Foto: Cine Vida/divulgação

Voluntários da cultura promovem arte e acolhimento às crianças em abrigos no RS

Porto Alegre (RS) — Em uma porta decorada com cartolinas coloridas do abrigo Centro Vida, em Porto Alegre, um desenho com os personagens da animação O Meu Malvado Favorito anuncia que a próxima sessão do filme será às 16h. Outro cartaz, com letras de várias cores diz “Homem de Ferro “Hoje!Aqui!”. Os desenhos compõem a porta de entrada de uma sala que se tornou uma espécie de sala de cinema, com tapetes, almofadas e um projetor no local que hoje é o maior abrigo de pessoas desalojadas na Zona Norte de Porto Alegre, vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul.  Até o momento, segundo a Defesa Civil do RS, mais de 77 mil pessoas estão em abrigos no estado.

Localizado no bairro Rubem Berta, o abrigo conta com cerca de 700 pessoas, entre adultos, crianças e idosos, moradores de bairros como Sarandi, Anchieta e Navegantes. Entre os mais de cem espaços de acolhimento em funcionamento na cidade, o Centro Vida é um dos que concentra maior número de crianças. Ao perceber essa realidade, as realizadoras de audiovisual, Daniela Mazzilli e Maria Angélica dos Santos, tiveram a ideia de realizar uma sessão de cinema para o público infantil. A proposta surgiu já que ambas trabalham no diálogo entre cinema e educação através do projeto de Alfabetização Audiovisual, em ação desde 2008, e anualmente realizado na Cinemateca Capitólio.

No dia seguinte à primeira ida ao abrigo, as produtoras arrecadaram os equipamentos necessários para uma sessão de filmes, como projetor, caixas de som e pen drives com filmes, e convidaram profissionais voluntários do audiovisual gaúcho para se somarem à equipe. 

A iniciativa, em poucos dias, se multiplicou em outros alojamentos e até agora Monstros S.A, Rei Leão, Turma Da Mônica, Mágico de Oz e Homem Aranha já são alguns dos títulos exibidos em sessões que acontecem diariamente no abrigo. O projeto ganhou o nome de Cine Vida e, em menos de uma semana, já foi replicado em pelo menos cinco abrigos diferentes da Capital. 

Foto: Cine Vida/divulgação

O grupo conta com 40 voluntários, divididos em pequenas equipes que cuidam de partes diferentes do projeto. Segundo as organizadoras, uma rede de realizadores gaúchos e brasileiros têm se formado para disponibilizar filmes para serem exibidos ao público infanto-juvenil. Outra parte da equipe cuida do planejamento, articulando recursos e materiais para as exibições, como tatames, cobertas e almofadas. A proposta é que o momento do filme seja um espaço seguro para as crianças, em meio aos tantos desafios emocionais que estão vivendo. 

Para Daniela Mazzilli, coordenadora  de cinema e audiovisual da Secretaria de Cultura de Porto Alegre, o Cine Vida tem proporcionado um momento de acolhimento às crianças. “O cinema tem o lugar do acolhimento, da fantasia e da possibilidade de sair dessa realidade tão dura da calamidade e da perda”, comenta. Ela percebe que as exibições diárias têm criado uma rotina para as crianças, que já aguardam ansiosamente a hora do filme. 

Entre os desafios, a coordenadora cita a escolha dos filmes que agradem uma faixa etária ampla. “Estamos tentando ter uma diversidade de filmes, porque recebemos crianças de dois anos até quinze adolescentes de quinze. E é muito legal ver como nos reunimos, por exemplo, para assistir a primeira versão de Mágico de Oz, com imagens em preto e branco, e eles adoraram.” Como a periodicidade, a equipe do projeto consegue estabelecer vínculos com as crianças, conhecê-las e ainda planejar filmes específicos para os grupos. 

Giordano Gio, diretor e roteirista, e voluntário no projeto, lembra que o cinema é uma experiência que tem como característica a construção de memórias de afeto. “Eu não acho que o cinema oferece um ‘escape’ do mundo real, mas ele traz um conforto e também ressignifica esse momento que as crianças estão vivendo nos abrigos. O cinema, enquanto experiência coletiva, reúne as crianças em uma única atividade e cria memórias afetivas.”

Para Daniela, a prioridade é manter o Cine Vida enquanto os abrigos forem necessários. “Queremos manter permanentemente a ação, mesmo que o estado passe um mês ou mais nessa situação. Estamos tentando reunir forças para continuar a rede de voluntários.” Há também o desejo de expandir os públicos. 

Foto: Mariah Pinheiro/acervo pessoal
A arte faz parte das infâncias 

A estratégia de montar um espaço específico dentro dos abrigos dedicado a atividades artísticas é percebida por outros profissionais da arte-educação. Mariah Pinheiro, professora de artes e educadora em instituições culturais, começou a voluntariar no CTG Sentinela dos Pampas, no bairro Partenon, onde após alguns dias trabalhando no mesmo local, desenvolveu propostas artísticas.  

As necessidades imediatas do espaço eram focadas nos cuidados de saúde, já que muitas pessoas chegavam com ferimentos aos abrigos. Aos poucos, Mariah foi conhecendo o grupo de crianças. “Elas achavam que eu era médica, por estar usando máscara e em meio a tantos profissionais de saúde. Quando souberam que eu era professora, ficaram muito alegres. Começamos de forma espontânea brincando que era uma escola e organizamos uma sala de artes”, conta. 

Ter um espaço próprio, mesmo que improvisado, é na percepção de Mariah, fundamental para o bem-estar das crianças em situação de desalojamento. Com os dias, a arte-educadora levou pastas para os meninos e meninas guardarem seus trabalhos, como acontece nas aulas de aulas, e também foi identificando os interesses do grupo no local. Segundo ela, desenhos para colorir foram os mais pedidos. A professora também convidou outros profissionais da cultura para as atividades, desenvolvendo jogos de teatro, brincadeiras com os nomes das crianças, contação de histórias e criação de fanzines. 

Foto: Mariah Pinheiro/acervo pessoal

Ela destaca a importância do trabalho continuado com o mesmo público, em especial para voluntários que atuam diretamente com o público infanto-juvenil. “Um dia já é suficiente para você fazer muitos laços com as crianças. Está todo mundo muito emocionalmente abalado e as crianças estão procurando lugares de segurança”, relembra. “Por isso, é importante a gente continuar indo, porque imagina todo dia chegar uma “tia” nova e as crianças precisarem contar sempre a mesma coisa sobre si, seus nomes, e sobre o que elas gostam. É complexo para as crianças o fato de todo dia ser um recomeço.” 

Segundo ela, as atividades artísticas podem ser aliadas neste período de incertezas como formas de cuidado e atenção às infâncias. Ela explica que, mesmo professores de outras áreas podem utilizar essas estratégias. “A arte faz parte das infâncias, pois nela inventamos mundos, trabalhamos a resiliência, a auto-expressão e os sentimentos. A arte é interdisciplinar e nos ajuda a falar com as crianças sobre o que elas gostam, tanto no sentido terapêutico quanto no sentido de buscar outras realidades quando a nossa está muito pesada.”

Foto: Giordano Gio/reprodução
Construção de vínculos

Em Gravataí, cidade da região metropolitana de Porto Alegre, a professora de teatro Gabriela Lemos tem atuado contando histórias. “Estamos nesses espaços também para trazer segurança e proteção para as crianças”, ressalta. Desde a semana passada, surgiram diversos abrigos exclusivos para mulheres e crianças, após denúncias de violências e abusos dentro desses espaços. 

Para a educadora, as crianças já estão vivendo um período muito atípico e as atividades artísticas precisam ser pensadas junto com a construção de uma confiança. “Em cada abrigo, precisamos entender primeiro o que as crianças querem e precisam”, recomenda. “Eu não cheguei todos os dias e propus contação de histórias. Primeiro, precisamos construir uma confiança, conhecer elas e deixar que nos conheçam para depois propor uma aula de teatro ou qualquer atividade.” . 

Com a previsão de que o nível da água em várias cidades do Estado só deve baixar em junho, a educadora reforça que os vínculos são vitais. “A criação de um cotidiano é muito importante, além da alimentação e higiene. As crianças precisam de uma rotina de vida. Além de terem passado por um trauma, é necessário lembrar que elas continuam sendo crianças.” 

Dicas para voluntários ou pessoas que querem ajudar:
Fonte: Mariah Pinheiro, professora de artes
  • Preferir doação de materiais escolares/artísticos coletivos. Ou seja, evitar doar itens individuais, e que não podem ser compartilhados entre as crianças  
  • Procurar se informar sobre o número de crianças nos abrigos e seus interesses 
  • Evitar doar materiais de tamanhos muito pequenos destinados às crianças, como palitinhos
  • Evitar materiais cortantes 
  • Evitar tinta, glitter e argila, pois são materiais que necessitam de orientação, água, e lavagem de roupas, e poucos abrigos têm essas condições
  • Preferir materiais como canetinhas, caixa de lápis de cor, massinha de modelar, assim como livros – em especial livros de colorir, e livros com imagens 
  • Conferir se os livros doados fazem sentido para o momento 
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Repórter do Nonada, é também artista visual. Tem especial interesse na escuta e escrita de processos artísticos, da cultura popular e da defesa dos diretos humanos.
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