Em 2012, a artista visual Ilana Bar viajou o Brasil registrando a realidade de mulheres vítimas de violência sexual. As fotografias eram comissionadas para a instituição Museu da Pessoa, localizada em São Paulo, em um projeto que buscava visibilizar os índices de violações sexuais contra mulheres e meninas no país. Mais de uma década depois, os números divulgados pelo Fórum Brasileiros de Segurança Pública mostram que 258.941 mulheres foram vítimas de violência doméstica em 2023 e que 72.454 mulheres e crianças do gênero feminino foram vítimas de estupro, a maioria mulheres negras. O número equivale a um caso de estupro a cada seis minutos no país.
Durante a realização do trabalho, intitulado Hv (sigla para “histórias de vida”), a artista conheceu esses números de perto, fotografando as histórias das pessoas atravessadas pela violência. Para além das imagens que destinou ao projeto do Museu, ela realizou uma série de imagens autorais, todas com um enquadramento semelhante entre si.
São doze retratos, feitos em diferentes regiões do Brasil, que ocultam os rostos das mulheres, utilizando um recurso diferenciado: o flash. As mulheres seguram um celular sobre seus rostos, e o flash ligado estoura como um ponto de luz, que devolve o olhar para nós, espectadores. É como se a artista rebatesse a questão, dizendo: vocês precisam olhar para isso. As cenas se repetem, os anos passam, e tudo segue muito parecido.
Ilana Bar subverte o flash. O equipamento, em geral utilizado para iluminar, neste caso serve para proteger quem necessita que suas identidades sejam zeladas. Por outro lado, o excesso de luz na imagem pode franzir os olhos de quem vê. É o que intenciona a artista: “Ao mesmo tempo em que protege a identidade, também é importante para que olhemos para a questão da violência como um problema social. É um problema enorme e de todos. Não só de um indivíduo”, argumenta Ilana, fotógrafa e pesquisadora, mestre em artes pela USP. “Realizar esse trabalho mudou muito minha relação com essa realidade. Eu demorei mais de um ano pra digerir tudo que vi e ouvi, mas eu preciso falar é um assunto difícil é um assunto que precisa ser falado justamente por isso.”
As artistas que trabalham com a temática da violência contra as mulheres têm o poder sensibilizar, para além da apreensão dos números estarrecedores do Brasil. É também uma característica da fotografia e das produções artísticas manterem-se e renovarem-se continuamente. “As imagens também têm esse poder de atravessar o tempo e continuar falando”, diz Ilana. Os retratos da série Hv poderiam ser feitos em 2024, assim como outros trabalhos que evidenciam as diversas violências que mulheres cis, trans, meninas e crianças sofrem diariamente no país.
Confira abaixo 10 trabalhos artísticos que tratam do assunto:
Vermelho como palavra ainda é uma cor fantasma (2018), de Livia Aquino
A pergunta cretina do general diante de Lázara, uma jovem vítima de um estupro coletivo, é agigantada em neon vermelho – ela apenas passava na rua no momento de sua prisão, interrogatório e tormento. O depoimento de Lázara faz parte do Relatório da Comissão da Verdade de 2014. Caso perca seu contexto, a pergunta pode soar ambígua, anuncia Livia Aquino. Segundo a artista em seu site, “esse é um trabalho que está na urgência do ainda, do todavia contemporâneo em um país que não consegue se libertar de algumas ditaduras – as da política e as do corpo.”
Lívia Aquino é pesquisadora do campo da cultura e das artes visuais, é professora e artista. Sua prática opera conexões entre a imagem, a escrita e a leitura, explorando seus significados e os sentidos que produzem no espaço e com o outro, como participador. Leciona na pós-graduação em Práticas Artísticas Contemporâneas e na graduação de Artes Visuais e de Produção Cultural da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), em São Paulo.
Não estuprarás (2017-), de Regina Galindo
Em No Violarás, agora traduzido para o português, a artista nascida na Guatemala, cria o 11º mandamento como um grande e necessário enunciado a ser continuamente alertado, propagado e difundido na paisagem e no espaço público. A obra integrou a mostra “Todo corpo em deslocamento tem trajetória”, com curadoria de Livia Aquino, e foi exibida na área externa do Espaço Cultural Casa das Onze Janelas, em Belém (PA), durante o projeto Diário Contemporâneo.
Regina José Galindo é artista visual e poetisa, que tem como principal meio a performance. Galindo vive e trabalha na Guatemala, usando o seu próprio contexto como ponto de partida para explorar e denunciar as implicações éticas da violência social e das injustiças relacionadas com a discriminação racial e de género, bem como os abusos dos direitos humanos decorrentes das desigualdades endémicas nas relações de poder. sociedades contemporâneas.
Silueta de Cohetes (1976), de Ana Mendieta
Em uma carreira breve, interrompida por uma suspeita de feminicídio, a artista cubana Ana Mendieta marcou a história com seus trabalhos inovadores em fotografia, filme, vídeo, desenho, escultura e instalações site-specific. Os principais temas do seu trabalho são ligados ao corpo da mulher, às violências físicas e subjetivos, o aborto, o exílio, o deslocamento. Seu híbrido único de forma e documentação, obras que intitulou de “siluetas”, são traços fugitivos e potentes da inscrição da artista de seu corpo na paisagem, muitas vezes transformado por elementos naturais como o fogo e a água.
Em 2023, a artista teve uma mostra inédita na América Latina, a exposição “Ana Mendieta: Silhueta em Fogo”, uma jornada profunda por suas obras, cujo legado está mais vivo do que nunca. No mesmo espaço expositivo da individual, o SESC Pompeia em São Paulo, a exposição “terra abre caminhos”, mostrou o trabalho de 30 artistas identificadas com aspectos culturais, políticos e espirituais provocados pela obra de Mendieta em sua dimensão ancestral e dos feminismos. A curadoria geral foi de Daniela Labra, com curadoria adjunta de Hilda de Paulo e assistência de Maíra de Freitas.
Algún día saldré de aquí (2014-2021), de Fátima Pecci Carou
Apresentado na 12ª Bienal do Mercosul, Algún día saldré de aquí reúne os rostos de 200 mulheres cis e trans na Argentina, vítimas de feminicídio. Para a artista, pintora e musicista, “a série continua no presente, porque a violência e os feminicídios não param. Essa violência acontece em todo o mundo. A violência contra corpos femininos e feminilizados é cotidiana. A massividade destas imagens evocam a brutalidade dessas ausências”.
“Muitas mulheres desaparecem nas redes de tratamento, outras são assassinadas quando saem para dançar ou em suas próprias casas, geralmente em suas próprias casas.” A artista reforça que as vítimas não são números, mas são pessoas, vidas, rostos que exigem justiça.” Os retratos fazem parte de fotografias de organizações que buscam essas pessoas e que são divulgadas em redes sociais e veículos de comunicação.
Fátima Pecci Carou é pintora e nasceu em Buenos Aires em 1984. Seu trabalho visual é composto por pinturas que dialogam com arquivos da internet, citações da história da arte e imagens populares numa perspectiva política e feminista. Graduado em Artes Visuais (Universidad Museo Social Argentino) e estudante de História da Arte (UBA). Foi bolseira do Centro de Investigação Artística (CIA 2015). Complementou a sua formação nas clínicas de construção ABE-ELE (Javier Villa e Carla Barbero, 2020) e Ana Gallardo (2013-2015).
Tatsuniya (2017 – ), de Rahima Gambo
Tatsuniya significa história, conto ou enigma em Hausa, e é uma série de fotografias e filmes que se passa principalmente na escola Shehu Sanda Kyarimi, Maiduguri, Nigéria. O projeto é uma narrativa alternativa poética sobre as experiências de estudantes que frequentam o nordeste da Nigéria. Amplia a colaboração com 20 alunos da escola que atuam na série. Vemos os alunos passando da sala de aula para a densa floresta verde em uma sequência onírica, estendendo-se em uma veia intuitiva e improvisada usando jogos infantis, poesia, como estrutura para tecer o visual narrativo juntos.
Gambo visitou a escola pela primeira vez em 2015, como parte do seu trabalho fotojornalístico Forbidden Education, uma longa narrativa multimídia sobre como os estudantes vivenciaram pessoalmente o conflito do Boko Haram, onde escolas e universidades foram alvo. Rahima Gambo é uma artista cujo trabalho utiliza ferramentas documentais que incluem a fotografia, o desenho, o cinema, a escultura, a instalação e o som. Atualmente está matriculado na Royal Academy of Arts de Londres.
Sapatos vermelhos (2009 -), de Elina Chauvet
Red Shoes é um projeto de arte pública e relacional, que assume a forma de uma instalação, composta por centenas de pares de sapatos vermelhos, para dizer basta à violência de gênero. Cada par é doado, tingido de vermelho e representa uma mulher vítima de feminicídio ou desaparecida; representa a sua ausência e a vontade dos cidadãos de eliminar a violência de gênero no mundo. O trabalho iniciou em 2009 na Ciudad Juárez, Chihuahua, no México, cidade onde foi cunhado o termo feminicídio, que define o assassinato de uma mulher pelo simples fato de ser uma.
A artista denuncia o assassinato contínuo de mulheres em Ciudad Juárez desde a década de 90, bem como os atuais desaparecimentos e feminicídios no país. O trabalho viaja conceitualmente, gerando todo o seu processo em cada réplica, para criar redes de solidariedade que eduquem e continuem trabalhando o tema. A obra culmina com a instalação dos calçados no espaço público. Zapatos Rojos já tocou em diversas cidades da Europa, América Latina, México e Estados Unidos, tornando-se um símbolo da luta contra a violência de gênero.
Consagrada (2021), de Panmela Castro
Originalmente pichadora do subúrbio do Rio, Panmela Castro interessou-se pelo diálogo que seu corpo feminino marginalizado estabelecia com a urbe, dedicando-se a construir obras a partir de experiências pessoais, em busca de uma afetividade recíproca com o outro de experiência similar. Sua obra já foi exposta em museus ao redor do mundo, como o Stedelijk Museum em Amsterdã, e faz parte de importantes coleções. Sobrevivente de violência doméstica, Panmela desenvolve há quase 20 anos projetos de arte e educação para conscientizar sobre os direitos das mulheres, especialmente por meio da Rede NAMI – associação criada por ela.
Mulher trans eliminada ou O Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo! (2015), de Ros4 Luz
Mulher trans, negra, artista, rapper, youtuber, comunicadora, a pesquisa de Ros4 Luz perpassa um trabalho multimídia para a construção de novas narrativas e quebra de paradigmas hegemônicos. Em uma sociedade racista, transfóbica, heteronormativa e elitista, sua obra tensiona o sistema, a partir de seu corpo dissidente, de seus versos e rimas, com vídeos, performances e séries fotográficas expostas em instituições como MAM São Paulo, Bienal de Curitiba, MASP, Paço das Artes e na feira internacional SP-Arte. Somado ao currículo, uma residência artística no Reino Unido faz parte dessa construção artística. Assim como ela, outras artistas trans, travestis e não-binárias realizam pesquisas e produzem em diversas áreas, mas ainda com pouco espaço de visibilidade, seja no campo artístico ou social. Cursou Teoria, Crítica e História da Arte na Universidade de Brasília.
El Tendedero (1978 -), de Monica Mayer
Desde 1978, a pioneira artista feminista Mónica Mayer realiza pergunta “Como mulher, o que mais detesto na cidade é:”. Diante de um varal de roupas, objeto significativo para a história da esfera doméstica, o público pode expressar em post-its cor-de-rosa as experiências, muitas vezes relacionadas às violências sofridas nas ruas da cidade.
Mónica Mayer estudou artes visuais na Escola Nacional de Artes Plásticas da UNAM e obteve o mestrado em sociologia da arte no Goddard College. Participou por dois anos do Feminist Studio Workshop em Los Angeles, Califórnia. O seu trabalho gráfico, os seus desenhos e as suas performances têm sido apresentados desde a década de setenta em espaços independentes e oficiais, nacionais e internacionais.
O projeto da artista segue sendo replicado por artistas em outros lugares do mundo. No Brasil, em 2023, o Coletivo Mariposas, formado por Karen Villela, Rob Scharcow, Gabriela Traple Wieczorek, Mariá Battesini Teixeira, Juliana Isidoro e Bárbara Rodrigues Marinho, realizou a instalação participativa criado por Mayer na galeria Ecarta em Porto Alegre. As artistas fazem parte do núcleo artístico-cultural da Casa de Referência Mulheres Mirabal, com proposições artísticas e culturais derivadas do artivismo feminista em relação com a conscientização e idealização de futuros livres de violência
Hv (2012), de Ilana Bar
No cenário de diversas regiões brasileiras, a artista e fotógrafa Ilana Bar fotografa em um enquadramento específico, pessoas que passaram por abusos sexuais na infância/adolescência. Artista, fotógrafa e pesquisadora, Bacharel em fotografia pelo Centro Universitário Senac e mestra em Artes Visuais pela ECA- USP, Ilana vive e trabalha entre as cidades de Atibaia e São Paulo. Seus projetos e pesquisas envolvem o universo familiar, laços afetivos com pessoas e espaços. Em 2010, foi contemplada com o 1º lugar no 8º festival internacional da imagem fotográfica em Atibaia. Em 2017 participou da exposição International Discoveries VI – Fotofest em Houston- TX com a série transparências de lar. Esta mesma foi contemplada com o Prêmio Nacional de fotografia Pierre Verger 2016/2017 e o Prêmio Nera Di Verzasca, 2018 em Verzasca foto festival, Sonogno, Suíça.