e pessoas LGBTQIA+s.
O resultado visto na tela é fruto de um longo trabalho de preparação de elenco, que segundo atores e a própria diretora, buscou ser o mais horizontal possível. Durante vários meses de 2021 e 2022, a equipe se concentrou e viveu junto em uma mesma casa. A preparação para as gravações aconteceu durante o período da pandemia, então o vínculo do elenco surgiu daí, por meio desse fortalecimento de laços. Outra etapa foram os treinos de vôlei, em que o elenco recebeu treinamento como uma equipe profissional, com treinador e rigor técnico.
Foram dez anos entre o primeiro rascunho que Lilah fez do filme até o lançamento em 2023. O principal entrave relatado foi a captação de recursos, estagnada durante os últimos anos de desmonte cultural no país, em que o MinC foi extinto e a Ancine desmontada. Para a diretora, o filme foi se transformando ao longo dos anos, e algumas das próprias imagens presentes bebem de cenas políticas marcantes do presente recente.
A diretora recebeu muitos questionamentos sobre a temática do filme. “A gente ouviu muitas vezes de patrocinadores e produtores que esse era uma ‘assunto de menina’. Daí começamos a hackear essa história e pensar: como tornar essa história de todes?”, contou, em resposta à pergunta do Nonada na coletiva de imprensa. Realizado com financiamentos internacionais, tornando-se uma coprodução entre Brasil, França e Uruguai. “A gente ouvia muito: mas por que mais uma história sobre aborto? Acabou de sair uma. No começo eu ficava ofendida, mas depois comecei a me perguntar: mas por que mais uma história sobre traição, sobre coração partido?”, questiona.
O filme aborda, sobretudo, uma rede de apoio a qual a protagonista, Sofia, faz parte, em que amigues mostram ser sua família. Para a atriz Onna Silva (Nicolle) – ela/dela- o longa é uma história que humaniza todos os personagens envolvidos nela. “É algo que acontece com vizinhas, primas, mães, tias. E a gente só vai conseguir se tivermos uma rede”, comenta. “É sobre contar as histórias que se passam com esses corpos, nossos e dos personagens, a partir do ponto de vista da não promiscuidade que sempre contam sobre os nossos corpos trans, pretos, LGBTs, corpos de pessoas que abortam. A importância do filme está em colocar esses corpos que são sempre vistos como promíscuos em uma rede de família, em um coletivo”, completa o ator Loro Bardot (Bel) – ele/dele/elu/delu.
Um dos acertos de Levante é apontar, do início ao fim, as questões particulares do (não) direito ao aborto em nosso país. Os cultos evangélicos e as ciladas para culpabilização social de quem pensa em abortar são retratados de forma corajosa no filme. Se desde a idealização, a diretora e roteiristas pensaram em falar sobre fronteiras, nesse aspecto o longa cumpre um papel relevante de mostrar até onde correntes fundamentalistas cristãs são capazes de ir para cercear a liberdade do corpo de mulheres e pessoas que podem abortar.
Levante evidencia que as diferentes condições estruturais e sociais mudam significativamente o direito à justiça reprodutiva. Lorre Motta (Ciano) -ele/dele- destaca que isso se reflete na própria trama da personagem principal. “Quando uma pessoa preta busca saber sobre um aborto, ela é imediatamente encontrada, notificada. Toda perseguição que a Sofía e o grupo dela sofrem é por ela ser hipervisível, porque uma pessoa branca, cisgênera, vai fazer isso da forma mais anônima possível. Jamais seria condenada pela lei e jamais sofreria a violência que corpos pretos e/ou trans sofrem. A gente está exposto até demais.”
A atriz Karina Ishida (Mayumi) – ela/dela – explica que “o que mais inspira é quebrar estigmas e parar de fingir que as coisas não acontecem, ou que é só com algumas pessoas”. Em um dos lançamentos do filme, a equipe perguntou para o público da sala de cinema quantas pessoas conhecem alguém que já havia abortado, e, elas contam, que praticamente todo o cinema ficou todo de pé. Vale destacar que em nenhum momento é relevante à narrativa o modo como Sofia engravidou. A decisão dela é o ponto de início e, mesmo que esse seja apenas um detalhe, a escolha de não mostrar o que aconteceu antes diz muito sobre o argumento central do longa-metragem.
A trilha sonora, composta por Maria Bertoldo, com participação especial de Badsista e Juçara Marçal, também dá o ritmo do filme e ocupa um lugar central na trama. As artistas contam que as próprias ideias para as músicas surgiram a partir de playlists colaborativas entre a equipe durante a preparação de elenco. É destaque também a fotografia, dirigida por Wilma Esser, em que as imagens revelam gozo e alegria sem fetichizar corpos LGBTQIA+s. É possível sentir através do que vemos que as imagens são construídas de dentro para dentro, e não a partir de um olhar exterior, cis-masculino.
Embora a presença feminina e dissidente seja marcante e maioria, o personagem do pai João (Rômulo Braga) também ganha importância no desenrolar de Levante. Lillah conta que a entrada desse personagem no roteiro também foi gradual, após uma série de pitches e reformulações. A presença do pai rende alguns dos melhores diálogos do filme, como o momento em que Sol (Grace Passô), treinadora do time, o aconselha: “Ou você ajuda ou você atrapalha”. O vínculo entre pai e filha também reforça o compromisso do filme em mostrar que o aborto é um tema para todas as pessoas.
O longa é repleto de imagens que acrescentam camadas oníricas e afetivas. Ao contrário do que se pode esperar em uma narrativa vendida pelo conservadorismo como violenta, o filme abre espaço para um mel que escorre, através de planos detalhes muito bem escolhidos, e de uma cumplicidade que fica visível, e encoraja, que assiste. Em resumo, o filme faz diversas defesas, que vão além do direito de decidir e existir. Defende também um cinema em que corpos marginalizados não sejam vitimizados na tela, mas que possam ser vistos como dignos de amor, afeto, doçura, e família. Em Levante, o coletivo não é uma utopia.