Ilustração: Katarina Scervino/Nonada Jornalismo

O fazer literário e seu papel de alteridade: um caminho de conhecimento e compaixão

Por Myriam Scotti*

Ao refletir sobre os motivos que me levaram à escrita, lembrei-me de Roland Barthes, filósofo que, ao elaborar “O prazer do texto”, teceu que quem escreve adota a linguagem de uma criança que mama no peito: imperativa e automática. Traçando, então, um paralelo com o meu fazer literário, percebo que, quando minha escrita alcança um ritmo de fruição, é essa a sensação que me abate: a palavra se faz imperativa e automática. Escrever se torna em mim, portanto, uma necessidade. Necessito transpor para o papel uma linguagem que me permita acessar o real que me escapa. Humanos que somos, desde os tempos mais longínquos, precisamos registrar a realidade, numa eterna busca de se captar o agora, o qual já se modificou no instante em que tentamos traçar as primeiras linhas de registro. 

Por isso, evoco as palavras da escritora espanhola Rosa Montero quando diz: “a obra está sempre à espreita, assim como a loucura. A questão é saber quem acaba ganhando.” Não à toa, desde a adolescência, estou ciente de que é durante a escrita que a minha loucura se dissolve. Dentro do meu desamparo, escrever surge não apenas como defesa, mas, sobretudo, como um modo de sobrevivência a mim mesma, pois a realidade é, por vezes, insuportável. Ao finalizar uma obra, sinto-me oca, fico em estado de um vazio tal que retorno para a incompletude, a qual me arremessa diretamente para uma nova angústia, que, por sua vez, me convocará a escrita de outra obra para assim ser dissipada, ou como bem aponta o psicólogo Philippe Brenot, em seu livro “O gênio e a loucura”, “a obra nasce da perda”.

Diante disso, não posso deixar de citar neste artigo Freud e sua paixão pela literatura. Ele acreditava que o artista antecipava o que a ciência descobriria depois, talvez por isso pensasse na psicanálise através de personagens literários. Suponho que isso possa ocorrer porque o EU que escreve se desarma completamente da razão e se entrega ao texto. Mais que isso, nós escritores acabamos tomados pela obra. Ao mesmo tempo em que cito o pai da psicanálise, também me reconheço na teoria winnicottiana, tendo em vista que a maternidade me carregou para tal busca e a consequente compreensão de que uso a escrita como meu objeto transicional. 

De fato, valho-me da escrita para elaborar melhor os atravessamentos da vida. Aliás, quem dera na vida eu fosse tão segura quanto sou na escrita. Por isso, sinto que, enquanto crio, também aprendo, também me auto-analiso e, portanto, curo-me. Um processo longo, o qual nem sempre é fácil de se enveredar, pois sei que durante a travessia sofrerei, embora saiba que ao final sempre saio ganhando. Encaro a escrita tal como o personagem Riobaldo de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Ou governamos o sertão, ou é ele quem nos governa. E o sertão, sabemos: é dentro da gente. 

Durante a escrita do meu romance Terra Úmida, por exemplo, sofri muitas transformações e passei por auto-análises dolorosas, pois, embora se tratasse de ficção, em alguns momentos me vali da minha própria experiência para narrar certos acontecimentos, como na passagem sobre a morte de uma personagem, a qual, por ser judia, teria um ritual específico até ser enterrada.

Para escrever esse capítulo, obriguei-me a revisitar a morte da minha avó judia e refiz o percurso de toda aquela semana de dezembro de 2008. Descrever o processo de lavagem do corpo da personagem me exigiu dias de idas e vindas na escrita deste capítulo por ser martirizante demais entrar em contato com as lembranças do dia em que eu mesma estava lavando o corpo de alguém que eu amava tanto. Mas, ao final, a sensação foi de um alívio-cura. Despejar a dor no papel, de certa forma, cicatrizou o que ainda estava doendo. Momento em que a escrita acaba se tornando terapêutica para muitas pessoas e não apenas para escritores.

Em outro ponto do romance, escrevo sobre as dores da personagem durante suas vivências maternas. Nessa fase, eu mesma ainda me encontrava em estado puerperal e lembro o quanto era difícil sair da personagem e voltar para casa e pegar o meu bebê no colo. Mas, a escrita, neste caso, foi fundamental para eu compreender o que eu repudiava e me recusava a ser como mãe, uma terapia às avessas. E, sendo assim, vejo-me apta para afirmar que não crio enquanto escrevo e sim me encontro, pois o EU que escreve não sou eu, ou, como melhor disse Roland Barthes, “o prazer do texto é esse momento em que meu corpo vai seguir suas próprias ideias – pois meu corpo não tem as mesmas ideias que eu. “

Porém, isso não significa separação. Ao contrário, conforme ensinou Winnicott isso é união. Afinal, entrar em contato com as dores ou mesmo imaginá-las a ponto de senti-las para então iniciar a escrita de algo, não deixa de ser uma brincadeira, uma vez que para isso, permito-me entrar em contato com a minha vulnerabilidade tal qual uma criança quando se coloca entre outras e se abre para todas as sensações de prazer ou de frustração que a brincadeira pode provocar. O que me difere dessa criança que brinca é que geralmente não consigo parar de escrever. Escrevo mentalmente o tempo inteiro, histórias e poemas dos mais diversos e isso me remete, mais uma vez, à escritora Rosa Montero, quando confessou que o escritor, ao escrever, sente-se eterno. Escrevemos contra a morte.

Entretanto, penso que da mesma maneira que sobrevivo porque escrevo, os não-escritores sobrevivem porque leem ou têm algum contato com a arte. Ou como tão bem proferiu Fernando Pessoa: “A literatura, como toda arte, é uma confissão de que a vida não basta.” Não à toa, as intersecções entre literatura e psicanálise são muitas e cada uma guarda sua importância na contribuição para a caminhada humana. Afinal, como explica a nobel de literatura Olga Tokarczuk, a narrativa pode ser encarada como um dos elementos – como o ar, a terra, o fogo e a água. 

Neste ponto, estendo o pensamento da autora para manifestar que entendo a literatura também como alimento, algo que deveria fazer parte da cesta básica de qualquer família. Corpo e alma precisam ser alimentados para que possamos evoluir enquanto espécie. Nada é mais triste que corpos-zumbis, alheios à profundidade do que é ser humano, aqueles que pelas misérias resultado da desigualdade social ou por escolha e preguiça mental não vivem, apenas passam os dias. É que viver é muito perigoso, já advertiu o nosso filósofo do sertão Riobaldo. 

Dessa maneira, penso que quando crio a narrativa, saio da minha bolha para enfrentar a complexidade do mundo que desconheço e ofereço aos leitores a oportunidade para também experimentarem sair de suas bolhas seguras e tentarem se colocar no lugar do outro, num processo de mão e contramão em que todos podem sair melhores do que quando entraram na jornada literária. “É preciso sair da ilha, se quisermos conhecer e enxergar a ilha”, já nos asseverou o escritor português José Saramago. 

Ou seja, precisamos todos ter coragem de sairmos de nós, se quisermos, além de conhecer o outro e o que nos é diverso, conhecermo-nos a nós mesmos. Um processo que eu poderia denominar de auto-alteridade, isto é, que sejamos capazes de sentir compaixão também por nós a fim de revermos nossas certezas através da arte literária. Ora, apoiada novamente em Olga Torkaczuc, “a literatura é sobretudo um “abre-te, Sésamo” que descortina os pontos de vista de outras pessoas, as visões do mundo filtradas pela mente singular de cada indivíduo.” 

No entanto, para que isso seja possível, enquanto escritora preciso exercitar o meu olhar para o mundo, ser observadora, quase fofoqueira da vida alheia. É preciso que eu me descole da minha figura e experimente o outro se quiser elaborar uma boa história. Se o meu olhar permanecer impregnado apenas da realidade que experimento e me é confortável, certamente não sairei da superfície e a histórias serão, além de rasas, vazias de humanidade. 

Além disso, escrever o outro (e escrever outras realidades) é para mim uma espécie de abrigo, onde me curo das minhas dores através das palavras. São elas que, a todo tempo, permitem-me juntar os retalhos e transformar minhas misérias em arte. Escrever é, portanto, uma escolha de me amparar na sanidade.

*Myriam Scotti nasceu em 1981, em Manaus (AM). É escritora, crítica literária e mestre em Literatura pela PUC-SP. Seu romance “Terra Úmida” foi vencedor do Prêmio Literário de Manaus 2020. Em 2021, seu romance juvenil “Quem chamarei de lar?” (editora Pantograf) foi aprovado no PNLD literário e escolhido pelo edital Biblioteca de São Paulo. Em 2023, lançou o livro de poemas “Receita para explodir bolos” (editora Patuá). Foi finalista do prêmio Pena de Ouro 2021 na categoria Conto. No ano passado, ficou em segundo lugar na categoria conto do prêmio Off Flip.

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